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Crítica Política do Fazer Teatral
Fernando Mencarelli é diretor, pesquisador e professor. Bacharel, mestre e doutor em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ilka Zanoto: A Cena Moderna Brasileira
Vivia-se então um clima especialíssimo. Nasciam em São Paulo, gêmeos, a Escola de Arte Dramática (EAD) e o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948; ambas as instituições são consideradas, ao lado da companhia carioca Os Comediantes, marco inicial da moderna cena brasileira, destacando-se como pioneira a encenação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, com direção de Ziembinski, no Rio de Janeiro, em 1943.
No fim da década, nos teatros e nos meios artísticos em geral (cinema, artes visuais etc.), começava a agitar-se um espírito contestatório à realidade sociopolítica do país, fruto do desacerto entre as perspectivas otimistas da era JK e os descalabros da economia, com seus reflexos sobre os marginalizados de sempre. JN era pioneiro, ao lado dos remanescentes dos CPCs, que, cassados pela polícia, partiram para a formação do Grupo Opinião. São eles Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Teresa Aragão, Paulo Pontes, Pichin Plá, Armando Costa e Denoy de Oliveira, que estão à testa dessa experiência, talvez a mais influente daqueles tempos de cólera incipientes, marco indelével na história da luta pela liberdade de expressão. O show Opinião, com Zé Kéti, Nara Leão e João do Vale, entremeava textos declamados com músicas que galvanizavam as plateias – e o rastilho do estribilho “Podem me prender, podem me bater, que eu não mudo de opinião” surgiu como ícone do teatro de protesto.
Após a encenação do musical Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, única peça escrita a 16 mãos e com enorme repercussão popular, o grupo tem seu espetáculo seguinte, Brasil Pede Passagem, proibido pela censura às vésperas da estreia. As duas produções posteriores, A Saída, Onde Fica a Saída?, de Ferreira Gullar, Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa e dirigida por João das Neves, e Meia Volta Vou Ver, de Oduvaldo Vianna Filho, não conseguem minimizar os prejuízos causados pela ação da censura, provocando a primeira cisão do grupo. Vianinha, Paulo Pontes e Armando Costa se desligam do Opinião, formando o Teatro do Autor Brasileiro. Os demais permanecem até a encenação de Antígona, de Sófocles, com tradução de Ferreira Gullar e direção de João das Neves.
Depois desse espetáculo, o grupo original se dissolve definitivamente e João assume o teatro com todas as suas dívidas. Para mantê-lo aberto por 15 anos, monta musicais com colaboração estreita da musicóloga Genny Marcondes. Em cartaz, a revelação dos melhores cantores, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Baden Powell, MPB4 e Maria Bethânia, em substituição a Nara Leão. Com o silêncio forçado dos concursos do Serviço Nacional de Teatro (SNT) pela “eficiente” censura, o Opinião instituiu um certame de prêmios e montagens de textos para dramaturgia que teve como primeiro colocado Aldomar Conrado, com A Ponte sobre o Pântano, estrelado por Glauce Rocha, em seu último trabalho; na direção, João lançava a interseção entre o cinema e o teatro segundo estratégias piscatorianas de cunho político reivindicatório.
Note-se que O Quintal, escrito por João sob encomenda da Comissão de Anistia anos depois, coloca a ingenuidade de uma atitude que protestava veementemente contra o perigo embuçado sem se dar conta de que os inimigos preparavam, a pretexto da Guerra Fria, uma repressão sangrenta em terra tupiniquim. A peça de JN, brechtianamente, propõe três finais possíveis, todos eles fatais para os jovens atores e operários, cercados num palco de teatro na iminência de uma estreia. Mas é no diálogo entre Clara e Luiz que fica patente o protesto ante a falta de previsão dos engajados na luta desigual contra o Moloch ditatorial:
“Luiz, o que é que nós sabemos? Nada. A não ser que eles estão lá na frente armados até os dentes e querendo nos eliminar. Que eles sempre estiveram à frente e armados até os dentes. Enquanto isso nós falávamos, cantávamos, representávamos e nem fomos capazes de ao menos prevenir dois pobres diabos* que não tinham nada com isso. Que só queriam acabar o seu trabalho e voltar para suas casas.” [*Referência aos pintores assassinados por rajadas de metralhadoras ao pular a quarta parede, comum a todos os palcos italianos.]
A peça, publicada pela Global Editora em 1978, figura entre os textos expoentes de nossa dramaturgia na coletiva Feira Brasileira de Opinião, censurada e confiscada pelo regime militar. Segundo sua organizadora, Ruth Escobar, a publicação visava retratar o homem brasileiro “aqui e agora, sobretudo com a preocupação de apontar o perfil dos subúrbios do Brasil, onde este governo revela seu verdadeiro rosto”.
Como reação à ação arbitrária que, na noite da estreia, fechou o teatro no qual seria apresentado O Abajur Lilás, de Plínio Marcos, com aval prévio da censura, escrevi um texto que driblou o controle dos censores instalados dentro do Estadão e foi publicado na íntegra, em 14 de janeiro de 1979, com o título “Resistência à besta apocalíptica”, e no qual já destacava o trabalho pioneiro de JN em favor da liberdade, cujo trecho destaco:
“Coube a João das Neves marcar o gol do início da liberação, ao conseguir levar o povo brasileiro de volta aos nossos palcos em O Último Carro – texto proibido desde 66, que por razões que a própria Censura desconhece, pôde vir à luz em 76.“
Antes da tentativa de encenação de Antígona, quando o Opinião cerrou as suas cortinas, JN finalmente realizava um projeto que estava em gestação desde os tempos do Teatro Arthur Azevedo em Campo Grande. Confirmando a inter-relação São Paulo-Rio, no Teatro Treze de Maio da capital paulista – assistindo ao espetáculo Cemitério dos Automóveis (de Victor Garcia e sobre texto de Fernando Arrabal), que revolucionava totalmente o espaço dramaturgo, arrebatado, achou a solução para a encenação de O Último Carro, da qual dou testemunho:
“O Último Carro, peça de João das Neves premiada pelo SNT em 67 e só em abril de 76 encenada no Teatro Opinião do Rio de Janeiro, chega a São Paulo consagrada por inúmeros prêmios para enriquecer a XIV Bienal, em cujo espírito se encaixa rigorosamente. […] O Último Carro, que põe em cena o povo brasileiro como personagem principal, é um brado de alerta contra as condições sub-humanas de vida de vasta parcela de nossa população, daqueles 65% de cariocas, por exemplo, que usam os trens suburbanos como meio de acesso ao trabalho. Ao passarmos as catracas que bloqueiam o acesso ao recinto da Bienal transformado em vagão da Central pela disposição cênica excelente de Germano Blum, enfrentamos uma realidade à qual não faltam acentos de lirismo e de comicidade, mas que sobretudo estarrece pela violência das situações retratadas. […] A urgência deste Último Carro é a de fazer-nos nos atracar, pela sua ousadia estética, com uma realidade que clama por transformações. Nossa tarefa é a de não escamotear as soluções possíveis, ocultando-nos atrás da cortina de dogmas para proferir certezas que em 1977 já não temos o direito de ter.”
Diferente de O Último Carro, que ficou proibida por sete anos, foi o destino de A Pandorga e a Lei. Radiofonizada na Alemanha (quando do estágio de oito meses para a audição e a análise de peças radiofônicas a convite da Westdeutscher Rundfunk), fora encomendada a João para encerrar a campanha contra a Lei de Segurança Nacional, em 1984, e deveria ser encenada no encerramento do seminário Tortura Nunca Mais, porém foi cancelada no dia de sua estreia, por ação da censura.
A pipa, ou pandorga, empinada por pai e filho, que tem a respectiva linha abruptamente cortada, significa a liberdade tolhida pela Lei de Segurança Nacional, promulgada nos idos de março de 1964.
As rubricas da peça dão a dimensão do efeito poético desse momento final: “A pipa vai subindo. Homem e menino se unem numa mesma alegria. Quando está bem alta, no entanto, o fio deve se partir. Em uma das telas laterais do palco, ou nas duas, diversas fotos da pipa caindo sobre as casas suburbanas”.
Ilka Zanoto é crítica e pesquisadora de teatro. Durante as décadas de 1970 e 1980, foi voz ativa contra a repressão do período militar.
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Teatro Político: Panfleto ou Arte?
João das Neves é dramaturgo, ator, diretor e escritor, homenageado desta Ocupação.
Grupo Opinião
Formado no Rio de Janeiro por artistas de diferentes áreas – todos eles dedicados à conscientização política do povo brasileiro –, o Centro Popular de Cultura (CPC) foi posto na ilegalidade e teve de encerrar suas atividades em 1964, em decorrência do golpe militar. No mesmo ano, uma parcela desses artistas – João das Neves, entre eles – criou aquele que viria a ser o epicentro do teatro de resistência ao regime na capital fluminense: o Grupo Opinião.
Sediado em Copacabana, o grupo sobreviveu até 1983 – tendo João como o único membro remanescente de seu núcleo fundador. Nesse período, o diretor encenou textos de autores como o paulista Plínio Marcos (Jornada de um Imbecil até o Entendimento, em 1968) e o alemão Bertolt Brecht (O Homem É um Homem, em 1974) e alcançou enorme reconhecimento, tanto do público quanto da crítica, com a montagem de um texto de sua autoria, O Último Carro, em 1976.
Escrita doze anos antes e tida como uma metáfora do Brasil num trem desgovernado, a peça é ambientada em quatro vagões – recriados pelo cenógrafo Germano Blum – que erram pelo subúrbio de uma grande cidade, levando consigo operários, vendedores ambulantes, donas de casa, prostitutas, guardas, mendigos, assaltantes… “É o universo dos ‘emparedados’ pelos vagões da Central ou Leopoldina ou qualquer via férrea por este Brasil afora”, definiu João. “É um universo trágico, regido pelos deuses cegos de um Olimpo sem grandeza, num mundo que não produz mais herói porque o heroísmo está encravado na luta cotidiana pela sobrevivência de toda a população de uma cidade, de um país, de um mundo.”
Jornada de um Imbecil até o Entendimento
Jornada de um Imbecil até o Entendimento
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Antígona: Tragédia Clássica nos Anos de Chumbo
Renata Sorrah é atriz e produtora. Fez o papel principal de Antígona (1969), texto do autor grego Sófocles encenado por João.
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Cenários e Figurinos
Hélio Eichbauer
Cenógrafo, figurinista e professor; é um dos renovadores da cenografia brasileira moderna.
Chico Buarque & MPB4
Chico Buarque & MPB4
Se Eu Tivesse o Meu Mundo
Se Eu Tivesse o Meu Mundo
Se Eu Tivesse o Meu Mundo
Se Eu Tivesse o Meu Mundo
Se Eu Tivesse o Meu Mundo
Acesse na nossa estante do Issuu o programa completo de Se Eu Tivesse o Meu Mundo (1973).
Um Homem é um Homem
Um Homem é um Homem
Um Homem é um Homem
O Último Carro
O Último Carro
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A Trilha Sonora de ‘O Último Carro’
Rufo Herrera é compositor, bandeonista e educador. Argentino, radicou-se no Brasil em 1963. Fez a trilha sonora de O Último Carro (1976) e Primeiras Estórias (1992), peças dirigidas por João.
O Último Carro
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O Coletivo é o Protagonista
João das Neves é dramaturgo, ator, diretor e escritor, homenageado desta Ocupação.