atividade política
A trajetória de Jards Macalé é pontuada de atividade política. Os momentos de maior destaque histórico nesse percurso são o show do álbum Banquete dos Mendigos, em 10 de dezembro de 1973, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e a visita ao chefe da Casa Civil, Golbery do Couto Silva, em 26 de setembro de 1979.
O primeiro, uma apresentação para comemorar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reunia artistas como Paulinho da Viola, Raul Seixas, Jorge Mautner, Chico Buarque, Luiz Melodia e Milton Nascimento, que leram, entre as músicas, trechos da declaração. O ato, realizado em meio a um regime ditatorial e violento, teve forte impacto simbólico e o disco ficou censurado por cinco anos.
O segundo, repudiado por muitos (a Folha de S.Paulo tachou o ato de “beija-mão”; o Pasquim pediu que se destruísse o álbum Aprender a Nadar), foi, de acordo com Jards, um meio de agir em prol de uma abertura que se mostrava possível. Para Golbery, o músico levou o Banquete dos Mendigos, que acabara de ser liberado, e um projeto político nacional, principalmente de políticas culturais para a música.
Jards também participou de um show pela anistia, com Gilberto Gil e outros, em 8 de agosto de 1979. Apresentou-se no show do Partido Democrático Trabalhista (PDT), quando da eleição ‒ direta ‒ de Leonel Brizola como governador, em 16 de março de 1983. No primeiro grande comício das Diretas Já, em 26 de janeiro de 1984, tomou o microfone e cantou o Hino Nacional.
Participou de uma festa em apoio à candidatura de Fernando Henrique Cardoso à Prefeitura de São Paulo, em 19 de agosto de 1985, e do comício de 12 de julho de 1987 de Luiz Inácio Lula da Silva em campanha pela presidência. Em 17 de maio de 1988, assinou, entre outros, a campanha “Queremos os Índios no Futuro do Brasil”, com anúncio publicado na imprensa e destinado aos constituintes.
Além disso, Jards foi um dos incentivadores da proposta de inclusão da palavra “amor” ao lado de “ordem e progresso” na bandeira nacional. A iniciativa tornou-se o projeto de lei 2179/2003, do deputado federal Chico Alencar, então filiado ao PT/RJ, hoje PSOL/RJ.
ação direta
É do avô de Hélio Oiticica, José Oiticica, que Jards herdou seu ANARQUISMO ‒ foi com Ação Direta, livro que reúne artigos seus no jornal de mesmo nome, que ele aprendeu a “agir politicamente”. Dizem esses textos, o “espírito anárquico” prega “o trabalho LIVRE, o pensamento LIVRE, o amor LIVRE, a ação LIVRE”, e a “ação direta” é aquela em que há o “espírito inquieto do presente, espírito construtor do futuro”. Inquieto, construtor, livre. As ideias do Oiticica avô parecem, de fato, ecoar nas ações de Jards ‒ como se observa ainda mais no decorrer desta seção, em que você vê outros trechos do Ação Direta.
Seção de vídeo
Encontro com a Ditadura e Repúdio da Esquerda
Jards Macalé é músico, artista homenageado desta Ocupação.
no front das lutas por liberdade de expressão
por Xico Chaves
(Texto produzido em 2011, publicado originalmente no site da reedição do álbum Banquete dos Mendigos realizada pelo Itaú Cultural.)
No ano de 1973 estávamos no front das lutas pela liberdade de expressão, sob a regência do autoritarismo e das perseguições mais desumanas e cruéis da nossa história. A resistência à opressão vingava à sombra das injustiças, por intermédio de uma juventude iluminada e de corajosos militantes que nos reconduziriam aos caminhos da liberdade. São muitos, vivos e mortos, os heróis dessa passagem.
O Banquete dos Mendigos nasceu de um conglomerado contraditório e anárquico da resistência cultural – da contracultura, da precariedade da sobrevivência artística, da censura estética e financeira, da procura de uma linguagem contemporânea que nos representasse e configurasse naquele momento.
A irreverente e inovadora ação poética de Jards Macalé, síntese radical e sofisticada das diversas “línguas” em que fala a música brasileira, artífice carioca do tropicalismo e essencialmente músico, não sobreviveria com dignidade neste quadro de repressão, e a história começou aí.
O diretor do Centro de Informações das Nações Unidas no Brasil, Antonio Muiño, convidou Macalé para uma realização conjunta, integrando um show, que já estava sendo organizado, e um evento comemorativo da Declaração dos Direitos Humanos em uma mesma noite – 10 de dezembro de 1973.
Pouco antes do espetáculo, na sala da então diretora do Museu de Arte Moderna, Heloisa Aleixo Lustosa, realizou-se reunião com todos os participantes para discutir a proposta. Após aprovação, o espaço do 2º andar foi ampliado, recolhendo-se as obras de grande exposição de Kandinsky que lá se realizava. A bandeira da Organização das Nações Unidas foi suspensa no fundo do palco improvisado e a porta foi aberta para mais de 4 mil pessoas, que se aglomeravam ansiosamente sob os pilotis. Foram confirmadas as participações de Johnny Alf, Paulinho da Viola, Gal Costa, Gonzaguinha, Chico Buarque (Julinho da Adelaide), Raul Seixas, Jorge Mautner, Roberto Nascimento, MPB-4, Grupo Soma, Pedro dos Santos (Sorongo), Édison Machado, Luiz Melodia, Edu Lobo, Dominguinhos, Milton Nascimento, Ion Muniz, Sidney Mattos, Nelson Jacobina, Toninho Horta e outros.
Depois de longa espera, o ruído daquela platéia inquieta silenciou com as primeiras luzes sobre a bandeira azul e um microfone, onde foi lida, na íntegra – e pela primeira vez na história com o carimbo “Liberado pela Censura” -, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil foi signatário em 1948. A reação da platéia foi tão emocionante que desconcertou e interrompeu por várias vezes o poeta Ivan Junqueira, encarregado da leitura. A cada parágrafo tinha-se a impressão de que se estava lendo um documento altamente subversivo. Tínhamos perdido o hábito natural de conviver com a liberdade. Em meio à multidão, que aplaudia emocionadamente cada artigo lido, solitários agentes infiltrados vociferavam palavrões e insultos, imediatamente afogados pelas vaias daquela juventude toda. Nessa noite foram soltos todos os gritos presos na garganta, configurando a primeira manifestação artística de peso a se confrontar espontaneamente contra o regime de opressão política e ideológica.
O Banquete deu impulso e origem a inúmeros projetos que rediscutiriam a música brasileira, como a criação da Sociedade Musical Brasileira (Sombrás), de onde saiu o Projeto Pixinguinha; a abertura das programações de rádio para alguns artistas proibidos; a ampliação dos debates sobre direitos autorais; e a produção independente das multinacionais do disco.
Este novo Banquete que se inicia, em outro contexto, com outros artistas e novos conceitos é o sinal de que será realizado, 28 anos depois, outro poema coletivo, ao vivo. Encerro este texto urgente com o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Xico Chaves é artista plástico, poeta, autor musical e organizador, com Jards Macalé, do espetáculo e álbum Banquete dos Mendigos, em 1973/1979.
prefiro que meu coração exploda
um crime de lucidez
políticas culturais para a música
As propostas de políticas culturais para a música que Jards entregou ao ministro Golbery de Couto e Silva visavam a uma reforma da indústria musical brasileira. Com base na deliberação dos músicos e em parceria com empresas privadas, o Estado deveria criar meios de produção e distribuição do produto nacional, no mercado interno e no exterior. “Uma Empresa Brasileira do Som”, diz o músico.
O projeto previa canais de televisão e editoras ligadas a esse complexo musical, para divulgação do material. Opunha-se à censura, para que “a Música Brasileira (…) seja veiculada em todo seu potencial”. Planejava uma execução transversal, articulando os ministérios “do Planejamento, Indústria e Comércio, Educação e Cultura, Fazenda, Comunicação, Interior, Relações Exteriores”. Propunha: “Por que não pagamos nossa dívida externa com arte?”.
Mais detalhes desse plano podem ser lidos nos três artigos em que Jards o expõe na Folha de S.Paulo: “Pelo Parque Fonográfico Nacional“, “Entraves à Expressão Musical Mais Ampla” e “Independência Econômico-Cultural“. As condições para a produção musical também surgem em “Corre Sério Perigo a Indústria de Discos Nacional“, uma análise da vendagem de álbuns.
Não foi somente ao ministro Golbery de Couto e Silva que Jards entregou suas propostas de políticas culturais para a música brasileira. Como ele afirma em um artigo na Folha de S.Paulo, “de 1974 a 1982” as encaminhou, entre outros, para Ney Braga, ministro de Educação e Cultura de 1974 a 1978, e João Figueiredo, último presidente da ditadura (1979-1985) ‒ abordando-o de surpresa em um hotel.
você sabe nadar?
“Havia pressão durante a Ditadura?”, perguntou a Jards o jornalista Carlos Eduardo Moura. “Era horrível. Batiam na minha casa perguntando: ‘Você sabe nadar?’ Ixi, não sei. ‘É porque nós vamos levar você para um passeio na Baía de Guanabara.’ Era terrorismo. Tanto que quando eu lancei Aprender a Nadar, eu fui até o cais da ponte Rio-Niterói, lancei o disco na Baía de Guanabara literalmente. Era a resposta final: ‘Aprendi a nadar, pronto, acabou.’”
“acabou, aprendi.”
O show de lançamento de Aprender a Nadar aconteceu em 1974. Antes do espetáculo, o músico mergulhou na baía de Guanabara ao som de “Mambo da Cantareira”, antigo clássico de Gordurinha reinterpretado por Macalé neste disco.
ação direta: o indivíduo conhece seus caminhos
“O anarquismo combate a todo transe o despotismo de qualquer feição, o feitorismo de toda casta, tudo quanto lembre mandonismo, chefia, canga, subserviência, dominação, dominação física, mental ou moral. Assim, repele o regime carcerário do capitalismo condena as fábricas de doutores, padres, militares, homens vasados num molde único, manequins talhados num só modelo, manipancos cujo enchimento é a mesma palha seca. Só o indivíduo conhece os seus caminhos. Impor, ao que pende para o norte, a marcha para o leste, é roubar-lhe o destino, a vida, a personalidade.”
(Trecho do artigo “ Contra o sectarismo”, do livro Ação Direta: meio século de pregação libertária (1970), que reúne os textos de José Oiticica no jornal Ação Direta. A linguagem foi atualizada para o português atual. As ênfases são nossas.)
Seção de vídeo
Glauberiano
Geneton Moraes Neto é jornalista. Autor do documentário Canções do Exílio – A Labareda que Lambeu Tudo, no qual entrevista Jards Macalé, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Mautner, também escreveu Dossiê Brasília: os Segredos dos Presidentes e Dossiê Drummond.
projeto cultural revolucionário
“No avião que me leva de volta pra casa venho pensando nos últimos papos que mantive com Glauber. Ele dizia: Os ideais revolucionários do Terceiro Mundo só serão alcançados, em primeiro estágio, com o apoio dos militares progressistas. Os intelectuais devem se aproximar da ala progressista das Forças Armadas para injetar na proposta política em andamento um Projeto Cultural Revolucionário e, desta forma, fecundar e conquistar o Poder de Fazer, de Criar. […] Concordei com Glauber dizendo: Nós deveriamos também estar fazendo conferências na Escola Superior de Guerra…“
(em “O Som Livre de Makalé”, publicado na Folha de S.Paulo em 23 de maio de 1982. As ênfases são nossas.)
estupidificação geral
quero amar o brasil em paz
ação direta: pensa e age por ti
“(…) Repudiamos o patrão escravizador do trabalho, o padre escravizador do pensamento, o dinheiro escravizador do amor. (…) O essencial, o absolutamente indispensável é não crer e sim saber, mas saber por si mesmo, praticamente, experimentalmente, não de oitiva. (…) Não creias em ninguém, não te curves a nenhuma autoridade, pensa e age por ti! (…)”
(Trecho do artigo “A Lição de Krishnamúrti”, do livro Ação Direta: meio século de pregação libertária (1970), que reúne os textos de José Oiticica no jornal Ação Direta. A linguagem foi atualizada para o português atual. As ênfases são nossas.)
bandeira
engajamento
O engajamento de Jards na política cultural do país vai além da entrega do plano pelo aperfeiçoamento da nossa indústria musical ao ministro Golbery. O músico participou de vários atos e fóruns de debate nesse campo.
Esse plano, em especial, surgiu dos Seminários da Universidade Federal da Bahia sobre Música Brasileira e foi apresentado no Seminário de Cultura da Cidade de Salvador, em 18 de junho de 1975, com relatoria de Gilberto Gil. Jards afirma ter proposto um grupo de trabalho que viabilizasse a “Empresa Brasileira do Som”.
Em 27 de julho de 1979, ele se somava a 30 cineastas que reivindicavam do governo nacional a instalação de mais cinemas. Aproveitou a ocasião e propôs ao então ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, o aumento de 25% para 50% da obrigatoriedade de difusão de música brasileira. Em 1982, foi convidado para a 2ª Festa Nacional do Disco para discutir direitos autorais (não tinha dinheiro para as passagens, mas a organização fez uma vaquinha).
Engajamento em sentido forte, feito com paixão. Nesse mesmo 1982, ele conta no artigo “E Vale a Pena Ser Poeta”: “Fui à falência, devo aos bancos (…) gastei meus últimos tostões pagando conta de telefone que utilizei para eleger a atual chapa vencedora do Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro. Como na segunda chamada não havia quórum, na terceira peguei a lista dos sindicalizados do sindicato (…) e danei a telefonar pra todo mundo”.
E chegou a mais um ministro da Cultura: Celso Furtado, que ocupou o cargo de 1986 a 1989. No ano de 1988, depois de ter feito críticas ao ministro em uma entrevista, Jards comprou e leu seu livro A Fantasia Organizada e mudou de ideia. Foi se desculpar com Celso Furtado e lhe transmitiu suas críticas à indústria fonográfica.
engajamento (1)
engajamento (2)
engajamento (3)
engajamento (4)
Seção de vídeo
O Amor na Bandeira Nacional
Jards Macalé é músico, artista homenageado desta Ocupação.
ação direta: o espírito anárquico
“O espírito anárquico é essencialmente avesso a quaisquer fanatismos. Sendo ânsia de liberdade, não pode querer dogmas, nem disciplinas, nem mandamentos humanos ou divinos e, muito menos, inquisições, santos-ofícios, índices e autos-de-fé. Pregando o trabalho livre, o pensamento livre, o amor livre, a ação livre, não aceita nenhuma limitação às faculdades intelectuais ou emotivas, nem reconhece bitolas, cremalheiras, pautas, à exteriorização de ideias, ou sentimentos. Só o indivíduo tem o direito de dirigir seu raciocínio, regular sua linguagem, enfrear seu estilo, moderar seu juízo, orientar sua ação.”
(Trecho do artigo “Contra o sectarismo”, do livro Ação Direta: meio século de pregação libertária (1970), que reúne os textos de José Oiticica no jornal Ação Direta. A linguagem foi atualizada para o português atual. As ênfases são nossas)
Seção de vídeo
Um Preço Muito Alto
Lourenço Mutarelli é curador, junto ao Itaú Cultural, e cenógrafo desta Ocupação. Quadrinista dos mais importantes do país, trabalha também como escritor, dramaturgo e ator. É autor do romance O Cheiro do Ralo, da trilogia de quadrinhos O Dobro de Cinco, O Rei do Ponto e A Soma de Tudo (partes 1 e 2) e do álbum Mundo Pet.
ação direta: passo sem destino
“Eis a fórmula: ‘Não caminhar, obrigatoriamente, a passo igual, nem regular, constrangidamente, o teu passo pelo passo isolado que corre adiante de ti, ou da associação que segue atrás de ti. A cada qual seu ritmo, suas afinidades; a cada qual segundo os termos do contrato de marcha que tenha livremente assinado. Não se envolver com a cadência do vizinho! Não intervir no andamento do grupo ao lado; não resmungar contra as evoluções daqueles que preferem os margeamentos à estrada larga, os sombreados às clareiras, e vice-versa. Caminho livre a todos os gêneros de marcha: passo de corrida, passo acelerado, passo de passeio, passo sem destino. É esse o espírito do consenso anarquista’.”
(Trecho do artigo “ O Espírito da Ação Direta” (que cita o anarquista Émile Armand), do livro Ação Direta: meio século de pregação libertária (1970), que reúne os textos de José Oiticica no jornal Ação Direta. A linguagem foi atualizada para o português atual. As ênfases são nossas.)