Seção de vídeo
A artista
Inezita Barroso, a vida [capítulo: A artista]
Por Paulo Freire*
*Curador da Ocupação Inezita Barroso, Paulo Freire conta aqui a história de uma vida. Uma vida de 90 anos, muitas músicas e muitos “causos”. Dividida em seis capítulos (A menina, A família, A artista, A pesquisadora, Eta programa que eu gosto e Um legado), essa história se espalha pelas seções do site. Um passeio pela vida e pela obra daquela que é uma das artistas mais importantes da cultura popular brasileira.
Vários encontros dos artistas eram feitos na casa de Inezita e Adolfo. Nessas reuniões, ela também se mostrava uma grande intérprete de Noel Rosa, chegando posteriormente a incomodar algumas colegas cantoras cariocas, que viam aquela paulistana se lançando com tanta categoria no repertório de sambas.
Uma noite, Alberto Cavalcanti – consagrado produtor que havia sido contratado pela companhia cinematográfica Vera Cruz – viu Inezita cantando no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e a convidou para fazer um teste de atriz. Seria para o filme Angela, em 1951. A partir daí,a vida profissional de Inezita Barroso virou um verdadeiro turbilhão.
Em 1952, ela foi ao Nordeste e teve sua primeira atuação profissional como cantora, recebendo cachê, no Teatro Santa Isabel, em Recife (PE). Foi para passar cinco dias e acabou estendendo sua permanência por dois meses! O sucesso foi tamanho que convidaram Inezita para diversas apresentações. Com isso, ela teve a oportunidade de realizar algumas viagens nas quais tomou contato com a cultura popular da região.
No mesmo ano, entrou para a Rádio Nacional. Em 1953, foi chamada para gravar seu primeiro disco comercial: de um lado, “Moda da Pinga”; do outro, “Ronda”, que se tornaria o grande sucesso de Paulo Vanzolini. Entrou na TV Record em 1954. Teve como principal produtor, por muitos anos, Eduardo Moreira.
Gravou discos com repertórios de diferentes regiões brasileiras – o álbum Danças Gaúchas foi adotado nas escolas do Rio Grande do Sul. Ela começou a registrar as canções que vinham gradativamente sendo esquecidas. Pela Vera Cruz, participou do filme Mulher de Verdade, lançado em 1955. Com essa produção, ganhou o Prêmio Saci de Melhor Atriz.
Seus discos contaram com grandes orquestras e arranjos originais. Conviveu com Guerra Peixe, Hervé Cordovil e Radamés Gnattali. Fez novos filmes. Agenda lotada de shows. Programas de rádio, TV. Ganhou ano após ano o Prêmio Roquete Pinto de Melhor Cantora. Foi celebrada como uma das maiores artistas brasileiras e estava sempre no noticiário. Convidaram-na para recepções de chefes de Estado, cantou modinhas com o governador de Minas Gerais, e depois presidente, Juscelino Kubistchek. Sempre com seu violão ou sua viola, reforçando a importância de celebrar a música folclórica.
Foi convidada para estrelar Jovita, baseado num conto de Dinah Silveira de Queiroz. O filme contava a história real da heroína brasileira que desejou se alistar para lutar na Guerra do Paraguai. Inezita identificou-se com a personagem, com o amor profundo por seu país e a necessidade de lutar por ele. Sentiu que precisava conhecer a realidade dessa mulher do sertão. Então planejou uma viagem, de carro, de São Paulo até… Belém do Pará!
Estreante
Inezita de braços abertos
Por Aloisio Milani
Inezita se gravou e escreveu muito ao longo da carreira. Sempre que podia, registrava sua voz, a da família e a dos amigos. Apertou o REC em centenas de fitas magnéticas de rolo, cassete e VHS. Mas, mesmo nessas incontáveis fitas e manuscritos, não havia nenhum que falava detida e profundamente sobre sua discografia, contextualizando-a ou dando contornos do processo criativo de seus discos faixa a faixa.
Essa lacuna foi, para mim, o motivo de procurar Inezita para realizar um livro de sua obra lançada em disco. Era 2014, último ano de trabalho da cantora. Ela, aos 89 anos, ainda plena de vontades e ideias, topou de cara. Faríamos uma publicação comentada de sua discografia, registrando históricas composições e nomes dos músicos que a acompanharam. Uma tarefa que seria, no mínimo, longa, pois o número de discos inéditos ultrapassou 80 lançamentos.
Algumas entrevistas foram feitas, apesar de ainda uma pequena parte para que o trabalho fosse concluído. Uma delas está aqui, como material inédito para a Ocupação Inezita Barroso. O disco sobre o qual Inezita conversa é seu primeiro LP de 12 polegadas, lançado pela Copacabana em 1958. Vamos Falar de Brasil tem capa branca, em que Inezita se volta aos céus e parece se render inteira à música com seu violão no peito.
O áudio desta entrevista (ouça os áudios abaixo) foi gravado via celular sobre a mesa da sala de Inezita. O original possui cerca de 40 minutos e está recheado do seu universo particular: barulho de passarinhos, latido de cachorro, campainha de telefone. A casa dela era assim. Inezita estava envelhecida, a conversa seguiu um pouco truncada e com alguns inevitáveis lapsos de memória. Entretanto, mesmo entre pequenos esquecimentos, a força de sua vida musical estava ali, forte, criativa e diversa em muitos Brasis.
LP Vamos Falar de Brasil (1958)
Primeiro LP de Inezita Barroso, lançado pela gravadora Copacabana, tinha 12 músicas. A última música do disco também foi uma de suas primeiras, a “Moda da Pinga”. Ali, Inezita ainda lançou “Lampião de Gás”, outro clássico. Mas também tinha “Ismália”, poema de Alphonsus de Guimarães musicado por Capiba, “Lua, Luá”, “Peixe Vivo”, “Azulão”.
O repertório lhe chegava por pesquisas pessoais e também por três amigos que viviam intensamente a música: Thalma de Oliveira, seu produtor da Rádio Record; Eduardo Moreira, seu produtor da TV Record; e Hervé Cordovil, maestro e compositor.
A capa do disco brotou da última foto de uma longa sessão fotográfica, em um dia que Inezita era torturada por enxaqueca. Não aguentava mais tanto tempo na busca da melhor foto. Então, abriu os braços, cansada, e ali nasceu a emblemática imagem.
TRECHO 1
Inezita fala sobre o LP Vamos Falar de Brasil, de 1958.
TRECHO 2
LADO A
“Retiradas” (Oswaldo de Souza)
A primeira música é inspirada num aboio nordestino, e Inezita a adotou como vinheta de abertura de seu programa musical na TV Record, canal 7, todas as sextas-feiras às 20h30. Inezita e seu violão, simplesmente, abriam também o disco.
TRECHO 3
“Peixe Vivo” (folclore mineiro/adaptação de Rômulo Paes e Henrique de Almeida)
Tema folclórico mineiro que foi adaptado e gravado neste disco pela primeira vez por Inezita. A música era o xodó de Juscelino Kubitschek, o que estreitou a amizade entre a cantora e o político. Ele assinou à caneta este violão branco da capa do disco.
TRECHO 4
“Engenho Novo” (Heckel Tavares)
Nas pesquisas musicais de Inezita, Heckel Tavares era um de seus compositores prediletos. A artista chegou a encontrar com ele no Nordeste em uma de suas viagens. A gravação também tem orquestração do maestro Hervé Cordovil.
TRECHO 5
“Zabumba de Nego” (Hervé Cordovil)
Amiga e colega do maestro Hervé Cordovil, Inezita já tinha gravado outras canções dele anteriormente. Esta segue a linha de pesquisa e criação do compositor a partir da música popular. A música também vinha do repertório ao vivo que fazia na TV Record.
TRECHO 6
“Lampião de Gás” (Zica Bergami)
Certa vez, num dos dias de gravação na TV Record, Zica Bergami entregou uma longa letra e a música para o maestro Hervé Cordovil avaliar. Ele compartilhou com Inezita, reduziu a letra e testou a música na TV. Sucesso que seria lançado neste disco.
TRECHO 7
“Ismália” (Alphonsus de Guimarães/Capiba)
“Quando Ismália enlouqueceu” era a abertura deste poema de Alphonsus, recitado no repertório do grupo Jograis de São Paulo. O compositor nordestino Capiba musicou a letra, aqui em orquestração singela e dramática.
TRECHO 8
LADO B
“Festa do Congado” (Juracy Silveira)
Aqui Inezita tenta lembrar o nome do percussionista da orquestra regida por Hervé Cordovil, porque é dele o ritmo que dita a imaginação do congado e a interpretação “de arrepiar” de que ela tanto gostava. Primeira música lançada da compositora mineira Juracy Silveira.
TRECHO 9
“Temporal” (Paulo Ruschel)
Gaúcho, Paulo Ruschel era irmão do ator Alberto Ruschel, com quem Inezita contracenou no cinema. Orquestrada por Hervé, a música apresenta a descrição de uma tormenta no mar.
TRECHO 10
“Lua, Luá” (Catulo de Paula)
Cercada de grandes músicos em gravações, Inezita sabia quando e onde tocar. Diante da pergunta “De quem é o violão que acompanha a música?”, a cantora responde singelamente: “Meu”. Esse repente chegou às mãos da artista pelo próprio Catulo.
TRECHO 11
“Azulão” (Jayme Ovalle/Manoel Bandeira)
Esta é uma das canções preferidas de Inezita, mas antes com muitas interpretações líricas e que não agradavam à cantora. Aqui é lançada com acompanhamento do grupo Regional do Miranda, contratado da Rádio Record.
TRECHO 12
“Seresta” (Georgina Erismann)
Outra canção acompanhada pelo grupo Regional do Miranda e com uma letra que arrancava sorrisos de Inezita. A compositora Georgina Erismann foi gravada anteriormente apenas pela violonista e cantora Olga Praguer Coelho.
TRECHO 13
“Moda da Pinga” (Laureano/Raul Torres)
Música presente em seu segundo disco gravado, o primeiro a obter êxito; Inezita aqui retoma seu sucesso ao som da viola. A contracapa atribui erroneamente um violão à cantora e também o crédito da composição a Laureano e Raul Torres, fato com o qual Inezita implicaria durante toda a vida. Para ela, a música era de domínio público, oral, construída coletivamente nas rodas de viola caipira.
Aloisio Milani é jornalista e produtor cultural. Atuou na TV Cultura como roteirista e produtor do Viola, Minha Viola e integrou a curadoria colegiada da Virada Cultural de 2015, que homenageou Inezita Barroso. Em parceria com a filha de Inezita, Marta, trabalha para organizar e difundir o acervo da cantora.
Seção de vídeo
Artista completa
Seção de vídeo
Moda da Pinga
Seção de vídeo
A carreira no cinema
Inezita no cinema
-
Inezita e Ruth de Souza em cena do filme Angela (1951), de Abilio P. de Almeida e Tom Payne | foto: Danilo Pavani/Cedoc TV Cultura
-
Colé Santana e Inezita Barroso em "Mulher de Verdade" (Alberto Cavalcanti, 1953) | foto: acervo pessoal
1/10
Presente
O defeito de Inezita
Por José Hamilton Ribeiro
– Inezita tem um defeito.
Quem me diz, em sua casa em Rancharia (SP), é Dino Franco, o maior nome da segunda geração dos caipiras. A primeira geração foi a dos “patriarcas”, os criadores do gênero, aquele pessoal do Raul Torres, Tonico & Tinoco, Carreirinho, Mário Zan, Alvarenga & Ranchinho, mais uns oito ou nove, que trouxeram pioneiramente para a cidade a música que nasceu no mato.
Dino Franco é assim dos mais novos, mas igualmente grande, no talento e na capacidade para fazer modas de qualidade. Entre suas 300 composições gravadas estão obras-primas como “Cheiro de Relva”, “Ingrata” (“Contratei a ventania que vem das bandas do leste…”) e “Caboclo na Cidade”, esta com uma letra engraçada que narra um drama, o desenraizamento da família do campo que perde as condições de morar na roça e ainda não sabe ser urbana. Dino Franco é apaixonado por Inezita, mas insiste: “Ela tem um defeito. E é grave!”.
Tinha isso em mente na última vez em que fui à casa de Inezita, na Rua Gabriel dos Santos, perto da Avenida Angélica, em São Paulo. Conversa variada, com pausa em três assuntos: 1. “Moda da Pinga”; 2. Inezita como artista de cinema; e 3. a relação que existiu entre seu sabiá e um violão afinado.
1. “Moda da Pinga”
Existe um vídeo inesquecível de Inezita cantando “Moda da Pinga” na TV Cultura. Com domínio de palco e um charme glorioso, ela vai atuando, no correr dos versos, como se tivesse realmente tomado umas e outras. Um artista sem a sua classe perigava resvalar no exagero, no mau gosto ou na caricatura ao querer ali imitar um bêbado.
Inezita gostava de falar de “Moda da Pinga” e de vários aspectos da sua gravação no Rio de Janeiro (naquela época, anos 1950, os cantores paulistas tinham de ir ao Rio para isso). Primeiro: foi seu primeiro disco, um 78 rotações (do outro lado, “Ronda”, de Paulo Vanzolini, ambas as músicas em lançamento exclusivo). Segundo: a moda não cabia no disco; era cantada em roda de violeiros nas fazendas e aquilo corria a noite, no improviso – durava horas. Para caber no espaço de um 78 – faixa de três a quatro minutos –, foi preciso encurtar a letra, deixando a canção com apenas algumas estrofes. Até hoje, embora o CD, o DVD e outras mídias comportem músicas longas, a maioria delas, e não só no caipira, dura aqueles mesmos três minutos e meio. Terceiro: a “Moda da Pinga” não deveria ter indicação de autoria. Foi criada por violeiros de sítios e de colônias que se tornaram anônimos pelo passar do tempo e pelos versos a mais que um ou outro acrescentava.
Tinoco, da parceria Tonico & Tinoco, dizia que as composições da dupla não eram inventadas por eles, mas sim “cenas de vida” que tinham presenciado ou mesmo canções que já existiam e que lhes vinham de informação dos mais velhos, de um parente, de gente de outras fazendas. Quando saíam em visita a algum sítio, cuidavam logo de aprender as músicas dali. Clássicos como “Chico Mineiro”, “Rio Pequeno” e “Moreninha Linda” nasceram assim. No campo, as músicas eram como passarinho: de quem pegasse. Uma vez na cidade, no rádio, no disco, aí ganhavam dono, registro, direitos autorais.
O que aconteceu com “Moda da Pinga” era a regra. Isso garantiu um repertório variado e rico à primeira geração dos caipiras, que pôde usar a largueza de assuntos, dramas e conteúdos – além das melodias – que tinham atravessado anos e anos, talvez séculos, na comunicação boca a boca dos matutos. Este é o material que constitui hoje um tesouro cultural brasileiro: a crônica da vida do nosso homem do campo, de determinada porção do Brasil (o “caipira”), no tempo em que éramos um país “essencialmente agrícola”, com mais de 80% da população na zona rural.
É possível que nenhum rincão brasileiro tenha de seu camponês uma visão tão expressiva quanto essa que a música caipira proporciona à pesquisa e aos interessados em geral, tanto na melodia como na letra. Ali está descrito como as pessoas trabalhavam, como se divertiam, suas crenças e seus sentimentos, como escolhiam parceiros para casar, como se portavam diante da morte. E tudo feito por bons poetas, os melhores de seu meio, que era o “Brasil real” da época.
2. Inezita no cinema
Folclorista e amante da cultura regional (sobretudo a nordestina), Assis Ângelo, que vive em São Paulo há mais de 30 anos, fez, em livro, uma leitura poética da infância de Inezita. Ficam faltando mais dois livros: um sobre a atuação como cantora, estudiosa da música caipira, agitadora cultural e autoridade nacionalmente reconhecida através do Viola, Minha Viola; o outro sobre seu tempo como artista de cinema.
O segundo livro está garantido, a TV Cultura tem os arquivos. A qualquer hora surge alguém para escrevê-lo. O terceiro é mais difícil, porque precisaria, além dos filmes, da presença de Inezita para falar do tempo em que era uma jovem mulher sob os holofotes. Um mulherão, como se dizia antigamente. Discreta e reservada, nunca deu corda quando a conversa se encaminhava para esse campo.
3. O sabiá e um violão teimoso
A certa altura de nossa última entrevista, Inezita pegou o violão para cantar “Penas do Tiê”, mas ele estava de encordoamento novo, desafinado. Ela batalhou atrás de uns acordes de que precisava, mas não dava certo. Tentou de novo, o som melhorou, mas ainda não era o que queria.
– Sabe de uma coisa? Tenho um jeito de resolver isso!
Entrou casa adentro. Inezita tinha na cozinha um sabiá-laranjeira de peito amarelo, que se manteve mudo o tempo todo da entrevista. Ela deve ter mexido na gaiola, dito alguma coisa, botado ração, sei lá – o fato é que o sabiá começou a cantar. Quando ela reapareceu na sala, sorrindo, com um copinho na mão e alegre pelo canto do passarinho, foi para o violão e conseguiu finalmente afiná-lo. Testou a garganta, estava ótima. A beleza de “Penas do Tiê” ia surgir com a marca de Inezita: excelência artística, autenticidade, emoção. Antes de começar, agora rindo mais alto, explicou:
– Você viu? Fui lá dentro ligar o sabiá!
…
– E então, Dino Franco, Inezita Barroso tem mesmo um defeito?
– Tem!
– Qual é?
– O de ser só uma! Do jeito que o Brasil vai, precisaríamos de umas três…
…
(Dino Franco morreu em abril de 2014, aos 77 anos. Tinha cerca de 200 letras novas para musicar, o que fazia metodicamente, semana a semana. Cuidava para que cada uma fosse a composição mais bela que tivesse feito.)
José Hamilton Ribeiro é jornalista do Globo Rural e autor, entre outros livros, de Música Caipira – as 270 Maiores Modas, com uma seleção, história e análise das melhores composições desse gênero até hoje.
Seção de vídeo
Azulão
Seção de vídeo
Sabiá
Seção de vídeo
"Onde eu puder entrar, minha viola entra"
Seção de vídeo
Tristeza do Jeca
Seção de vídeo