Fiz parte do primeiro curso que o Sergio ministrou na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), na abertura do espaço, acompanhado da Glorinha Beuttenmüller na parte vocal. Ele elegia alguns textos que considerava clássicos emocional e verbalmente, podendo ser canções como a “Ópera do Malandro” do Chico, poemas como “Maria Farrar”, do Brecht, ou trechos de obras de James Joyce. E, através de exercícios lúdicos, jogos de palavras, improvisações tentava nos fazer descobrir a verdadeira síntese e a intenção do autor. A forma da palavra, interna e externa, era exaustivamente trabalhada. “Ator tem de falar bem”, dizia constantemente meu mestre. O estímulo para ver teatro, discutir teatro e assistir aos seus inúmeros vídeos tornava nossos fins de semana trabalhos prazerosos. Ele tinha um dom especial e uma grande alegria em passar seu conhecimento para aqueles jovens ávidos e esperançosos.
Ali finquei os meus pés nessa arte, sempre sobrevivente, mas eterna, e parti para minha carreira contando com o aconselhamento do Sergio e, principalmente, com seus ensinamentos técnicos e a segurança de uma base bem constituída.
Voltamos a nos encontrar em início dos anos 1990, quando ele recebeu a administração do Teatro Delfim e resolveu desenvolver uma série de espetáculos que falavam sobre a nossa história, musicais com temática e melodias brasileiras, quebrando um pouco aquele padrão de que o bom musical teria de ser importado da Broadway. Com esse conceito, e com dramaturgia dele e alguns colaboradores, nasceram O Cortiço, baseado no livro de Aluísio Azevedo, A Era do Rádio, enorme sucesso com assinatura de Clovis Levi, e Ai Ai Brasil, falando sobre nossa independência e miscigenação. Era um orgulho falar sobre nossas proezas, nossas mazelas e nossos sonhos futuros. Esse período foi tão forte na nossa vida profissional que, até hoje, grande parte do elenco se reúne para trocar ideias e comemorar datas importantes.
A luta pelo novo, não se acomodar naquilo que sabia que dava certo, era uma característica marcante na personalidade do Sergio. O novo o fascinava, essa, acredito, a razão de sua mente se manter tão lúcida.
Dali segui para novas peças, televisão, novos diretores, mas o aprendizado inicial e a confiança que adquiri em meu trabalho foram vitais para que minha carreira se desenvolvesse nesse cenário competitivo e por vezes cruel que é o meio artístico. Sempre que fazia uma escolha, passava pelo crivo do meu amigo, que me dava uma luz mesmo que não concordasse plenamente com a opção.
O vínculo forte sempre se manteve e era abastecido nas constantes visitas, nos vídeos e nos DVDs que chegavam de fora, sem falar em seu aniversário, um verdadeiro acontecimento no dia de São Pedro.
O convite para Recordar é Viver [último espetáculo encenado por Sergio] surgiu de forma inesperada quando eu estava em Paris, tirando férias mais do que merecidas. Um dia chego a casa do meu sobrinho, onde estava hospedada, e ele me diz que o Sergio Britto ligou do Brasil. Retornei imediatamente, e ele, com seu imediatismo peculiar, perguntou logo quando eu voltava, pois tinha um trabalho pra mim. Fiquei felicíssima e, em novembro de 2009, fizemos a primeira leitura da peça. Foi um momento realmente encantado! Voltava a trabalhar com o Sergio como companheiro de cena, dirigida pelo meu amigo da vida inteira Eduardo Tolentino e ao lado de uma das maiores atrizes do teatro brasileiro Suely Franco. Foi o maior presente que recebi em toda minha carreira.
Sergio se desdobrava nos ensaios, estudava com afinco seu papel e nos passava um entusiasmo e um prazer em trabalhar que nos contagiava. Sem exagero e falsos elogios, foi o processo mais gostoso de ensaio de que já participei. Personagem difícil, ritmo seguro, mas qualquer problema é superado quando o ambiente é feliz e as pessoas amam o que fazem. Esse, talvez, tenha sido o maior legado que Sergio nos deixou! O amor incondicional pelo teatro, o desejo de morrer trabalhando, pois a vida só fazia algum sentido se ele estivesse em cena.
A estreia de Recordar, em São Paulo, foi sua grande despedida dos palcos. Pela primeira vez ele se apresentava no teatro considerado mais cult da cidade, o Sesc Anchieta, reduto do diretor Antunes Filho e grande sonho do nosso querido Sergio. Antes do espetáculo, passamos o texto e ele estava cansado, havia esquecido grande parte de suas falas. A preocupação tomou conta do elenco, mas não podíamos cancelar a estreia.
Para nossa surpresa, no primeiro sinal ele entrou e ficou sentado, lendo jornal e assistindo ao público chegar. O impacto foi grande com essa recepção surpresa. A peça começou, nós prontos para atacar ao menor vacilo, e foi o espetáculo mais lindo de nossas vidas!!! Sergio e Suely foram ovacionados por mais de cinco minutos ininterruptamente. E quando nós quatro coadjuvantes entramos, a emoção já nos dominava a todos de forma incontrolável.
Tenho certeza de que essa noite foi reservada a ele pelos deuses do teatro, que já o preparavam para brilhar no imaginário de toda uma nação como um ícone da arte brasileira.
Ana Jansen é atriz.