Mariinha,
Recebi da equipe de comunicação do Itaú Cultural uma mensagem me pedindo que escrevesse a você uma carta. Tenho duas ou três coisas para te dizer, quatro anos e cinco meses depois de você ter feito sua viagem à Lua. Chamar a morte de viagem à Lua é uma das imagens mais bonitas que tenho na cabeça, de um de seus poetas favoritos, Jacques Prévert, do livro mais famoso dele: L’opéra de la lune [A ópera da Lua] – que você me deu de presente quando eu era criança, e tenho até hoje.
Conforme o tempo passa, a gente percebe que a maior parte das pessoas que foram personagens da nossa história já fez a viagem à Lua. Escrever uma carta para você é, ao mesmo tempo, muito difícil e muito fácil. É difícil porque não sou espírita, não sou ligado a nenhuma corrente de pensamento que cultiva a comunicação entre os que já fizeram a viagem à Lua e os que continuam por aqui. Não acredito que essa comunicação seja possível e não consigo imaginar escrever uma carta a alguém que já morreu. Sei que muita gente faz isso. Nise da Silveira, por exemplo, publicou um livro com as cartas que ela escreveu a Spinoza, o filósofo que ela mais admirava e que viveu no século XVII. Quando o livro saiu, fiquei pensando se seria capaz de escrever uma carta a Tchekhov, talvez dizendo a ele como lamentava que o Jardim das cerejeiras nunca tivesse tido uma grande versão para o cinema. Mas acho que não.
Então, percebi que, ao contrário de tudo o que disse até agora, era muito fácil escrever uma carta a você e imaginar que ela seria entregue na Lua – porque alguém que ocupou na minha vida o papel que você ocupou não vai nunca desaparecer, vai estar sempre por perto, me fazendo acreditar que a vida é como uma peça de teatro, escrita por um gênio, que sabia o tempo todo que estava escrevendo uma obra-prima, que os atores iriam fazer com muita paixão. Apesar de estar a anos-luz de distância de ser um gênio, um dia, eu também comecei a escrever para o teatro. A sua felicidade quando ficou sabendo foi uma das coisas mais comoventes que me aconteceram até hoje. Tenho certeza de que, mesmo sem ter consciência disso, foi por sua causa que, já na primeira peça, fiz uma personagem dizer ao protagonista: “Todo mundo corre atrás da sua paixão. Se for mesmo paixão, ninguém suporta vê-la escapar”.
Para quem conviveu com você, como tive a sorte de fazer desde que nasci, não existe depressão nem tristeza ou desesperança. Quando pedi que você escrevesse alguma coisa atrás de uma foto que achei por acaso, de você e minha mãe, novinhas, abraçadas, com um sorriso lindo no rosto, com tanta vida pela frente e a certeza inarredável de que tudo sempre iria dar certo, você escreveu: “Kiko, nada como as melhores lembranças, as amargas não. Sua dinda”.
Então, chegou o seu momento de fazer a viagem à Lua. Éramos cinco pessoas acompanhando de perto o que ia te acontecendo na clínica São Vicente. Com Luisa à frente de tudo, e Norma dando a ela uma força, foi decidido que uma cirurgia tinha que ser feita imediatamente. Na entrada do centro cirúrgico, a maca parou um momento para que a porta pudesse ser aberta. Foi a sua deixa. Em quase 70 anos de teatro, você nunca perdeu uma deixa. As pessoas que estavam à sua volta durante o tempo em que a maca ficou parada eram todas pessoas que te amavam muito. Você sabia disso. Então, com a intensidade que, além do trabalho no teatro, fez de Tônia Carrero uma das atrizes mais amadas pelo público de televisão e cinema (os dois veículos em que o ator recorre ao olhar como instrumento fantástico para dizer o que quiser, sem pronunciar uma palavra), você olhou dentro do rosto de cada um de nós e, com os olhos azuis mais imensos que alguém já pode ter visto nesta vida, disse cinco vezes “Obrigada por tudo, meu amor. Fica bem. Adeus”. Aí a porta abriu e você entrou. Mas, antes de ser fechada novamente, deu para ouvir o sinal eletrônico que todo mundo conhece, seguido pela voz impessoal de sempre dizendo: “Passageiros para a Lua, o voo está no horário e deve sair dentro de poucos minutos”.
Tudo isso é devaneio. Parece um blog de adolescente. A verdade é que ninguém escreve nada a quem já se foi. Nem eu a você, nem Nise da Silveira a Spinoza. Mas eu gostei do exercício. Foi muito bom o Itaú Cultural me pedir que escrevesse esta carta. Tenho muita saudade de você. Muita mesmo. Tenho saudade da sua maluquice. Era eu que ia à locadora pegar filmes para a gente ver. Mas logo aprendi que não podia pegar nenhuma série. Se trouxesse para casa alguma coisa com uma caixa com dez DVDs, da produção da BBC, de Guerra e paz, enquanto o último DVD não chegasse ao fim, você não sairia da frente da televisão. Começamos a ver Guerra e paz depois da novela, que você não perdia de jeito nenhum; quando acabou, já era quase hora do almoço no dia seguinte. Apesar de trabalhar para você há mais de 30 anos, nesse dia, a cara da Nina não deixava nenhuma dúvida: ela achou que você tinha enlouquecido.
Foi muito bom ver Guerra e paz de uma tacada só, caindo de sono, sem registrar mais nada do que acontecia na história. Foi muito bom fazer tudo o que nós fizemos: trabalhar com você, contracenar com você numa peça e em outra ser o seu ponto eletrônico. Ouvir seu riso, ou até mesmo seu pranto, quando Paulo Autran fez a viagem à Lua. Foi muito bom ver como era bonita sua relação com Cecil, a confiança cega que você tinha nele como homem de teatro. E o amor oceânico que você teve até o fim pelos seus quatro netos. Foi o carinho que jorrava de você pelos amigos. Foi muito bom, pouco depois do meu aniversário, receber um cartão em que estava escrito: “Kiko queridinho, gosto demais de você. Gosto muito mesmo. Não é sempre que a gente pode dizer isso a alguém. Um mês depois de abril. Mariinha”.
Foi muito bom ser personagem da sua história. Uma grande atriz norte-americana, Ethel Barrymore, disse uma vez uma frase que ficou famosa: “Não existe nada mais morto do que um ator que morreu”. Com todo o respeito pelo talento colossal que a gente pode conferir nesses poucos filmes que ela fez, acho que, quando disse a frase tão famosa, Ethel Barrymore se equivocou. Na imaginação de quem foi contemporâneo de uma delas, atrizes como Tônia Carrero não morrem. Continuam vivendo na Lua, que é logo ali. Onde existe um teatro que não tem cortina. Não precisa. Lá o espetáculo não acaba nunca. É como Guerra e paz em DVD.
Um beijo, meu amor. Fica bem.
Leonardo Thierry é ator, tradutor e dramaturgo. Estreou profissionalmente como ator em 1974 em remontagem de Tiro e Queda, de Marcel Achard. É sobrinho da atriz Tônia Carrero.