Pitanga Brava
Nelson nasceu no Recife, em 1912. A capital pernambucana, assim como Olinda, aparece em suas memórias como o local dos primeiros contatos com o mundo – gosto e cheiro. Aos 4 anos, foi com a família para o Rio de Janeiro. Lá, imaginação e palavra ganham espaço. Nos dois casos, a experiência se aprofunda a partir de elementos mínimos, que inauguram universos.
Quanto do Recife restou em Nelson? Quanto da alma pernambucana? E o que é, nele, a marca da vivência carioca?
Nesta seção, abordam a questão pernambucanos e cariocas que acompanharam a trajetória do recifense e que são conhecedores dos movimentos culturais do país. É desse lugar simbólico – o Recife, o Rio, o Brasil, que falam de Nelson.
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Pensamento Crítico Pernambucano
Antônio Cadengue é diretor e teórico. Desde os anos 1970, destaca-se com uma produção cênica nordestina além da temática rural e da cultura popular. A partir de 1990, novo destaque, dessa vez por sua atenção à discriminação de minorias. Montou cinco peças de Nelson e à época da entrevista preparava a sexta: Doroteia.
Inventar o mundo
Eu tinha meus três anos e estava em Pernambuco. Três anos. Aos três anos, o sujeito começa a inventar o mundo. Minha família morava na praia. E eu começava a inventar o mundo. Primeiro, foi o mar. Não, não. Primeiro, inventei o caju selvagem e a pitanga brava.
Nelson, na crônica “Em 1915 era bonito ‘ser histérica’”, em O Óbvio Ululante – As Primeiras Confissões
Começava a existir
Só sei que a pitanga ardida ou o caju amargoso me deu a minha primeira relação com o universo. Ali, eu começava a existir. Ainda não vira um rosto, um olho, uma flor. Nada sabia dos outros, nem de mim mesmo. E, súbito, as coisas nasciam, e eu descobria uma pitangueira ou um cajueiro.
Nelson, no capítulo 2 de Memórias – A Menina Sem Estrela
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Pernambucano Toda Vida
José Luís da Mota Menezes é arquiteto e especialista na história urbana recifense. Conviveu com os Rodrigues que ficaram no Recife, principalmente Fernando, Abelardo e Francisco, tios de Nelson, todos envolvidos com produção artística.
Espanto de Morte
Aos seis anos de idade, ou sete, ou oito, eu teria vivido muito mais a morte, o espanto da morte. Bem me lembro que, na Rua Alegre, guri de calça curta, imaginava: — “Se papai morrer, ou mamãe, ou um irmão, eu me mato.” Pedia a Deus para morrer antes dos outros. Se um de nós tivesse de ficar cego, eu queria ser o cego, ou leproso, eu queria ser o leproso.
Eis o que me fascina no menino que fui: — o pequenino suicida. (…)
Nelson, no capítulo 24 de Memórias – A Menina Sem Estrela
Canalha
Lembro-me do meu assombro quando ouvi alguém chamar alguém de canalha. Já referi o episódio: — foi um bate-boca entre sogra e genro. E, súbito, a velha o xinga de canalha. Pela primeiríssima vez, eu ouvia a palavra. E, garoto, tremi em cima dos pés. Acho que meu espanto iluminou a sala.
Sempre que um menino ou mesmo um adulto vê o nascimento de uma palavra, seu horizonte vital se torna mais denso, elástico, luminoso. A descoberta do “canalha” mudou, amplificou minha realidade. Tinha meus seis, sete anos. (…)
Nelson, no capítulo 76 de Memórias – A Menina Sem Estrela
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Nelson e o Rio
Eduardo Tolentino é diretor e fundador do Grupo Tapa. Encenou três peças de Nelson: Viúva, Porém Honesta (1983), Vestido de Noiva (1990, 2000) e A Serpente (1999). Conheça o site do Tapa: www.grupotapa.com.br
Fundo do Quintal
Em Aldeia Campista, a minha grande felicidade era sonhar no fundo do quintal. Aos nove anos, ou oito, sofri o grande encanto do cinema. (…) Ia ao cinema e, no dia seguinte, estava no fundo do quintal, junto do tanque. Não queria ninguém por perto. De cócoras, recriava tudo o que a tela ampliara.
Eu me imaginava Tom Mix, e William Farnum, e William S. Hart. Dava tiros; matava e morria; depois fugia, levando a mocinha na garupa. Mas falo dos mocinhos, dos cavalos, dos tiros e estou esquecendo alguém, alguém que assombrou minha infância. Eis a verdade: — antes de ser Tom Mix, ou outro deslumbrante cowboy da época, me imaginei Cristo, fui Jesus. Tinha sete, oito, nove, dez anos e me via na cruz. E me crucifiquei mil vezes. Eu, Nazareno, eu, Filho de Deus, eu, de braços abertos, eu, de cabeça pendida, eu, Deus e sem rosto, eu, no regaço da Virgem.
Nelson, no capítulo 15 de Memórias – A Menina Sem Estrela