Leia na íntegra o texto de Mario Pedrosa publicado no Jornal do Brasil em 17 de janeiro de 1957.
No momento em que, após vários anos de inatividade, o crítico volta a aparecer a um público novo, como esses caros leitores do Jornal do Brasil, é indispensável que se apresente, que fale de si.
Não para “defender-se”, mas para explicar-se. Desde já fique consignado aqui que um crítico militante não tem direito à defesa. (Salvo, bem entendido, se estão em jogo sua honradez pessoal, sua probidade profissional, sua honestidade intelectual, em suma). Fora desses pontos de honra, a “luta é livre”, não lhe cabendo queixar-se e sair em réplicas e tréplicas para defender da “critica”, sua crítica.
Para bastante gente, este crítico tem reputação de sectário, partidário, político, e só admitiria uma espécie de arte, a que vulgarmente se designa por “não figurativa”, “abstrata” ou “concreta” etc. Nunca lhe passou, entretanto, pela mente, sair a público com declarações e anúncios retificadores. A fama, o renome, o conceito, os mal-entendidos que se espalham ou se tecem em torno do crítico, são cristalizações que se formam, independentemente de sua vontade ou da sua anuência; fazem parte dos cavacos do ofício. Não adianta nada estar a retificá-las, ou tentar reajustá-las à realidade subjetiva do próprio crítico. A personalidade discutida segue o seu caminho indiferente à personalidade real e por isso é inútil que esta tente corrigir aquela. Mais do que inútil, é pueril, como o gesto do sujeito diante do espelhinho da sala do fotógrafo, no momento de ir posar diante da objetiva para o retrato, passa a escova no cabelo, torce os bigodes, endireita o nó da gravata, numa desesperada tentativa de último retoque. Agora, entretanto, quando me cabe a honra de ocupar no Jornal do Brasil a coluna das artes plásticas, ou antes, das artes visuais, é legítimo tentar explicar, previamente, o que entendo por crítica, ou mais precisamente, qual o meu critério de apreciar e julgar. Duas coisas a crítica não pode abstrair: o temperamento do crítico e seu background cultural. Arrimemo-nos, despretensiosamente, em Baudelaire para esclarecer isto: a crítica, nos diz o grande poeta, “não pode ser Tria e algébrica” e, “sob o pretexto de explicar tudo”, “não ter ódio nem amor, despojada, voluntariamente, de toda espécie de temperamento”. E completando a ideia, acrescenta: “…espero que os filósofos compreendam o que vou dizer: Para ser justa, quer dizer, para ter sua razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada, política, isto é, feita de um ponto de vista que abra mais horizontes”.
O autor de Curiosités Esthétiques não acreditava, certamente, na capacidade do homem fazer justiça: o crítico não pode “despojar-se, voluntariamente de toda espécie de temperamento e como é, antes de tudo, um apreciador consciente da obra de arte, não pode posar de juiz e dar do alto de seus coturnos, uma sentença sem ódio nem amor. Por isso mesmo, o poeta, prezando acima de tudo a “sinceridade”, como bom filho da era romântica, acha mais justo e prudente (e logo, mais objetivo, oh! paradoxo!) que a crítica se reconheça “parcial, apaixonada, política”. O leitor pode engolir o “parcial” ou “apaixonado”, mas, estamos certos, tropeça no “politico”, sobretudo em face das antipáticas e malignas conotações do vocábulo. O “político”, no contexto baudelairiano, significa outra coisa, significa principalmente não eclétisco”. A crítica é sincera, discriminadora e afirmativa, mas não é despida de critério, nem indiferente aos valores e à escala de valores. (E uma de suas funções tentar estabelecer esta escala). Ela distingue entre valores, discrimina entre qualidades, e não acolhe sem cerimônias e sem discriminação a tudo ou a todos, em nome do capricho momentâneo, da impressão e do mero gosto pessoal. Ao contrário, ela procura definir, com a maior precisão possível, os meios e recursos, pelo menos impessoais, senão objetivos, através dos quais possa aferir as qualidades intrínsecas de uma obra. Tudo isto impõe a necessidade de adotar-se “um ponto de vista”. Tal ponto de vista, uma vez adotado, é que salva o crítico, o redime de sua “parcialidade, paixão e política”.
Baudelaire o define de modo magistral: “O ponto de vista que abre mais horizontes é o mais alto, isto é, de onde se descortinam mais horizontes; e de onde se pode abarcar um todo maior que os estreitos horizontes do quintal do crítico, com sua rotina familiar, sua preguiça subjetiva, seu imediatismo. Desse ponto de vista, o temperamento do crítico, sua bagagem de gostos, preconceitos, experiência vivencial e cultura perdem o extremo subjetivismo, se fundem, se amoldam, se hierarquizam nos sucessivos planos panorâmicos daquele, de modo a permitir-lhe atuar, falar, apreciar, julgar para além de suas mesquinharias pessoais, de seus parti-pris unilaterais, preconceituais, do mero gosto ou da impressão passageira.
O ponto de vista do crítico pode ser mais amplo, como quer Baudelaire ou mais estreito. Só não pode ser eclético. O poeta nos dá de um ponto de vista estreito admirável exemplo: “Exaltar a linha em detrimento da cor. od: a cor a expensas da linha, é sem dúvida um ponto de vista; mas este não nem muito amplo nem muito justo, e acusa grande ignorância dos destinos peculiares de cada coisa”. E por quê? Porque “ignoramos a maneira pela qual a natureza dosou em cada espírito o sentido da linha ou o da cor e tambien Tox misteriosos procedimentos pelos quais ela operou a fusão destes dois elementos, cujo resultado é um quadro”.
Para Baudelaire pessoalmente o ponto de vista mais amplo era o individualismo bem entendido. Em nome desse individualismo bem entendido ele pedia ao artista ingenuidade, a expressão sincera de um temperamento e a posse de todos os meios que lhe facilitem o ofício. Como digno representante da estética do romantismo, o poeta-crítico exclamava: “Quem não tem temperamento não é digno de fazer quadros”, e recomendava, “deve entrar como artesão a serviço de um pintor de temperamento”, pois, estamos cansados de imitadores (isto já em 1846) e, sobretudo, dos ecléticos.
O ecletismo é, com efeito, o escolho onde vai chocar-se o barco da crítica. A dúvida engendrou o ecletismo, pois os que duvidam tem o bom desejo da saúde. E o poeta continua a nos ensinar que a imparcialidade dos ecléticos é a prova da sua impotência. Nas artes é onde o ecletismo é mais pernicioso, é pois sendo coisa necessariamente “profunda”, requer uma idealização perpétua que não se obtém senão pelo sacrifício, sacrifício voluntário. E por isso o crítico-poeta afirma: “Por muito hábil que seja um eclético, é um homem débil, é um homem sem amor”. Não tem, pois, ideal: não tomou partidos nem estrela nem bússola. Mesclando vários procedimentos diferentes e que o artista eclético nos dá é sempre “uma negação”. “Um eclético é um navio que quisesse navegar com quatro ventos”.
Nessa proscrição ao ecletismo, traça-nos o grande poeta uma verdadeira ética da coerência e da unidade. Viva a obra de arte feita de um ponto de vista exclusivista, pois, por maiores que sejam seus defeitos, nunca perderá seus encantos, nunca deixará de encontrar ressonâncias ao menos “para os temperamentos análogos ao do artista”. “Um eclético”, arremata Baudelaire, “não é pois um homem”.
No Brasil caótico, informe e indiscriminado de nossos dias, subscrevemos as palavras do poeta, embora com um pouco mais de tolerância. Um eclético pode ser um homem, mas não é um artista. E, por hoje, a nossa primeira conclusão.