Em quatro anos, a editora Record planeja lançar 65 títulos do autor, entre poemas, crônicas e antologias
Publicado em 31/10/2022
Atualizado às 18:04 de 28/10/2022
por André Bernardo
Das 18 esculturas interativas espalhadas pela cidade do Rio de Janeiro, a do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), instalada no calçadão de Copacabana, é a mais visitada. Não à toa, ganhou status de atração turística — no verão, cariocas e visitantes chegam a fazer fila para tirar selfies. É, também, a mais vandalizada. Desde que foi inaugurada, em 30 de outubro de 2002, a estátua de bronze já teve seu óculos furtado 14 vezes. “Não roubem meus óculos. Leiam meus livros”, protesta o cartaz escrito por um admirador secreto.
A escultura, de autoria do artista plástico Leo Santana, foi esculpida a partir de um registro do fotógrafo Rogério Reis. Em 1982, ele trabalhava no Jornal do Brasil quando foi pautado para ir à casa de Drummond, em Copacabana, tirar fotos para um caderno especial, escrito pelo jornalista João Máximo, em homenagem aos seus 80 anos. “Naquele tempo, não havia interfone. Cheguei e subi direto. Quem abriu a porta foi o próprio poeta. Não era de muita conversa, mas demonstrou simpatia”, recorda Reis.
O anfitrião logo sugeriu a varanda. Em busca de algo mais intimista e menos previsível, o visitante perguntou se não havia outro lugar. Drummond, então, ofereceu o escritório. Ainda não era bem isso que o fotógrafo queria. Foi quando tomou coragem e perguntou se tinha algo de que Drummond gostava de fazer. “Olha, meu jovem, tenho o hábito de sentar no chão para ler”, revelou. Ao término da sessão, sentado sobre o tapete da sala, até um sorrisinho discreto Reis, então com 28 anos, conseguiu arrancar do arredio poeta. No ano seguinte, Reis voltou ao número 60, da Conselheiro Lafaiete. Dessa vez, levou Drummond para passear pela orla. Em frente à Rainha Elizabeth, o fotógrafo sentou-se em um dos bancos do calçadão e, de costas para o mar, sugeriu uma pose ao fotografado. “Como você ousa posicionar um mineiro de costas para a praia?”, indagou Drummond, em tom de brincadeira. “Poeta, é melhor ter a enseada de Copacabana como fundo do que um paredão de concreto”, explicou o fotógrafo. Na frente do banco, o verso “No mar estava escrita uma cidade”, do poema Mas viveremos, extraído do livro A rosa do povo (1945).
O poeta hoje
Em outubro de 2021, Carlos Drummond de Andrade tornou a ser notícia. Depois de uma década na Companhia das Letras, que publicou 54 títulos, entre poesias, crônicas, diários, antologias e infantis, a obra do mais importante poeta da literatura brasileira voltaria a ser publicada pela Record, em 2022. Drummond chegou à editora em 1984, depois de sair da José Olympio, e lá permaneceu até 2011, quando migrou para a Companhia das Letras. À época, o fato de Jorge Amado (1912-2001) e Fernando Sabino (1923-2004) serem contratados da Record pesou na decisão de assinar com a editora. Curiosamente, a José Olympio, que publicou a obra de Drummond por 42 anos, foi incorporada ao Grupo Editorial Record em 2001. O anúncio oficial do seu retorno à Record aconteceu em 31 de outubro de 2021, no Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), a cidade-natal do poeta.
Ao longo de quatro anos, a Record pretende lançar 65 títulos. Desses, sete são de material inédito, divididos por temas, como cinema, política e culinária. “A obra de Drummond se ramifica em várias direções — poesia, crônica, aforismos, diários, etc. — e em vários tons — lírico, meditativo, humorístico, nostálgico, etc. Portanto, há várias formas de acessá-la, uma para cada pessoa, no momento da vida que estiver”, explica Rodrigo Lacerda, editor-executivo da editora. “Pensando nos jovens leitores, criamos um ambiente virtual, em permanente desenvolvimento. Estamos adicionando vídeos e áudios do poeta, reprodução de suas entrevistas em jornais, autocaricaturas e fotografias, etc”.
Os primeiros títulos já foram relançados: Alguma poesia (1930), Sentimento do mundo (1940), Claro enigma (1951) e Antologia poética (1962). Além de um novo projeto gráfico, criado pelo designer Leonardo Iaccarino, os quatro volumes ganharam posfácios escritos pelo estilista mineiro Ronaldo Fraga, o líder indígena Ailton Krenak, o escritor moçambicano Mia Couto e a cantora fluminense Zélia Duncan. “Eu era apenas uma adolescente quando botei os olhos em Drummond pela primeira vez. Não lembro exatamente que idade eu tinha, mas nunca vou esquecer a impressão que me causou”, confessa Zélia que compara o poeta a um cantor e seus poemas a grandes hits. Faz sentido. Muitos deles são reconhecidos pelo público aos primeiros acordes. Ou melhor: aos primeiros versos.
Antologia Poética traz cinco dos mais famosos: José (dos versos “E agora, José? / A festa acabou, / a luz apagou, / o povo sumiu, / a noite esfriou, / e agora, José?...”); Quadrilha (“João amava Teresa que amava Raimundo…”), Mãos dadas (“Não serei o poeta de um mundo caduco…”), No meio do caminho (“No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho…”) e Poema de sete faces (“Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida…”). Uma curiosidade: Poema de sete faces foi publicado originalmente no dia 25 de dezembro de 1928, no Diário de Minas, sob o pseudônimo de Carlos Alberto. Ao longo da carreira, segundo o pesquisador Fernando Py (1935-2020), o poeta usou 62 pseudônimos, como Antônio Crispim, Barba Azul e Inocêncio Raposo, entre outros.
Para colaborar na reedição da obra drummondiana, Lacerda convidou dois especialistas no autor: o jornalista e escritor Edmilson Caminha e o poeta e ensaísta Alexei Bueno. Caminha é o responsável pela fixação de texto de Alguma poesia, Sentimento do mundo e Claro enigma, e Bueno, de Antologia poética, além de ser o autor das bibliografias dos quatro volumes. “Por ‘fixação de texto’, entenda-se o estabelecimento da forma definitiva que devem ter os escritos do autor, conforme as primeiras edições ou as eventuais mudanças por ele feitas ao longo do tempo”, explica Caminha que não se esquece do dia em que, por volta dos 12 anos, leu os versos “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo” no Colégio Sete de Setembro, em Fortaleza (CE). “Ainda hoje, impressionam-me a profundidade e a abrangência do que disse o poeta com tão poucas palavras”, confessa.
Autor de Drummond: a lição do poeta (2002), Em louvor a Drummond (2012) e O poeta Carlos & outros Drummonds (2017), Caminha conta que entrevistou o poeta em janeiro de 1984 para o suplemento literário do Diário do Nordeste. Desde então, trocaram cartas até sua morte, em 1987. Na ocasião, sua mulher, Ana Maria, estava grávida da segunda filha. Terminada a entrevista, o entrevistado pediu ao casal que comunicasse a chegada do bebê. “Uma semana depois, recebemos em Fortaleza um poema de Drummond dedicado a Ana Carolina, depois incluído na coletânea Poesia errante (1988)”, orgulha-se Caminha.
Este mês, mais sete títulos de Drummond chegam às livrarias: três de poemas, A rosa do povo (1945), Viola de bolso (1952) e As impurezas do branco (1973); duas antologias, Quando é dia de futebol (2002) e O gato solteiro e outros bichos (inédito, sobre bichos e natureza); e dois infantis, A cor de cada um (1996) e Criança dagora é fogo (1996). A rosa do povo, As impurezas do branco e Quando é dia de futebol têm posfácios de Affonso Romano de Sant’Anna, Bruna Lombardi e Pelé; e A cor de cada um e Criança dagora é fogo, ilustrações de Mayara Lista.
“Apesar de ter sido um excelente prosador, com um livro de contos muito bom e um vasto e admirável conjunto de crônicas, Drummond era essencialmente poeta. Os outros gêneros, mesmo com toda a sua qualidade, não atingem essa primazia”, avalia Bueno que, ao ser indagado sobre seu título favorito, elege logo dois: Claro enigma, o ponto culminante da obra do poeta, e A rosa do povo. “Drummond conquistou pleno reconhecimento literário nacional, está na alma das pessoas, e lá ficará, embora, como normalmente acontece, seus poemas mais icônicos quase sempre não estejam entre os seus maiores”.
De Itabira para o mundo
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira, a 111 quilômetros de Belo Horizonte (MG), no dia 31 de outubro de 1902. Seus pais eram o fazendeiro Carlos de Paula Andrade e a dona de casa Julieta Augusta Drummond de Andrade. Em 1916, foi matriculado como aluno interno no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, onde conheceu Gustavo Capanema (1900-1985) e Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990). Interrompeu os estudos por motivo de saúde — suspeita-se que teve tuberculose — e regressou a Itabira. Dois anos depois, ingressou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, na região serrana do Rio, onde publicou seu primeiro texto aos 15 anos: Vida nova, em 14 de abril de 1918, no jornal Aurora Collegial. Apesar de ser considerado um ótimo aluno e tirar sempre notas boas, foi expulso em 1919 depois de um desentendimento com o professor de português. Motivo? “Insubordinação mental”. “Drummond foi expulso de forma brutal. De vez em quando, era convidado a visitar o colégio como ex-aluno, mas nunca quis. ‘Não posso ir a um lugar que me expulsou’, costumava responder”, afirma o jornalista e escritor Humberto Werneck, que edita o portal dedicado ao poeta (https://www.carlosdrummond.com.br/) e, a convite da Companhia das Letras, está escrevendo uma biografia sobre Drummond, ainda sem previsão de lançamento.
Em 1920, Drummond mudou-se, com a família, para Belo Horizonte. Na capital mineira, publicou seus primeiros textos no Jornal de Minas, que funcionava no térreo do prédio onde morava.
“Sobre o que pretende escrever?”, perguntou o diretor. “Sobre tudo”, respondeu o aspirante a jornalista. “Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível”.
Seis anos depois, a convite de Alberto Campos (1905-1933), Drummond tornou-se redator-chefe do Diário de Minas. Em 1934, chegou a trabalhar como redator, simultaneamente, em três periódicos: Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde. “Minha produção jornalística é muito maior e incomparavelmente superior, do que a de poeta, mas me deram este título de poeta, quando, na realidade, eu sou jornalista”, declarou a Gilberto Mansur, da revista Status, em julho de 1984.
Por exigência do pai, Drummond concluiu o curso de Farmácia, mas nunca exerceu a profissão. Em 1924, conheceu e fez amizade com Mário de Andrade (1893-1945) e Manuel Bandeira (1886-1968), duas de suas maiores influências literárias. Missivista convicto, trocou intensa correspondência com os dois. Um ano depois, se casou com Dolores Dutra de Morais. O casal teve dois filhos: Carlos Flávio, que morreu meia hora depois de nascer, em 1927, e Maria Julieta (1928-1987). Ainda em 1928, publicou seu poema mais famoso: “No meio do caminho”, na Revista de Antropofagia. Em 1930, lançou Alguma poesia, seu livro de estreia, com tiragem de 500 exemplares. Pagou do próprio bolso a edição. No mesmo ano, assumiu o cargo de oficial de gabinete do secretário do Interior, Gustavo Capanema, seu amigo de infância. Quatro anos depois, quando Capanema foi nomeado ministro da Educação e Saúde Pública do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), Drummond se transferiu para o Rio. Ocupou o cargo de chefe de gabinete até 1945, quando pediu demissão e começou a trabalhar na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Em 1949, Maria Julieta, então com 21 anos, se casou com o advogado argentino Manuel Graña Etcheverry e fixou residência em Buenos Aires, onde viveu por 34 anos. Drummond teve três netos: Carlos Manuel (1950-2018), Luis Mauricio e Pedro Augusto. Das muitas lembranças que guarda do avô, a quem chama carinhosamente de “Carlos”, o artista plástico Pedro Augusto Graña Drummond, de 62 anos, destaca duas: o jeito brincalhão e a contação de histórias. “Carlos gostava de brincar com sua dentadura postiça. Fazia caretas sardônicas rugindo como um leão e dava pulos pelo corredor atrás da vovó”, recorda, aos risos. “E, por falar em leão, gostávamos quando ele nos contava as aventuras e desventuras do gigante Cafas Leão. A gente não se cansava de ouvir essas histórias e pedia para ele contar de novo. E Carlos sempre acrescentava alguns detalhes. Certa vez, quando sentiu sede, o Cafas Leão bebeu toda a água da Lagoa Rodrigo de Freitas”, conta, referindo-se ao personagem do poema “Didática”, do livro Boitempo (1968).
Em 1954, Drummond começou a escrever crônicas para o Correio da Manhã, três por semana, ofício que exerceu até 1969, quando se transferiu para o Jornal do Brasil. À época, assinava com as iniciais de seu nome: C.D.A. Em 1962, se aposentou como chefe da seção do DPHAN. No Rio, Drummond e Dolores moraram em dois endereços: na Joaquim Nabuco, 81, e na Conselheiro Lafaiete, 60, ambos em Copacabana. “Carlos era um homem metódico e disciplinado. Acordava cedo e ia para o escritório escrever suas crônicas. Tomava café às nove, almoçava ao meio-dia e jantava às sete e meia. À tarde, ia ao Centro, conversar com amigos na Livraria Da Vinci. Sua vida era muito rotineira”, resume o neto.
Cai o pano
No dia 29 de setembro de 1984, Carlos Drummond de Andrade publicou sua última crônica, “Ciao”, no Jornal do Brasil. “Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico, etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo”, escreveu. “A crônica é o território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo”. Estima-se que, ao longo de 64 anos de ofício, tenha escrito algo em torno de 6 mil crônicas. “Drummond não se considerava um escritor. Jamais se sentou para escrever um livro — livro seu era uma seleta do que havia publicado na imprensa, com alguns poucos inéditos. Não fazia vida literária. Dizia sentir-se mais jornalista do que escritor. Via a crônica como gênero mais jornalístico do que literário. Era um apaixonado leitor de jornal, no qual buscava informação e inspiração. Lia até os anúncios classificados”, relata Werneck que, em 1985, entrevistou o poeta para a revista IstoÉ. “Já escrever poesia era como fazer psicanálise. Uma maneira de espantar os fantasmas”.
Se “Ciao” foi a última crônica, “Elegia a um tucano morto”, escrita no dia 31 de janeiro de 1987, foi o último poema. A inspiração partiu de um telefonema do neto. O bicho que ele criava em casa no Leblon morreu durante a noite. “Não tenho um livro predileto. Gosto de todos sem distinção. O prazer da leitura depende de cada momento”, filosofa Pedro Augusto. “Em todo caso, tenho um carinho especial por Farewell (1996) por ter estado perto dele quando escreveu alguns de seus últimos poemas, como Elegia a um tucano morto, que me deu de presente no dia em que fiz 27 anos”.
Em 1986, Drummond passou 12 dias no Pró-Cardíaco, em Botafogo, depois de sofrer um infarto. No ano seguinte, foi homenageado pela Estação Primeira da Mangueira, com o samba-enredo No reino das palavras. Em 5 de agosto, Maria Julieta morreu, vítima de câncer, aos 57 anos. Ao voltar do cemitério, Drummond registrou em seu diário: “Assim termina a vida da pessoa que mais amei neste mundo”. Apenas 12 dias depois, Drummond, aos 84, sofreu outro infarto e não resistiu à insuficiência respiratória. Morreu às oito e quarenta e cinco da noite. “Carlos deixou um vazio muito grande. Eu não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Mas, estava”, lamenta Pedro Augusto.
Homenagens póstumas nunca faltaram. Além da estátua em Copacabana, o poeta teve sua imagem estampada na cédula de 50 cruzados novos em 1989 e alguns de seus poemas recitados por nomes como Paulo Autran (1922-2007) e Odete Lara (1929-2015) em CDs lançados em 1999 e 2000. Sua obra inspirou também longas-metragens, como O padre e a moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988); Enigma para demônios (1975), de Carlos Hugo Christensen (1914-1999); e O vestido (2003), de Paulo Thiago (1945-2021).
Paralelamente à carreira de escritor, Drummond exerceu a de tradutor. Traduziu, entre outros, o francês Marcel Proust (1871-1922), o alemão Bertold Brecht (1898-1956) e o espanhol Federico García Lorca (1898-1936). Traduziu e foi traduzido. Sentimento do mundo (1940) foi publicado como Chuvstvo na sveta na Bulgária, A rosa do povo (1945) virou En ros at folket na Suécia e Contos plausíveis (1981) ganhou o título de Racconti plausibili na Itália. “O interesse pela obra do Carlos no Brasil é surpreendente. No exterior, ainda é conhecido principalmente nos meios acadêmicos e intelectuais. Salvo algumas exceções recentes, a maioria dessas traduções foram feitas quando ele ainda estava vivo. A divulgação da obra drummondiana no exterior é, certamente, um trabalho que podemos melhorar”, garante seu neto.