Por Maria Clara Navarrete
Escrever sobre Manoel de Barros em tão poucas páginas é uma tarefa muito difícil, tanto pela grandiosidade de sua obra quanto pela imensa sabedoria que ele nos transmite até hoje. Descobri sua poesia através do livro Arranjos para Assobio (1980). Nessa época eu trabalhava como bióloga, dava aulas na graduação de biologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e estava descobrindo o Pantanal. Um de seus poemas que me chamou a atenção dizia:
Natureza é fonte primordial?
– Três coisas importantes eu conheço: lugar
apropriado para um homem ser folha; pássaro que se
encontra em situação de água; e lagarto verde que
canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma
força que inunda como os desertos. Que me enche
de flores, calores, insetos, e me entorpece até a
paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia
Em meu louvor se inclui o Paracleto.
Essas palavras me acompanham sempre, mas naquele tempo senti uma forte emoção, de puro encantamento. O poeta inaugurava um mundo totalmente novo para mim. Através da sua poesia, o ser humano poderia estar em perfeita interação com a natureza; poderia haver um encontro perfeito da ciência com a arte.
Fui novamente surpreendida quando foi publicado Livro de Pré-Coisas (1985). De uma forma poética, por meio de suas brincadeiras com as palavras, ele nos ensinava a biologia. Percebi que grande parte do que nós biólogos estávamos buscando com nossos estudos no Pantanal o poeta já havia encontrado! Foi encantador reencontrar a biologia pelo caminho da poesia.
Ele, que nasceu e cresceu no Pantanal, aprendeu a ler essa paisagem que é uma das mais espetaculares do planeta, com uma fauna abundante e diversa. Essa região é a maior planície de inundação existente e representa uma das mais importantes áreas úmidas de água doce da América do Sul. Com toda a certeza esse lugar ampliou os sentidos do poeta ainda menino, que sempre foi um grande observador da natureza, um naturalista autodidata.
Lembro que, em uma das entrevistas para a jornalista Bianca Ramoneda, o poeta se mostrou preocupado com as águas das quais dependem todos os seres, inclusive os homens que ali vivem. Gostaria de destacar um trecho de sua resposta quando questionado sobre a falta de água no planeta:
[…] eu vejo o homem pantaneiro, que é uma continuação das águas, ameaçado. Ameaçado porque estamos sepultando a natureza e todos os seus minadouros. A tecnologia avança sobre a pureza das águas e dos seres. Penso que a ciência desvenda alguns caminhos e mata outros. Mas, comparada ao tamanho dos mistérios, a nossa ciência é uma mosca frita. Ou melhor: é do tamanho da asa de uma mosca frita […].
Tive a felicidade de conhecer Manoel de Barros no início dos anos 1980, por meio de sua filha, Martha, que era minha vizinha e até hoje é uma grande amiga. A afinidade de meu trabalho com sua obra nos aproximou. Nós nos tornamos muito amigos e, para coroar essa amizade, comecei a conviver com ele e com a família. Com toda a certeza posso afirmar que essa convivência mudou minha visão de mundo e, consequentemente, minha vida.
Graças a essa amizade pude acompanhar de perto seu trabalho e fazer alguns projetos relacionados com sua obra, o que me aproximou ainda mais dele. Convivi com um homem simples, sereno, muito alegre, sorridente e surpreendentemente brilhante, que exercia um enorme fascínio sobre todos os que estavam a seu redor.
Ao se aposentar, ele conseguiu se dedicar totalmente à poesia, à família e aos amigos. Foi a época de sua vida em que mais escreveu e publicou, indicando que a velhice pode ser uma fase bastante criativa.
Sinto saudades de meu queridíssimo amigo, de compartilhar a vida com ele, de nossas conversas sobre o dia a dia. Suas palavras sempre me acompanham, tenho sempre na memória seus versos. Por isso, gratidão é a palavra que escolho para expressar todo meu sentimento. Nada melhor para finalizar este texto do que um de seus versos:
Sou construtor menor.
Os raminhos com que arrumo
as escoras do meu ninho
são mais firmes que as paredes
dos grandes prédios do mundo. Ai ai!
Maria Clara Navarrete é bióloga e foi amiga de Manoel de Barros. Chamada por ele de Clarita, ainda hoje mantém amizade com a família do poeta.