Faz um ano. Foram convidados para uma exibição que teria lugar no recém-construído auditorio do Ministério da Educação, em Buenos Aires. Lembro-me que era uma tarde fria, que pouca gente estava na sala: Guido Aristarco, Walter Lima Junior, cinefilos argentinos e o diretor da fita, Fernando Birri — um homem magro, com traços que denunciavam sua ascendencia italiana, que no Festival de Mar del Plata nos tinha mostrado sua primeiro longa-metragem, “Los Inundados” (1). Esta, denunciava um autor que na profissão que escolhera tinha objetivos determinados. Acreditava, principalmente, que o cinema podia de algum modo contribuir para a luta contra a injustiça social. Portanto, clara e diretamente, propunha Birri o “o que” e o “por que” de sua obra.
Cinema social. A palavra poderia prestar-se a um mundo de quiproquós, a fim de que diferentes gatos se misturassem no mesmo saco. Mas quando a projeção de “Tire Die” se iniciou, a natural expectativa cedeu pouco a pouco lugar á surpresa. Aquilo não era possível acontecer na Argentina, país com um passado cinematografico pouco encorajador, modernamente revivido em exercícios mais ou menos pueris de alguns autores incapazes de disfarçar a mágoa de não terem nascido em Paris. E, no entanto, ali estava a coisa diante de nossos olhos. Pela primeira vez uma obra de arte cinematografica produzida na América do Sul era sul-americana. Pela primeira vez, e num filme, o homem deste continente, isto é, o homem-maioria, o “lado de lá” desses milhões de individuos cujos direitos a uma vida digna foram retirados desde os tempos de Cortez, tinha lugar numa película.
Defensores de um cinema que se integre com as contingencias de uma realidade específica, seduziu-nos na fita este seu poder de transcendencia continental, poder cuja ausencia redundaria — como numerosas vezes ocorre entre nós e alhures — no mero registro do insólito ou, quando muito, na constatação mais ou menos complacente.
“Tire Die” é, antes de mais nada, o que se poderia chamar de um filme voltado de dentro para fora. Se fôr verdadeira a afirmação de Cavalcanti de que “deve ser inculcada nos neófitos a consciencia do papel do cinema, da sua responsabilidade para com o público”, o filme de Birri é, a nosso ver, o seu mais perfeito exemplo e o único. Em tudo e por tudo “Tire Die” é, ele sim, um filme insolito. Nele, o conceito de documentario adquire um sentido novo, ou melhor, carrega-se de sentido e, a partir deste filme, já não será possível sustentar concepções ultrapassadas sobre sua estrutura, sua concepção, seus objetivos e — somos forçados a dizê-lo — seu conteudo. Já não será possível, a partir de “Tire Die”, rotular como documentaristas a turismos mais ou menos virtuosisticos nem filmes que revelem abordagens intelectualizadas, frias, personalizadas, de determinados problemas socialmente reconhecidos como urgentes. Principalmente, não será mais possível fazer, em sã consciencia, filmes “neutros” e confusos. E confusos porque neutros. Pois “Tire Die” é um filme claro. Violentamente claro.
Sua clareza e seu dinamismo intrínseco provêm do proprio roteiro, realizado com base numa estrutura dialetica entre as imagens e entre estas e a faixa sonora. O resultado é um quase didatismo. A camera capta primeiro a realidade tal como ela se apresenta, em seguida separa seus elementos de acordo com sua relação causal; som (direto e narração) e imagem fundem-se a seguir na operação de ascensão até as causas primeiras, globais, nas quais o fato particular (embora diga respeito a uma pluralidade de elementos humanos) se inscreve no contexto social nacional e, por natureza e extensão, continental.
Os personagens de “Tire Die” são favelados que habitam uma área pantanosa, à entrada da cidade de Santa Fé, sob uma ponte de estrada de ferro. Ao aproximar-se de cada composição as crianças da favela sobem na ponte a fim de pedir esmolas aos passageiros do trem, aos gritos de “tire dié!… tire dié!” (ao pé da letra significaria “jogue um tostão” ou — o popular “me dá um dinheiro aí!…”). Estas crianças — que não podem ser muito novas, pois é preciso músculos para galgar a ponte e folego para correr atrás dos vagões, nem muito velhas para melhor estimular a compaixão dos passageiros — são o sustentaculo economico da favela. Fazer, portanto, o “tire dié” tornou-se para eles praticamente uma instituição.
Uma instituição desumana, que encontra similares em todos os grandes centros urbanos do hemisferio.
O filme inicia-se com uma ampla visão aerea da cidade de Santa Fé. O narrador dá o “dossier” do grande centro urbano: população, patrimonio, atividades economicas, renda “per capita” etc. Não se trata portanto de um lugar geografico escolhido a esmo. A cidade faz sua declaração de bens, dos quais fazem parte os barracos dos que vivem do “tire dié”. As relações que regulam a vida cotidiana na favela são mostradas através de uma forma de “cinema verdade” com os habitantes do local e pela descrição das atividades das crianças. Pergunta-se a uma mãe como e de que vive sua família. Quando ela tem filhos que se dedicam à esmola na ponte, mostra-se então todo o universo em que estes mantêm relações. O absurdo de sua condição emerge então como uma conclusão necessária do espectador, sem que o filme se esgote em si mesmo, isto é, sem que se limite a uma simples denuncia, porque deste “ersatz” dialetico emergem os responsaveis pelo estado de coisas: a metropole tentacular que se desenvolve através de um processo alienatorio e unilateral de aproveitamento dos recursos economicos. Qualquer coincidencia com a “cidade que mais cresce no mundo” é mera semelhança…
Por outro lado, “Tire Die” tem uma outra importancia, quem sabe maior do que o seu conteudo. Trata-se, na realidade, da primeira experiencia latino-americana, realmente concretizada, de cinema como produto de esforço coletivo. Além de coletivo, universitario. Aqueles que combatem pela reformulação de nossa estrutura de ensino em nível superior hão de perceber de imediato a importancia desse fato, pois “Tire Die”, na verdade, tem varias dezenas de autores. São os alunos de Fernando Birri, que ele dirige no Instituto de Cinematografia da Universidad del Litoral, em Santa Fé (2). Recém-saído do “Centro Sperimentale di Cinematografia” de Roma, Birri iniciou os cursos de cinema na Universidad del Litoral em abril de 1957, para uma turma inicial de 104 alunos e, no dizer de um seu discípulo, Juan Fernando Oliva, “com o desejo de transcender sua experiência conceptual e tecnica adquirida na Europa para uma linguagem cinematografica nacional na sua forma e conteúdo”. Dessa primeira turma faziam parte pessoas de todas as procedencias e níveis sociais: operarios, advogados, fotografos, uma dona de casa, um guarda policial, um industrial e um camponês. “A conexão do filme com os problemas esteticos, sociais e morais da epoca, sua função educativa, o aproveitamento de sua eloquencia para ajudar a melhorar a vida do homem como registro veraz, porém sensível do acontecer humano e, finalmente, como veículo de relação entre a arte e o povo, partindo do zero… foi a tecnica (e continua a sê-lo) dos cursos, fundindo a autenticidade da teoria no plano objetivo do trabalho pratico, mediante a intervenção direta de todos os alunos na crítica e na autocrítica do processo de estudos. Para tomar o essencial da vida e transformá-lo numa elaboração criativa da realidade, era necessario dominar um método de trabalho: a pesquisa”. A realidade será então registrada com maquinas fotograficas, lapis e cadernos.
Assim, durante os anos de 1956, 57 e 58, a equipe de Birri realiza “Tire Die”. Três anos para um filme de trinta e poucos minutos (3). Na estreia da fita, à qual compareceram quatro mil espectadores, uma circular definia os propósitos do grupo: “Colocar o cinema a serviço da Universidade e a Universidade a serviço da educação popular”. Para Birri, a Universidade “deve ser um centro produtor de cultura. Cultura, neste caso, quer dizer hoje e aqui, sensibilidade para os grandes problemas e temas nacionais” e acrescenta: “A escola de Santa Fé está procurando e encontrando um estilo; o que é mais significativo é o fato de que este estilo não é o resultado de uma busca formalística, mas precisamente o contrário: da procura de um sentido, de um conteúdo. E esse sentido consiste em querer ser util à coletividade; sua tecnica não é, por conseguinte, um metodo de invenção, mas de descobrimento”.
“Ser útil à coletividade” — quantos não se sentem tentados a tapar o nariz diante de semelhante afirmação, heretica para os que se denominam Artistas, para os quais a expressão entra na Idade Media no momento em que desce para as ruas. Sim, porque para os modernos artífices das “catedrais” cinematograficas, quando se vai até o povo, até a rua, se “desce”, se “renuncia” aos celestes desígnios de uma arte olímpica.
Aos moços de Santa Fé não interessa dialogar com meia duzia de iniciados. A frase de Grierson “tratamento criativo da realidade” implica para eles na possibilidade de um dialogo o mais vasto possível. E só é possível falar a muitos sobre aquilo que diz respeito a muitos, é atual e urgente. Em cinema como no resto. E nisto está o pioneirismo da escola de Santa Fé. Para concluir fazemos nossas as palavras do Reitor daquela Universidade, pronunciadas por ocasião da estréia de “Tire Die”: “Nosso dramatizado e confundido país suportou e suporta largos climas de indiferença individual, bem como as consequencias de profundos enganos políticos. A Universidade considera que dentro dessa consciência coletiva ou, mais exatamente, dentro dessa falta de consciência ou consciência incipiente, o nascimento de seu Instituto de Cinematografia corresponde a uma crise da verdade, que é sempre crise de crescimento”.
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(1) Prêmio “opera prima” para F. Birri no último Festival de Veneza.
(2) Os cursos do instituto desenvolvem-se em 3 anos letivos, compreendendo as seguintes disciplinas: introdução ao cinema, direção, produção, etica e sensitometria, camera, direção de fotografia, roteiro, gramatica cinematografica, sociologia, historia do cinema, crítica, compaginação, integração cultural, meios audiovisuais, espanhol e literatura argentina, historia e geografia, matematica, física e química.
(3) Além de “Tire Die” o Instituto realizou uma serie de curtas metragens, entre os quais filmes sôbre arte (“La pintura de Lopez Claro”), filmes para crianças (“El retabilio de Perico”), científicos (“Brucelosis”), problemas de habitação (“Los 40 cuartos”), etc.