por Laura Mattos
Eram tantos e tantos cortes que, mais uma vez, Dias Gomes se via obrigado a ir à Brasília reunir-se com censores da ditadura militar. “Vamos supor que, de hoje em diante, eu quisesse ser um bom moço e seguir a orientação da Censura”, disse o dramaturgo ao chefe do departamento. “Nesse caso, gostaria de saber que critérios deveria seguir, porque há vários cortes que não consigo entender”, ele afirmou, e deu como exemplo o veto a uma cena de sua novela em que jovens dialogavam sem tratar de política ou de qualquer tema moral que pudesse ser sensível ao governo.
“É. Realmente também não atino por que razão foi cortado”, respondeu o chefe da Censura. O censor responsável pelo corte foi chamado e, com ar de inteligente, explicou ao autor o seu critério mirabolante: “Bem, o que o senhor colocou aí no texto, quando se lê, parece não ter problema nenhum. Mas o que o senhor estava pensando quando escreveu esse diálogo, aí é que está o problema”.
Censurar o pensamento era só o que faltava no Brasil dos mandos e desmandos. Corria o ano de 1976 e Dias Gomes escrevia Saramandaia. Sufocado por vetos e mais vetos impostos às suas obras pela ditadura, ele tentava, naquela novela, despistar os censores com o realismo fantástico – o protagonista, João Gibão, por exemplo, nascera com asas e era obrigado a cortá-las, uma metáfora do cerceamento da liberdade.
No ano anterior, um episódio traumático havia se dado em torno de uma outra novela de sua autoria, Roque Santeiro, censurada à véspera da data marcada para a estreia, com 36 capítulos já gravados e editados. Pela primeira vez na história do país uma telenovela, verdadeira paixão dos brasileiros, era inteiramente proibida e de forma abrupta, com o telespectador sentado no sofá à espera do primeiro capítulo.
Em 27 de agosto de 1975, quando Roque Santeiro deveria estrear na Globo, Cid Moreira, locutor do Jornal Nacional, voltou à tela após a exibição da abertura da novela e leu um editorial que informava o público sobre a censura e escancarava, de maneira inédita, uma divergência entre a maior emissora de TV do país e a ditadura.
Os bastidores dessa proibição são uma novela à parte. Os documentos oficiais traziam desculpas esfarrapadas, mas o que estava por trás da decisão era a descoberta, feita pelos militares por meio do grampo ilegal de um telefonema de Dias Gomes, de que Roque Santeiro era uma adaptação de O berço do herói, peça de sua autoria proibida dez anos antes, na data marcada para o seu lançamento, 22 de julho de 1965.
O protagonista da obra teatral é um cabo da Força Expedicionária Brasileira (FEB) dado como morto na Segunda Guerra e transformado em herói, espécie de santo para a sua cidade natal, que passou a lucrar com turistas em busca de seus “milagres”.
Tudo ia bem para os negócios que exploravam o falso mito, até que, 17 anos depois, o homem ressurge na sua cidade, vivinho da silva. Em vez de morrer lutando pela pátria, ele desertara e passara aqueles anos em bordéis na Europa. A sua volta ameaçava o lucro em torno da fé, e os poderosos fariam de tudo para manter o vivo morto, até matá-lo.
A obra discutia a crença da sociedade em falsos mitos, e o momento para isso não poderia ser mais propício. O golpe de 1964 se dera pouco mais de um ano antes da montagem da peça, e os “heróis da revolução” não gostaram nada dessa história de falso herói militar. A obra “induzia ao desprestígio das Forças Armadas”, disseram, e deveria ser proibida. Naquele primeiro momento da ditadura, o foco da Censura era evitar a conexão entre a cultura de esquerda e as classes populares. Nessa estratégia, o teatro, que concentrava grupos de oposição, era visto como um grande perigo.
Dias Gomes, em especial, representava grave ameaça, na visão dos militares, afinal, era um membro do Partido Comunista com prestígio – sua consagração havia se dado com a peça O pagador de promessas, adaptada para o filme de mesmo nome, que venceu a Palma de Ouro em 1962, principal prêmio do Festival de Cannes.
“Notório comunista” era o mínimo que diziam sobre ele documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI), criado na ditadura para a vigilância de pessoas, grupos e instituições que pudessem “ameaçar a segurança nacional”. No topo de um complexo sistema de manutenção do poder, o SNI tinha a colaboração das Divisões de Segurança e Informações (DSI), instaladas nos ministérios civis, e das Assessorias de Segurança e Informações (ASI), presentes em órgãos públicos e em autarquias federais.
Dossiês produzidos nessa estrutura serviam de base aos inquéritos policiais militares (IPM), nos quais artistas e intelectuais eram tratados como inimigos da pátria, o que os ameaçava com uma ampla gama de punições, que podiam ser tanto aquelas oficiais, como a prisão, quanto as torturas e os assassinatos ofertados pelos porões.
O esquema contava ainda com as Delegacias de Ordem Política e Social (Dops), as inteligências do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, e os Destacamentos de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Para a classe artística e a intelectualidade, as ameaças desse complexo sistema embutiam uma violenta forma de censura, com o clima de terror interferindo no processo criativo.
Certa vez, em 1971, Dias Gomes foi obrigado a depor no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), conhecido por torturas e por “desaparecimentos”. Ia ao ar, na época, a sua novela Assim na terra como no céu, que fazia sucesso com o mistério sobre o assassinato de uma personagem, a Nívea. O militar que o recebeu no Cenimar usou a trama para fazer piada com o fato de o autor ter solicitado que o depoimento fosse adiado: “Só adio com uma condição: o senhor vai me dizer quem matou a Nívea”. Dias Gomes respondeu com sua ironia cortante: “Isso eu não confesso nem sob tortura”.
Paralelamente a esse terrorismo, o controle oficial das obras era exercido pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), que, subordinada à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça, estava diretamente vinculada ao organograma repressivo. O emaranhado de siglas é confuso, mas todas elas eram atreladas ao tripé de sustentação da ditadura, formado por vigilância, repressão policial e censura.
Àquela altura, os censores já haviam voltado os holofotes à televisão e ao seu potencial de mobilização da classe média. Fundada em 1950 no país, a TV foi ganhando espaço nos anos 1960, em boa parte graças ao apoio da ditadura, que a considerava estratégica para unificar o território nacional, facilitando o seu controle.
Diante disso, os militares investiram na estrutura da transmissão de sinais e concederam incentivos fiscais às emissoras. Com alcance e audiência crescentes, a TV passou a interessar também à esquerda, que antes a via como forma de alienação, de afastar o público da realidade. Dias Gomes relutou em trocar o teatro pela televisão, mas, com praticamente todas as suas peças censuradas, acabou aceitando o convite para trabalhar na Globo em 1969. Pouco antes, em dezembro de 1968, o governo assinara o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), que institucionalizou medidas extremas como o confisco de bens e o fim do habeas corpus, recrudescendo a censura.
A TV, naquele momento, buscava uma nova teledramaturgia, não mais baseada em roteiros estrangeiros, como nos seus primeiros anos, mas sim em histórias nacionais, que retratassem o Brasil, com situações do cotidiano com as quais o público pudesse se identificar. Foi nesse contexto que autores de esquerda acabaram sendo absorvidos pela TV e por sua capacidade cada vez maior de investir em conteúdo nacional.
As novelas se consolidaram como o principal produto da indústria cultural do país e se tornaram centrais na criação de uma identidade brasileira, o que interessava não somente à televisão, mas também à esquerda e à ditadura, que, obviamente, discordavam sobre o modo como o Brasil deveria ser retratado. Dias Gomes e sua mulher, Janete Clair, também novelista de sucesso, tornaram-se pilares dessa nova teledramaturgia, escrevendo novelas que chegavam a atingir 100% de audiência e que, entre mocinhos e vilões, abordavam criticamente a realidade brasileira.
A isso, os militares responderam com censura sem trégua. Linha por linha, os roteiros de todas as novelas eram analisados pelos censores, que faziam cortes e depois assistiam aos capítulos gravados antes que fossem ao ar. Chegavam a acompanhar as gravações e a edição, interferindo em detalhes, como onde a câmera deveria focar ou quantos segundos poderia durar uma cena de beijo. Eram como coautores, em uma operação que impunha às emissoras de TV uma rotina de negociação com a ditadura.
A proibição prévia de Roque Santeiro foi uma quebra nesse sistema que mutilava as novelas na surdina, sem que o público percebesse. No telefonema grampeado, Dias Gomes revelava que, na adaptação da peça para a novela, havia trocado o protagonista da história: de um cabo da FEB, passou a ser um produtor de imagens de santos dado como morto ao defender a igreja de bandidos. O disfarce era uma “pequena safadeza”, disse rindo o autor na conversa interceptada pelos militares.
Em um momento em que a ditadura vivia uma disputa entre os adeptos da linha dura e os que defendiam uma abertura “lenta, gradual e segura”, o grampo sobre a novela caiu como uma bomba, e a cúpula militar optou por não deixar passar a “safadeza”.
O falso herói de Dias Gomes só conseguiria reaparecer vivo dez anos depois, em 1985, quando os militares finalmente deixaram o poder. Roque Santeiro, que havia sido um marco da censura na ditadura, foi escolhida, então, para estrear no horário nobre, como um símbolo da volta da liberdade de expressão. O país estava em festa e a novela atingiria a maior audiência da história da televisão brasileira até então.
Mas eis que, nos bastidores, Roque Santeiro enfrentaria seguidos cortes da Censura, que não se desmontara com o fim da ditadura. O novo Brasil era um mito, e falsos heróis ainda seguiriam assombrando o país, a liberdade de expressão e a democracia.
Laura Mattos é jornalista e mestra em comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). É repórter e colunista da Folha de S.Paulo e autora do livro Herói mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura (2019), da Companhia das Letras.