Nos versos e na prosa de Conceição Evaristo, a mulher negra deixa de ser uma caricatura e ganha um poder que, em clássicos da ficção brasileira, por muito tempo lhe foi negado: o de ser mãe
Por Islene Motta de Oliveira
Muitas das personagens negras presentes em obras clássicas da literatura brasileira são exemplos de como a arte não deixou de reforçar estereótipos e de consolidar o projeto civilizatório ocidental, baseado numa suposta inferioridade e animalidade dos afrodescendentes. Figuras como a protagonista de A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães, ou a Rita Baiana e a Bertoleza de O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo, não só carregam traços estereotipados, mas também trazem a marca da esterilidade. Nenhuma delas vive a experiência de ser mãe.
A pesquisadora, ficcionista, ensaísta e poeta Conceição Evaristo questiona: “Qual seria o significado da não representação materna para a mulher negra na literatura brasileira?”. Ela e outras escritoras contemporâneas vêm buscando respostas à questão e promovendo a ressignificação de velhas e forjadas identidades. Para essas autoras, a literatura não é um lugar de entronização, e sim uma prática de empoderamento, de autorrepresentação a partir de uma estratégia ativista e poética.
No poema “Eu-Mulher”, Conceição diz:
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo.
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
Lançando mão de uma complexa estratégia de resistência e reinscrição no mundo – “em baixa voz/violento os tímpanos do mundo” – e usando imagens como a do sangue e a da semente, a autora anuncia a magnitude do poder feminino de gerar a vida e denuncia a perversidade à qual, numa sociedade machista, as mulheres são submetidas.
Mulher sapiência
Em oposição ao discurso elaborado pela tradição, a obra em prosa de Conceição também contesta a esterilidade das personagens negras na literatura e traz uma série de figuras que vivenciam as subjetividades da maternidade.
É o que pode ser visto em trabalhos como o conto “Duzu-Querença”, publicado na coletânea Olhos d’Água (2014), e a novela “Sabela”, que compõe o livro Histórias de Leves Enganos e Parecenças (2016):
Os filhos de Duzu foram muitos. Nove. Estavam espalhados pelos morros, pelas zonas e pela cidade. Todos os filhos tiveram filhos. Nunca menos de dois. Dentre os seus netos, três marcavam assento maior em seu coração. Três netos lhe abrandavam os dias.
Trecho de “Duzu-Querença”
Eu, a menor de onze irmãs, dormia com Sabela e amanheci tão molhada quanto minha Mãe. Lá fora, entretanto, tudo seco. Menina ainda, eu testemunhava toda a sabedoria que Mamãe guardava no corpo.
Trecho de “Sabela”
No poema “De Mãe” (trecho abaixo), a voz lírica apresenta uma mãe não letrada, com sabedoria advinda de experiências cotidianas e que ensina a filha a conter seus ímpetos.
O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.
A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.
Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.
Comparada a uma orixá, a mãe que é aludida no poema remete à ancestralidade africana, ao reconhecimento afirmativo de uma ascendência feminina e à capacidade de reverter difíceis situações.
Conceição Evaristo, escrevendo pela perspectiva da afrodescendência, apresenta questões complexas da nossa sociedade e, a partir daí, atinge a universalidade. Ao falar de si, levanta todo um coletivo, o coletivo negro e, em especial, o da mulher negra brasileira.
Islene Motta de Oliveira, graduada em letras pela Universidade Candido Mendes (Ucam), é educadora social e pesquisadora de literatura afro-brasileira.