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Pesquisa de políticas culturais na Argentina, indicadores e a cartografia cultural da América

José Alejandro Tasat é graduado em psicologia pela Universidade de Buenos Aires e doutorando em Educação na Universidade Nacional de Tres...

Publicado em 29/09/2014

Atualizado às 21:00 de 02/08/2018

José Alejandro Tasat  é graduado em psicologia pela Universidade de Buenos Aires e doutorando em Educação na Universidade Nacional de Tres de Febrero (UNTREF). Autor, entre outras publicações, Introdução à análise de políticas públicas (VIRTUAL UNTREF, 2002), Teoria das organizações e sistema de decisão (UNTREF VIRTUAL, 2004) e análise da situação das organizações (EDUNTREF, 2009). Coordenador de Gestão e Articulação Acadêmica na Secretaria Acadêmica UNTREF (2012). Coordenador do Projeto de Pesquisa “O pensamento de Rodolfo Kusch” (2011-2012). Coordenador da Conferência I-II-III sobre o pensamento de Rodolfo Kusch (2011-2012)

Esta entrevista aconteceu durante o V Seminário Internacional de Políticas Culturais realizado no Rio de Janeiro pela Fundação Casa de Rui Barbosa em parceria com o Observatório Itaú Cultural. Ele nos conta sobre suas pesquisas: uma referente aos indicadores culturais dos municípios de Buenos Aires, outra à cartografia cultural da América, e também alguns desafios e considerações para a elaboração de indicadores para mapear as ações culturais.

1 – O senhor desenvolveu a pesquisa Políticas Culturales de los Gobiernos Locales en el Conurbano Bonaerense, pelo Centro de Políticas Culturales Patricio Lóizaga da UNTREF. Conte um pouco sobre essa pesquisa, a metodologia aplicada e os desafios enfrentados.

JOSÉ TASAT – A investigação surge em 2007. A ideia era investigar os municípios da região de Buenos Aires. Os cursos de gestão, de mestrado em políticas e gestão migratória internacional da Universidade Três de Fevereiro estão ao redor do Distrito Federal da Argentina, que se denomina “Conurbano Bonaerense”. E lá nós temos o Instituto de Políticas Culturais. O que é uma investigação em governos locais? Como é a gestão em governos locais? A conceituação do estudo da cultura é uma prática constante. Para nós, é um campo disciplinar que está se constituindo. O campo da educação tem um destinatário claro, é o aluno; no campo da cultura, esse destinatário seria denominado de maneira diferente: espectador, visitante… Pode ter milhares de outras formas, mas percebemos que esse campo disciplinar em construção, referente à cultura nos governos locais, tem uma prática muito semelhante.

Nossa metodologia: entrevistas em profundidade com funcionários, com grupos focados nos destinatários e com quem participa dos eventos, dos espetáculos, das oficinas ou das distintas promoções ou produtos de ordem da cultura. Realizamos também um estudo orçamentário comparativo. E, nesse estudo, descobrimos que os municípios investem muito mais que o governo provincial e o Estado Nacional. Enquanto o governo federal investe 0,10% na Secretaria da Cultura, nos municípios, esse número varia entre 2 e 4%.

Há uma marca forte no campo da cultura, uma marca que está palpitando, aparecendo na agenda pública, mas não como um problema. Existe a possibilidade do que se denomina “domínio de gosto”, o domínio daquilo que pode ser percebido por todos os habitantes de uma maneira concreta, real, a partir do momento em que o município começa a satisfazer certos direitos: da infraestrutura geral à educação, a cultura pode ser um modo de costurar laços sociais que poderiam se perder.

Por isso, nós, os envolvidos com estudos culturais, acreditamos que eles não são apenas uma maneira de observar as capacidades institucionais – chamamos “capacidades institucionais” a forma de registrar direitos culturais, elementos, espetáculos, o cuidado com o patrimônio. O âmbito da cultura é o sentido compartilhado, porque o funcionário, um cidadão, a sociedade toda compartilha um sentido presente, visível ou oculto. E isso nos instiga a pesquisar o que há ali. É nesse sentido compartilhado que se anunciam palavras, imaginários: trata-se de um horizonte simbólico compartilhado.

2 – Nesse estudo, o senhor se deparou com realidades culturais bastante distintas, mas pôde ter como baliza os indicadores do orçamento cultural em cada município. No Brasil, os estados e municípios também apresentam uma diversidade acentuada e ainda estamos desenvolvendo nossos indicadores para balizar e acompanhar as políticas públicas culturais. Com base em sua experiência e na realidade do seu país, onde a geração desses indicadores é uma tendência forte desde os anos 1990, quais considerações gostaria de fazer aos gestores públicos e privados brasileiros, que ainda estão encontrando metodologias, processos e indicadores para avaliar suas ações?

JOSÉ TASAT – A respeito dos indicadores, os que imagino serem os primeiros são os quantitativos.

O estudo tem a ver com pensar na magnitude. Por fim, voltamos à qualidade, a pensar no qualitativo que está circulando no campo da cultura. Cultura não é outra coisa senão um horizonte simbólico compartilhado, de forma hegemônica e antagônica, numa tensão permanente, em que se pode ver a tramitação da vida de quem habita e mora nesse lugar. Mas sempre com uma ilusão de projeto: sem ilusão de projeto, não haveria sociedade. Então, esses indicadores não podem mostrar somente a magnitude do que vão avaliar, precisa existir algum outro sentido compartilhado nessa linguagem, que é sempre um laço social. Embora não possamos vê-los, os laços sociais sempre estão presentes. E não é por sequelas de leis econômicas ou políticas: é a cultura, como disse Carlinhos Brown, que transforma; é o coletivo que transforma. Ele estava na Bahia, com Albino Rubim (professor da Universidade Federal da Bahia e pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura; atual secretário estadual de cultura da Bahia), e dizia: uma coisa é a Bahia, outra coisa é o imaginário da Bahia. Caymmi e Jorge Amado criaram um imaginário. Em Porto Alegre, uma praça tem um nome oficial e outro nome, dado pelo povo; tem uma forma que a denomina e o povo a denomina de outra maneira. Entre o imaginário e o simbólico sempre há algo fático. O fático não é a magnitude, é uma parte do relato, uma parte fundamental, que lhe traz quase outro sentido compartilhado e que evidentemente o gestor cultural pode alinhavar. Isso porque “gestor” tem a etimologia da palavra gestual. E “gestual” também tem a etimologia da palavra gesta (ação), e não há ação sem o coletivo. Não é que o artista tenha se desprendido da sociedade e se tornado independente: o artista se constitui como uma possibilidade de sentidos amarrados à sociedade.

E é isso que parece ter surgido nos últimos tempos: que os indicadores culturais não são de magnitude quantitativa, mas de magnitude qualitativa. Fomos procurar saber e percebemos que o funcionário do governo local gere com três sequelas invisíveis em sua forma de ser: uma é a metáfora do ateliê – toda ação da cultura que parte do governo para os cidadãos está em uma área de expressão como se fosse a expressão, a autorrealização que com isso se alcança; há também evidentemente a metáfora da clínica – uma ação terapêutica que se compartilha nas distintas linguagens artísticas que o âmbito da cultura permite. E ainda existe aquilo que denominamos metáfora da provedoria, do hipermercado – a cultura é convertida em algo, seja em um simples desfrute pessoal ou compartilhada apenas dentro de grupos setoriais, de linguagens, e esse algo nos dá a percepção do que gostamos que nos una; o marco é quais são os outros entre os quais eu posso conviver.

Não é que o conhecimento seja apenas disciplinar: conhecemos somente uma parte. As linguagens artísticas e culturais seguem sendo apenas disciplinares e, quanto mais disciplinares, menos possibilidade de vínculo com o outro existem. Uma linguagem de rock seguramente não será compartilhada com a linguagem da música popular, uma linguagem nunca será capaz de entender a outra.

Eu estive na Bahia e lá existe um museu de arte moderna onde, aos sábados, há jazz para a classe média. Aos domingos, todos vão tirar fotos e olham para o horizonte, os que estão abaixo da estrada, convivem na favela e ocupam esse outro espaço do museu de arte moderna. Há outro tipo de sabedoria, outro estar e nesse outro estar não existem implicâncias entre este e aquele tipo de música, enquanto àquele incomoda o som alto, dissonante. Essas duas coisas não são contraditórias, como no pensamento filosófico em que tudo se baseia em verdadeiro, falso, branco ou negro. As coisas convivem… E nesse convívio se aceitam. Se não, a nossa bagagem resultará num único modelo de vida, uma única cultura. Enquanto tivermos a possibilidade de que a tradição e a inovação ofereçam transformação, a cultura sempre estará presente. Por quê? Porque os ancestrais, os povos originários encontrados na América, o campesino, o popular e o obreiro, há algo deles que não se pode reprimir, que sempre aparece e aparece de uma maneira que convive com a elite cultural hegemônica. O que se quer não é outra coisa senão negá-los, e o que se nega sempre aparece.

3 – Uma de suas pesquisas é sobre a cartografia cultural da América. Gostaríamos que o senhor falasse brevemente sobre esse tema.

JOSÉ TASAT – A cartografia não é apenas uma teoria do lugar. A cartografia não é só um mapa. Hoje em dia, olhamos um mapa a partir de um lugar. Pensar na cartografia é perceber, é se posicionar eticamente como cientista, processar o que está acontecendo. A cartografia nunca é simplesmente a linguagem de um lugar artístico ou de um lugar onde se produzam os eventos culturais. A cartografia deve se constituir nesses horizontes simbólicos compartilhados, que são espaciais: espaços de morar, de estar, de habitar, em contato com o outro. Sempre há uma tensão, conflito, porque a vida é conflito. Mas sempre há também uma possibilidade de diálogo, que, no campo da cultura, não é processado de outra maneira senão por setores. Eles condicionam as possibilidades de atrelar a tradição e a inovação.

Em relação à América, o filósofo com o qual trabalhamos na Argentina e por meio do qual nos aproximamos da possibilidade de abordar os setores culturais é Rodolfo Kush. Ele tem um livro muito interessante, chamado A Geocultura do Homem Americano. Ele diz que não vivemos no melhor dos mundos, vivemos na América, vivemos em uma dualidade permanente, em uma contradição permanente. Pensamos na costa e também no andino e não se pode conviver entre eles. Saiba que há um conhecimento cristalizado, um conhecimento forte, que se tem como alta certeza, e uma sabedoria de viver. Nessa sabedoria, a cultura é captada de outra maneira. No campo andino, no mapuche ou na possibilidade do guarani. Seguramente, é muitíssimo fundamental que não seja como se passou na América, pois o que se continua negando, o que se chama trabalhista, movimento estudantil ou manifestações sempre é uma dignidade do que aparece na cultura. A dignidade do que aparece na cultura é a convivência com o outro, não é outra coisa. E isso é a cultura. O que o gestor faz é fundamental. O gestor cultural alinha as possibilidades de intenções diferentes em algo novo. Visualiza e identifica a visão. Trata-se de saber onde estamos parados e isso não necessariamente é saber que o sol sai sempre do leste. Porque a Europa e sua forma de constituir nosso sistema – essa forma de conhecer – está totalmente arranjada. Temos de entender o medo de nos darmos conta do que somos quando chega o momento de aceitar o originário, o negado. Nesse negado, há algo certo que não queremos ver: somos nós mesmos. Afinal, por trás de todo eu, há um outro.

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