Por Luiz Antonio Simas
A década de 1920 no Rio de Janeiro (RJ) foi marcada por um dilema que envolveu as camadas populares urbanas – especialmente as comunidades afrodescendentes – e o Estado republicano. Enquanto os negros buscavam pavimentar caminhos de aceitação social, o Estado procurava disciplinar as manifestações culturais das camadas populares – uma forma considerada eficiente para controlá-las. E foi dessa interação entre o interesse regulador do Estado e o desejo de aceitação social das camadas populares urbanas que surgiram as primeiras escolas de samba.
As agremiações pioneiras se formaram de um amálgama de diversas referências: a herança festiva dos cortejos processionais, a tradição carnavalesca de ranchos, blocos e cordões e os sons das macumbas, dos batuques e dos sambas cariocas.
Consagrou-se a versão de que a utilização do termo “escola de samba” teria sido uma invenção do cantor e compositor Ismael Silva para designar a Deixa Falar, agremiação sediada no Estácio de Sá, bairro na região central do Rio. A versão, no entanto, é de difícil aceitação. É mais provável que a forma como o famoso rancho Ameno Resedá era designado – Rancho Escola – tenha inspirado a denominação que os sambistas usaram para as agremiações carnavalescas que surgiam.
Em 1930, cinco agremiações se definiam como escolas de samba: Estação Primeira de Mangueira, Oswaldo Cruz, Vizinha Faladeira, Para o Ano Sai Melhor e Cada Ano Sai Melhor. Sobre a Mangueira, Cartola, um de seus fundadores, afirmava que a escola fora criada no dia 28 de abril de 1928. Entretanto, o jornalista Sérgio Cabral encontrou, entre os pertences do radialista Almirante, um papel timbrado que afirmava ter a Mangueira sido criada em 28 de abril de 1929 – um ano depois, portanto, da data apontada por Cartola.
A despeito da polêmica sobre a data da fundação, o que se sabe é que a ocupação do Morro da Mangueira, datada do final do século XIX, se acelerou no início da década de 1920, com a chegada de muitos moradores expulsos do Morro do Castelo, que acabara de ser arrasado no centro do Rio. A tradição dos batuques afro-brasileiros era muito forte desde os primórdios da ocupação do morro. Uma das principais lideranças da Mangueira nos tempos em que a escola começou a ser gestada foi Tia Fé, respeitada mãe de santo e matriarca do samba mangueirense.
O samba desfila
No final da década de 1920, o alufá – sacerdote de um culto que misturava o islamismo com a devoção aos orixás iorubanos – José Espinguela organizou as duas primeiras disputas entre sambistas das escolas que surgiam. Não fora ainda um desfile em cortejo: o concurso de Espinguela visava julgar apenas os sambas que os compositores das escolas faziam.
A primeira disputa entre as escolas de samba com a ocorrência de um pequeno cortejo aconteceu em 1932. A festa foi patrocinada pelo jornal Mundo Sportivo, dirigido por Mário Filho, jornalista que colaborou decisivamente para que o samba e o futebol conquistassem de vez as ruas do Rio de Janeiro. O concurso contou com a participação de 19 agremiações, que desfilaram em frente a um coreto montado na Praça Onze de Junho.
O júri, formado por Álvaro Moreira, Eugênia Moreira, Orestes Barbosa, Raimundo Magalhães Júnior, José Lira, Fernando Costa e J. Reis, premiou quatro escolas: Mangueira, Vai como Pode – nome adotado pela Oswaldo Cruz antes de virar Portela –, Para o Ano Sai Melhor e Unidos da Tijuca. Segundo o regulamento, as agremiações não tinham nenhuma obrigação de criar sambas relacionados a um enredo. Cada escola poderia apresentar até três sambas, com temática livre. A vitoriosa Mangueira cantou dois: “Pudesse Meu Ideal”, de Cartola e Carlos Cachaça, e “Sorri”, de Gradim.
Poucos poderiam supor que naquele início da década de 1930 estava sendo gestado o evento que acabaria se consagrando como o maior conjunto de manifestações artísticas simultâneas do planeta: o desfile das escolas de samba cariocas. E Cartola, assim como Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Antenor Gargalhada do Salgueiro e tantos outros, teve seu nome inscrito na história da cultura brasileira como um de seus geniais criadores.
Luiz Antonio Simas é historiador e escritor. Entre outros livros, publicou Dicionário da História Social do Samba (2015), Portela – Tantas Páginas Belas (2012) e Samba de Enredo, História e Arte (2010), em coautoria com Alberto Mussa.