Duende

Pais

Os pais de João | imagem: Acervo do Autor

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Família

João com sua família | imagem: Acervo de João das Neves

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Ilka Zanoto: Espírito Indômito de um Herói

Vejo João das Neves como um duende a percorrer o Brasil há mais de meio século, de norte a sul, de leste a oeste, espécie de Macunaíma, personagem-síntese de três raças – indígena, negro e branco –, que tem, porém, o espírito indômito de um herói com muito caráter.

Podemos pensar sua obra a partir de seus percursos pelo país, considerando-se três estados: Rio de Janeiro, Acre e Minas Gerais. O primeiro é o do menino João, que, morando em Copacabana na década de 1940, conviveu com operários da construção sobre a farmácia do pai (por isso, até hoje, acreditarem-no nordestino); que, com coleguinhas da escola pública filhos do porteiro, furava as sessões do “americano”, jogando futebol sob as telas apagadas do cinema, em meio a tiroteios à la bandido e mocinho; que frequentava o teatrinho de marionetes gratuito da Praça Serzedelo Correia.

No ginásio do conceituado Colégio Mallet Soares, rabisca jornaizinhos e, após um ano de “tablado”, passa a frequentar os saraus de Aníbal Machado, leitor atento de seus escritos. Estrela-guia da primeira juventude, incentiva-o a ler Friedrich Hölderlin e Rainer Maria Rilke…

João funda e integra Os Duendes, grupo amador inspirado em García Lorca (Juego y Teoría del Duende, 1933), que define o artista sedutor de plateias como “enduendado” – mesmo quando o trabalho dele não é perfeito. Há ainda o aprendizado e o primeiro trabalho profissional com Luiz de Lima – discípulo de Marcel Marceau –, com o qual excursionou por Buenos Aires como ator.

Por indicação de Maria Clara Machado, JN e Os Duendes passam a dirigir o Teatro Municipal de Campo Grande. Dois marcos sucedem-se. O primeiro, na viagem no trem suburbano das 6h50, rumo ao trabalho: o choque de realidade face a face com o povo encurralado nos vagões da Central do Brasil – que João observa com os olhares de Chico e de Vinicius, “É gente humilde, que vontade de chorar…” –, embrião de seu extraordinário espetáculo O Último Carro, posteriormente multipremiado. O segundo, igualmente assustador, foi o choque da violência, quando vê seu teatrinho em Campo Grande reduzido a escombros pela polícia do governador Carlos Lacerda. Encenavam A Grande Estiagem, de Isaac Gondim Filho, sobre a seca do Nordeste; no espetáculo, pela primeira vez houve inclusão de elementos cinematográficos, dirigidos por David Neves e que entremeavam todas as cenas. Antes disso, um repertório brasileiro de alto nível, como O Noviço, de Martins Pena.

Toma então iniciativas que conduzem à formação do Grupo Opinião, ato de resistência à besta-fera que se anunciava. João recorre à União Nacional dos Estudantes (UNE) como única via de protesto; e, quando a sede da entidade é depredada, os salvos do incêndio juntam-se aos CPCs (dos Centros Populares de Cultura), que promovem agitprop – encenações-relâmpago de textos idem, esquetes escritos “na boca do cofre”, na definição de Oduvaldo Vianna Filho. Teatro de rua, experiência indispensável para o ofício do ator, em que se abordavam fatos políticos do momento, também encenados sem pré-aviso, inopinadamente, em praças, esquinas, becos e favelas da Cidade Maravilhosa – isso quando Copacabana ainda era a “princesinha do mar”, “um bom lugar para encontrar”, ao som de pianos e saxofones de seus bares, boates, inferninhos e restaurantes (dúzias deles) funcionando madrugada afora.

Citando Zuza Homem de Mello em Eis Aqui os Bossa-Nova:

“Havia paz no Rio de Janeiro dos anos 50. Os cariocas de origem e os por adoção tinham lá seus mandamentos que cumpriam com virtuosa lealdade na movimentada e espirituosa vida noturna da zona sul. […] No mínimo um pianinho de fundo era ouvido em cada um. […] Sob o véu da fumaça legalizada, bebendo um uisquinho casualmente falsificado, os casaizinhos eram os figurantes no cenário do samba-canção de Caymmi, a pintura imbatível de um sábado em Copacabana nos anos 50… […] O ambiente de paz em Copacabana, de pactuar passivamente com a música do rádio, escondia uma inquietação que se percebia nas conversas, nos bate-papos entre os que sonhavam. Positivamente, os que tinham sede de vanguarda, com seus radares ligados, estavam antenados numa nova música brasileira que pressentiam estar chegando. Quando? De que maneira?”

Era o embrião da bossa nova, em que se aliou a nova batida de João Gilberto ao mergulho existencial causado pelos encantos mil da Cidade Maravilhosa. Entre todas essas vozes inspiradíssimas, Geraldo Vandré destacar-se-á, anos mais tarde (em 1968), como o autor do verdadeiro hino da contrarrevolução: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer […]” (“Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”).

Durante toda a década de 1950 e meados dos anos 1960 havia um entrecruzar de experiências artísticas e teatrais entre São Paulo e Rio, fruto da euforia que foi sufocada abruptamente em 1964 pela sanha funesta de uma nuvem de gafanhotos.

Ilka Zanoto é crítica e pesquisadora de teatro. Durante as décadas de 1970 e 1980, foi voz ativa contra a repressão do período militar.

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imagem: Acervo de João das Neves

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Memórias de Irmã Mais Velha

Haydée Neves Ferreira é farmacêutica e irmã de João.

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Os Duendes

Os Duendes foi o primeiro grupo de João | imagem: Acervo do Autor

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Amizade, Arte, Luta Política

Alfredo Brito é arquiteto e amigo pessoal de João.