Tristeza Vital

Nelson no Correio da Manhã

Recorte do jornal Correio de Manhã, onde foi publicado o terceiro capítulo das Memórias de Nelson.
Recorte do jornal Correio de Manhã, onde foi publicado o terceiro capítulo das Memórias de Nelson.

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Contos e Crônicas

Nelson escreveu peças de teatro, contos (“A Vida como Ela É…”), crônicas (Memórias, assim como textos políticos e sobre cultura) e folhetins (desde a obra escrita com os pseudônimos femininos Suzana Flag e Myrna até o romance Asfalto Selvagem – Engraçadinha: Seus Amores e Seus Pecados).

Nesta seção, você conhecerá alguns desses contos e crônicas e poderá explorar as semelhanças e diferenças entre as partes do trabalho rodriguiano.

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Poesia nos Fatos

Arnaldo Jabor é cineasta e cronista. Conheceu Nelson pessoalmente e adaptou uma peça (Toda Nudez Será Castigada) e um romance (O Casamento) seus para o cinema. Segundo o jornalista Ely Azevedo, esses são dois dos três “títulos-chave” da filmografia baseada no autor. Nas crônicas de Jabor, Nelson também aparece — como tema, personagem e influência.

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Despeito

(conto de A Vida Como Ela É…)

O marido era ciumento ou, como ela dizia, suspirando, “ciumentíssimo”. Se Marlene ria um pouco mais alto, pronto. Vinha o mundo abaixo. O fato é que ele achava a gargalhada da mulher quase uma demonstração de impudor. Marlene esboçava um protesto:

— Mas que foi que eu fiz, criatura? Eu não fiz nada!

E ele, ressentido, quase ultrajado:

— Fez, sim! Quem ri desse jeito é gentinha!

Teve que eliminar a gargalhada dos seus hábitos. E, junto de Rafael, sofria de inibições tremendas, incapaz de olhar, de sorrir, de conversar com naturalidade. A família e as amigas estranhavam: “Que é que há? Você que era tão alegre”. Respondia, com involuntária amargura: “Rafael é um caso sério!”. Em voz baixa, dizia para as amigas íntimas: “Não me dá uma folga. Faz uma marcação tremenda. Desconfia até de poste!”. Houve quem sugerisse:

— Não seja boba! Reaja!

Reagir como? E o que ninguém sabia, nem Marlene estava disposta a confessar, é que tinha medo do marido. Rafael possuía um desses temperamentos de ópera, de Cavalleria rusticana; era um bárbaro contido. Certa vez, fizera uma ameaça concreta. Apertando entre as mãos o rosto da esposa, disse, falando quase boca com boca:

— Se me traíres um dia, eu te mato, juro que te mato!

Fidelidade

Marlene podia dizer, a propósito dos ciúmes do marido: “Rafael fala de barriga cheia”. Semelhante desabafo podia ser prosaico, mas era expressão da verdade. Casada há três anos e meio, jamais sua conduta permitira a mais tênue suspeita, o mais vago equívoco. Nenhuma vida mais límpida, mais sem mistério. Chegava a exagerar a compostura de esposa. Não privava com outro homem que não fosse com o marido, os cunhados e os próprios irmãos; não dançava senão com Rafael ou, no máximo, com Leocádio, o único amigo que merecia do marido confiança total. Rafael vivia dizendo:

— Confio mais em Leocádio que em meus irmãos.

Assim honesta, assim fiel, ela pasmava as amigas que, com alegre frivolidade, de uma maneira desapaixonada e apenas esportiva, tinham romances extraconjugais. Seu espanto era sincero e patético: “Como é que você tem essa coragem?”. Muitas replicavam mais ou menos assim: “Teu dia chegará!”. E houve uma, mais desabusada que as outras, que a desafiou:

— Tu ainda gostas do teu marido?

— Evidente!

— Não acredito. Tem santa paciência, mas não acredito.

— Por quê?

E a outra:

— Porque nenhuma mulher pode gostar do mesmo homem por mais de dois anos. E já é muito!

— Que horror!

— É isso mesmo! Batata, minha filha!

A Viagem

De qualquer maneira, a conversa com a amiga irresponsável fez-lhe um mal pavoroso. Pela primeira vez, esboçou a hipótese: “Será que eu?…”. Experimentou um arrepio de medo e volúpia; e tratou de pensar noutra coisa. Daí a dias, o marido aparece com a notícia: ia ter que correr as praças da Europa com o chefe. Ela fez a pergunta: “E eu?”. Rafael suspirou:

— Você fica. Mas o negócio é rápido. Um mês, no máximo.

A tal amiga, quando soube, telefonou: “Parabéns, parabéns! Aproveita, sua boba”. E reforçou: “A título de experiência. Uma vez só”. Marlene protestou, com veemência, de uma maneira quase agressiva. Mas experimentou, outra vez, um arrepio. A verdade é que levava, no mais íntimo de si mesma, as palavras da outra: “Nenhuma mulher pode gostar do mesmo homem por mais de dois anos”. Fechou os olhos e fez os cálculos: estava casada com o marido há três. Gostava dele ainda? Era o mesmo sentimento? A mesma coisa? Pouco depois, estava diante do espelho pondo ruge e pó; e, olhando a própria imagem, pensou: “Não, não é a mesma coisa”. Na véspera da partida, Rafael teve com a mulher uma conversa patética. Antecipando os ciúmes, repetiu a ameaça: “Se, na minha ausência… Eu te mato, ouvis-te?”. Dez minutos depois, ele confessava, com heróica sinceridade: “Não, eu não te mataria, nunca. A ti, não. Mas sim o cara que tivesse a coragem, a ousadia!…”.

No dia seguinte, pela manhã, Marlene levava o marido ao aeroporto. Quando o avião de quatro motores levantou vôo — ela experimentou um sentimento de liberdade absoluta.

O Amigo

Voltou para casa, eufórica. Antes de embarcar, o marido a advertira: “Não te quero de conversinha com homem nenhum. Tu só podes conversar com o Leocádio. É o único!”. Já em casa, ela cantarolou, passou os dedos no piano. A sensação de uma liberdade completa a embriagava. Tomou um banho muito longo e delicioso; acariciou a própria nudez como uma lésbica de si mesma. Pintou-se, perfumou as mãos, os braços, o pescoço; vestiu o seu melhor quimono, calçou as chinelinhas de arminho. Não tinha nenhum plano concreto, nenhuma vontade definida e, no entanto, preparara-se com deleite e com minúcia, como se esperasse alguém. Sentou-se perto do telefone e discou um número. Atendeu, do outro lado, uma voz de homem. Marlene identificou-se e fez o pedido: “Eu queria um favor teu, Leocádio”. Ele foi dizendo: “Pois não, pois não”. Baixou a voz: “Quer dar um pulinho aqui em casa? Agora?”. Leocádio parecia surpreso: “Alguma novidade?”. Ela evitou a resposta direta: “Queria conversar contigo”. O telefonema, o chamado, tudo nascera de um impulso misterioso e inexplicável. Estava agindo sem premeditação e ela própria não se reconhecia a si mesma nessa leviandade. Finalmente, Leocádio chegou. Parecia triste e nervoso. Ela explicou o chamado: “Estou me sentindo muito só… Queria que você me fizesse companhia…”. Leocádio, que estava sentado, ergueu-se. Perdera a naturalidade:

— Bem. Vamos fazer o seguinte: eu tenho um compromisso agora. Volto dentro de meia hora, quarenta minutos. OK?

Perseguição

E não voltou. Até então, Marlene estava incerta dos próprios desígnios. Sentia-se confusa e espantada. Correu ao espelho e se olhou, com uma atenção nova e grave. Dir-se-ia que a imagem refletida era a de uma desconhecida. Livre da sujeição ao marido, queria não sei que experiências inéditas e encantadas. As amigas falavam de carícias que Rafael não admitia. Esperou a volta de Leocádio quarenta minutos, uma hora, duas. E nada. Irritou-se e a irritação clareou seus sentimentos. Sabia agora o que queria. Ligou para a amiga leviana. Esta aplaudiu logo, interessada: — “Tens peito, hein! Assim que eu gosto!”. Deu uma orientação: “Quando o homem começa com chiquê, com nove-horas, a mulher deve ter a iniciativa. Claro! O golpe é dar em cima! Por que não?”. Marlene balbuciou: “Deus me livre!”. Mas a outra, empenhada no caso como se estivesse em jogo um interesse pessoal, insistiu: “Vai por mim!”. Ficou Marlene sem saber o que fazer. Havia, no cinismo da outra, uma perversão que a atraía e repugnava. Acabou ligando para Leocádio. Ele foi o mais efusivo possível:

— Você vai me desculpar, meu anjo. Mas sabe como é: houve um contratempo e eu não pude ir. Mas apareço aí de noite, com minha noiva.

Então, Marlene teve uma atitude de inesperada audácia. Disse: “Com sua noiva, não!”. Foi um grito tão espontâneo, irresistível, que surpreendeu a ambos. Leocádio, sem entender, perguntava: “Por que não com minha noiva?”. Ela já se adiantara muito e não podia recuar. Firme, viril, mordendo as palavras, foi dizendo: “Quero você. Só você. E ninguém mais. Compreendeu?”. Admitiu, num sopro: “Compreendi”. Ela ainda sublinhou: “Pelo amor de Deus, não me faça ser mais clara”. Mais tarde telefonou para a amiga, para contar as novidades. A outra desmanchou-se em felicitações:

— És das minhas! És das minhas! E amanhã, já sabes, quero um relatório completo!

A Espera

Deu folga à empregada. Queria estar só, absolutamente só. Preparou-se, de novo, com um requinte absoluto. Fez questão, sobretudo, das chinelinhas de arminho, que achava, não sei por que, um detalhe bonito e voluptuoso. De repente, batem na porta. Corre, vai abrir. Era um mensageiro, com um cabograma do marido. Leu, com uma espécie de náusea: “Milhões beijos, morto saudades”. Rasgou a mensagem e atirou os pedacinhos de papel pela janela. Continuou a expectativa, até duas, três horas da manhã. Foi se deitar, chorando com exclamações: “Cretino! Cretino!”. Pela manhã, telefonou, magoadíssima: “O que você fez comigo não se faz. Não é papel!”. Acabou, num desafio: “Você parece que tem medo de mim!”. Ele definiu a situação:

— Pois tenho medo de você. Muito. Medo. Porque eu gosto de você, sempre gostei.

Marlene agarrou-se às suas palavras: “Eu também. Eu também”. Então, o rapaz na sua calma amargurada, concluiu:

— Mas eu não traio meu maior amigo. Nunca. Prefiro meter uma bala na cabeça a trair meu maior amigo. É só.

Marlene teve uma explosão histérica no telefone:

— Sua múmia! Seu imbecil! Palhaço!

A Vingança

Não saiu mais de casa, não foi a lugar nenhum. Só despertava da sua dor extática, obtusa, para descompor Leocádio no telefone. Usava as expressões mais baixas, os termos mais ordinários. Ele ouvia tudo até o fim, sem desligar. Finalmente, findo o prazo de um mês, voltou o marido, em outro avião de quatro motores. Vinha, realmente, louco de saudades, certo de que a maior mulher do mundo era a sua. Tomaram o táxi e, durante a viagem, Marlene disse, com o rosto marcado pelo sofrimento e pelo ódio:

— Esse teu amigo, o cachorro do Leocádio, sabe o que me fez? Me pegou à força, me deu um beijo e anda atrás de mim como um cão!

Uma hora depois, Rafael entra pelo escritório de Leocádio. Ao vê-lo, este teve uma exclamação de afetuosa surpresa. Rafael puxou o revólver e atirou nele quatro vezes, à queima-roupa. Leocádio morreu e não teve tempo, ao menos, de desfazer a expressão de cordialidade, quase doce.

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Tristeza Vital

“A vida como ela é…” se tornou justamente útil pela sua tristeza ininterrupta e vital. Uma pessoa que só tenha do mundo uma visão unilateral e rósea, e que ignore a face negra da vida, é uma pessoa mutilada. Por outro lado, nego a qualquer um o direito de virar as costas à dor alheia. Sei que nenhum de nós gosta de se aborrecer. Mais importante, porém, que o nosso frívolo conforto, que o nosso alvar egoísmo – é o dever de participar do sofrimento dos outros. Há uma leviandade atroz na alegria!


Nelson, citado em O Anjo Pornográfico, biografia do autor escrita por Ruy Castro, no capítulo 18, “A Vida Como Ela É…”

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Folhetins

Berta Waldman é pesquisadora de literatura, livre-docente pela USP. Trabalhou com os romances folhetinescos de Nelson. É coautora do livro Nelson Rodrigues, escrito com Carlos Vogt.

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Nelson prezava a pobreza do texto

Arnaldo Jabor é cineasta e cronista. Conheceu Nelson pessoalmente e adaptou uma peça (Toda Nudez Será Castigada) e um romance (O Casamento) seus para o cinema. Segundo o jornalista Ely Azevedo, esses são dois dos três “títulos-chave” da filmografia baseada no autor. Nas crônicas de Jabor, Nelson também aparece — como tema, personagem e influência.

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Memórias de Nelson

Leia no perfil do Itaú Cultural no Issuu textos das Memórias de Nelson. Lá, você acessa as páginas do Correio da Manhã em que foram publicadas na época. Capítulos:

III
XXXIV
XXXVIII
XL
XLIII
LIII
LVI
LVIII
LX
LXXII

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Memórias

Recorte do jornal Correio de Manhã, onde foi publicado o terceiro capítulo das Memórias de Nelson.

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Suzana Flag e Myrna

Berta Waldman é pesquisadora de literatura, livre-docente pela USP. Trabalhou com os romances folhetinescos de Nelson. É coautora do livro Nelson Rodrigues, escrito com Carlos Vogt.

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Asfalto Selvagem e o Casamento

Berta Waldman é pesquisadora de literatura, livre-docente pela USP. Trabalhou com os romances folhetinescos de Nelson. É coautora do livro Nelson Rodrigues, escrito com Carlos Vogt.

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O Casamento, por Arnaldo Jabor

Arnaldo Jabor é cineasta e cronista. Conheceu Nelson pessoalmente e adaptou uma peça (Toda Nudez Será Castigada) e um romance (O Casamento) seus para o cinema. Segundo o jornalista Ely Azevedo, esses são dois dos três “títulos-chave” da filmografia baseada no autor. Nas crônicas de Jabor, Nelson também aparece — como tema, personagem e influência.

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Sem espaço para a virtude

Berta Waldman é pesquisadora de literatura, livre-docente pela USP. Trabalhou com os romances folhetinescos de Nelson. É coautora do livro Nelson Rodrigues, escrito com Carlos Vogt.

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Nelson Rodrigues e outros autores

Berta Waldman é pesquisadora de literatura, livre-docente pela USP. Trabalhou com os romances folhetinescos de Nelson. É coautora do livro Nelson Rodrigues, escrito com Carlos Vogt.