De: Até: Em:

Eu sou o Brasil que o Brasil não conhece

Naná Vasconcelos, 2011 | foto: André Seiti/Itaú Cultural

Compartilhe

Nascido e crescido no bairro pobre de Sítio Novo, em Olinda (PE), Naná Vasconcelos (1944-2016) foi um dos seis filhos de Petronila e Pierre. Com sua mãe, conheceu o sincretismo da religiosidade brasileira e as manifestações de cultura popular do entorno onde morava: o ritual e a musicalidade do candomblé, o Carnaval, os ritos católicos, os capoeiristas. Com seu pai, aprendeu sobre o mundo da música, vindo a tocar com ele nas noites de festa na sede do bloco Batutas de São José quando tinha apenas 11 anos. Após a morte de seu pai, Naná assumiu o cargo de arquivista da Orquestra Municipal do Recife, função que seu pai já havia exercido, e compra uma bateria – que aprende a tocar sozinho.

De Sítio Novo, Naná ganhou o Brasil e o mundo. De Pernambuco, mudou-se para o Rio de Janeiro, depois Estados Unidos e França. Por cada canto que passou, levou a cultura brasileira, dialogando e associando-a com as sonoridades africanas, indianas, norte-americanas, e muitas outras, assumindo uma musicalidade única. Quando voltou ao seu país natal, na década de 1990, se deparou com uma dura realidade: o Brasil não o conhecia. Toda a sua bagagem musical, da cultura popular, também parecia não compôr o repertório do público: “Eu sou o Brasil que o Brasil não conhece”, repetia.

Lutou pela valorização, não só de sua própria música, como também da tradição e da cultura pernambucana e brasileira. Confira abaixo uma breve linha do tempo da trajetória de nosso homenageado, que completaria 80 anos em 2024.

Compartilhe

Os caminhos de um mestre

Em 2 de agosto, no bairro de Sítio Novo, em Olinda (PE), nasceu Juvenal Holanda Vasconcelos, o Naná, filho de Petronila e Pierre.

Pierre, pai de Naná, tocava nas noites de festa na sede do bloco Batutas de São José e era arquivista da Orquestra Municipal do Recife. Aos 12 anos, Naná começou a tocar maracás e bongôs junto ao pai nas noites. Devido à idade, precisava de autorização legal para se apresentar e não podia nem descer do palco.

Já fazendo parte da cena musical pernambucana, Naná integrou a formação do Yansã Quarteto, grupo que, por fortuna do destino, encontrou o cantor e compositor Agostinho dos Santos em Lisboa, Portugal, em 1966. Na capital lusitana, Agostinho e o quarteto gravaram três EPs que seriam lançados no ano seguinte como um álbum único pela gravadora Rozenbilt, do Recife.

Naná também seguiu caminhos no teatro, fundando, em 1964, o Grupo Construção, com Teca Calazans, Geraldo Azevedo e outros. Com o grupo, participou do musical "Memórias de dois cantadores", onde experimentou, pela primeira vez, a sonoridade do berimbau.

Naná deixou o Recife e se mudou para o Rio de Janeiro. Integrou, junto aos amigos Geraldo Azevedo, Nelson Ângelo e Franklin da Flauta, o grupo Quarteto Livre, que acompanhava Geraldo Vandré em seus shows. Através de Geraldo Azevedo, Naná conheceria um de seus grandes parceiros: Milton Nascimento.

No Rio de Janeiro, Naná conheceu o saxofonista Gato Barbieri e embarcou em turnê com o músico, primeiro para a Argentina, depois Estados Unidos, em 1971, e por fim pela Europa, em 1972. Naná mudou-se para Paris, França, ainda em 1972.

Primeiro álbum solo de Naná Vasconcelos, "Africadeus" lançou os holofotes para o percussionista que, até então, era conhecido por suas parcerias.

O início da parceria e a amizade com Milton Nascimento remonta aos anos 1960 e a ida do músico pernambucano para o Rio de Janeiro. Naná participou da gravação dos discos "Milton Nascimento" (1969), "Milton" (1970) e do celebrado "Milagre dos Peixes" (1973), disco repleto de experimentações e faixas instrumentais.

Uma das mais conhecidas parcerias de Naná foi construída com o multi-instrumentista Egberto Gismonti. Em um encontro em Paris, Gismonti propôs o conceito de um álbum para Naná: dois curumins na floresta, sem qualquer pretensão além da alegria, caminhando e encontrando animais e segredos. Gravado em apenas três dias, "Dança das cabeças" foi um estrondoso sucesso, vencendo o Grammy de Melhor Disco Estrangeiro no mesmo ano.

O sucesso de "Dança das cabeças" rendeu uma turnê mundial para Naná e Egberto. Foi em meio a esse percurso internacional que Naná conheceu os músicos Don Cherry e Collin Walcott, com quem formaria o grupo de jazz fusion Codona. Em um caldeirão cultural, misturando musicalidades brasileiras, indianas, africanas, free jazz e outras tradições musicais, o grupo lançaria três discos: "Codona 1" (1979), "Codona 2" (1982) e "Codona 3" (1983).

Os anos 1980 foram um momento de trânsito musical intenso para Naná, gravando e performando com B.B King, Chaka Khan, Talking Heads, Pat Metheny, Jan Garbarek, Sérgio Mendes, Caetano Veloso e muitos outros.

Durante oito anos consecutivos (1983-1990), a celebrada revista de jazz "Down Beat" elegeu Naná Vasconcelos como o percussionista do ano, atestando seu pioneirismo e sua potência criativa.

De volta ao Brasil em 1990, Naná se dedicou a uma nova perspectiva em sua carreira: a formação musical de crianças e adolescentes. Em parceria com o maestro Gil Jardim, criou o "ABC musical". Voltado para crianças entre 7 e 12 anos, o projeto ensinava percussão e temas musicais inspirados no folclore brasileiro. A primeira edição, ocorrida em Salvador (BA), em 1994, reuniu 80 participantes de três escolas públicas da capital baiana.

Assumiu a direção artística do “Panorama Percussivo Mundial (PercPan)”, festival de música criado em 1994, em Salvador, que reúne artistas dedicados à percussão. Permaneceu no cargo até 2001, dando lugar ao músico Gilberto Gil.

No início dos anos 2000, a Prefeitura do Recife decidiu criar um novo modelo para o Carnaval da cidade, definindo uma celebração de abertura com as nações de maracatu da região metropolitana. Naná Vasconcelos foi convidado para conduzir o evento e reger os mais de 500 batuqueiros participantes. Ocorrendo pela primeira vez em 2003, e permanecendo sobre o comando de Naná até sua morte, em 2016, a abertura deu uma nova visibilidade internacional ao maracatu e à cultura pernambucana.

Reunidos por um convite de Zeca Baleiro para a realização de um show, Itamar Assumpção e Naná Vasconcelos iniciaram as gravações do álbum "Isso vai dar repercussão" em 2001. No entanto, o álbum permaneceu incompleto até 2004, um anos após a morte de Itamar, quando o produtor Paulo Lepetit reuniu as gravações já existente e convocou novos artistas (como Anelis Assumpção, Bocato e Vange Milliet) para finalizar o disco.

Reunindo 120 crianças do Brasil, de Angola e Portugal, Naná Vasconcelos criou o espetáculo "Língua mãe". As crianças, participantes de oficinas nos três países, se apresentaram em Brasília (DF), regidas em coro por Naná e acompanhadas da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, regida pelo maestro Gil Jardim, como parte das comemorações de 50 anos da capital brasileira.

Lançou o disco solo "Sinfonia & batuques", unindo música sinfônica, maracatu, frevo e algumas sonoridades inusitadas, criadas com batidas na água, arrastar de chinelos, choros e gargalhadas. Entre as participações do álbum está sua filha Luz Morena, na época com 11 anos, que assinou como pianista e compositora em três músicas. O álbum venceu o Grammy Latino na categoria "Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras".

Naná participou de gravações de diversas trilhas sonoras de filmes ao longo de sua carreira, como "Os deuses e os mortos" (1970), de Ruy Guerra, e "Pindorama" (1970), de Arnaldo Jabor. Um dos grandes destaques desta história é o filme de animação "O menino e o mundo" (2014), de Alê Abreu, no qual Naná assinou a trilha junto com o Grupo Experimental de Música (GEM). A obra foi indicada ao Oscar em 2016.

A partir da iniciativa do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Neab/UFRPE), Naná Vasconcelos foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela UFRPE em 2015. O título é concedido a personalidades que se destacam em suas áreas de atuação pela relevância de seus trabalhos à sociedade. Naná faleceu no ano seguinte, em Recife (PE), aos 71 anos, após uma longa batalha contra o câncer.

Em 2017, no ano seguinte à morte de Naná Vasconcelos, a prefeitura do Recife fez da abertura do Carnaval uma homenagem ao percussionista. Em 2018, a abertura passou a se chamar Tumaraca e foi transferida da sexta para a quinta-feira antes do feriado. Em 2024, ano em que faria 80 anos, Naná foi novamente homenageado na abertura do Carnaval recifense.

Compartilhe

Seção de vídeo

Criação e Inspiração

O maestro Gil Jardim, a percussionista Aishá Lourenço, o produtor Edelvan Barreto, a multiartista Paz Brandão e a esposa de Naná, Patricia Vasconcelos, falam das particularidades da composição e da criação musical de Naná, das suas fontes de inspiração e da inovação trazida pelo músico para o mundo da percussão.

Compartilhe

"O primeiro instrumento é a voz, e o melhor instrumento é o corpo"

Naná Vasconcelos

Compartilhe

Seção de vídeo

Tocar com Naná

Os músicos Gil Jardim, Egberto Gismonti, Badi Assad, Aishá Lourenço, Virgínia Rodrigues, Peppe Consolmagno e Trilok Gurtu e a esposa de Naná, Patricia Vasconcelos, falam das particularidades de sua percussão e da magnitude de sua musicalidade: a técnica, a carga emocional de sua obra e sua fluidez por diversos estilos musicais. Os depoimentos trazem a admiração de parceiros, alunos e amigos do percussionista, atestando seu caráter único na história da música.

Compartilhe