O circo é um lugar de escuta. Assim ele se estabeleceu historicamente em seus trânsitos Brasil adentro, bem como nas capitais que foram se engrandecendo com o tempo. A “auralidade” aqui pode ser entendida em sua dimensão de escuta ativa, performática, partindo do pressuposto de que o público é parte constituinte do espetáculo circense. Considero também a escuta em seu sentido amplo: que diz respeito ao que os olhos escutam e ao o que corpo que escuta, por exemplo.
A lona é um campo de auralidade, no qual o público adentra aberto à experiência de uma escuta em que se sente convidado a interagir, a ser tocado, a ser comovido, a ser provocado. É um deslocamento. Uma suspensão. A música estrutura esse arco de emoções e sensações pelo qual o público é conduzido, tanto durante o espetáculo quanto na interlocução estabelecida desde a chegada do circo à região. Vale ressaltar que aqui estou a falar do circo itinerante, que tem o seu modo de vida e produção calcado no nomadismo – seja ele estruturado por lona, seja por outros tipos de arquitetura circense.
Falar sobre a música no circo envolve destrinchar as diversas formas pelas quais essa relação se dá, transcendendo as arestas do próprio circo e de seu espetáculo. Numa perspectiva sociológica, pode-se pensar a música como interface entre o dentro e o fora do circo, estabelecendo diversos vetores entre essas partes. Os picadeiros se estabeleceram como uma espécie de difusora – de artistas, repertórios, manifestações culturais, signos e corporalidades. Por vezes, de fato, o circo foi a rádio difusora em si, com alto-falantes pendurados no mastro, chegando alugares que não tinham emissoras nem outro suporte para a reprodução de músicas.
Os espetáculos – na sua miscelânea de gêneros, instrumentos e repertórios – também são difusores, no sentido da sua capacidade de difusão da música. Tente sair da sua realidade de ouvir música em streaming e pense num tempo em que não havia gravações fonográficas nem equipamentos que reproduzem música… Imagine o circo chegando a esse lugar com banda, palhaços-cantores, excêntricos musicais, rumbeiras, cantores etc. Na dimensão continental deste país, as condições materiais foram se distribuindo assimetricamente, de forma que coexistem sempre vários tempos e formas de relação com a escuta da música. Até hoje, mesmo sem banda, o circo é um lugar de escuta, de sociabilidade, de uma experiência sinestésica da qual o público faz parte.
Para dar destaque ao caráter poroso e difusor do circo, bem como à sua contemporaneidade – sempre se reelaborando com o seu tempo –, gostaria de destacar dois pontos fundamentais que demonstram como a música se estabeleceu como interlocutora do circo com o seu entorno, o público e a sociedade.
Pioneiros da indústria fonográfica
O primeiro ponto diz respeito ao princípio do século XX e às primeiras gravações musicais. Na edição que se faz sobre a história da música brasileira, invisibiliza-se o fato de que os primeiros cantores e compositores da nascente indústria fonográfica eram palhaços. Foi nos circos que o tcheco Fred Figner, fundador da Casa Edison, escutou e encontrou os artistas – já com público, repertório experimentado e desenvoltura artística – para as primeiras gravações brasileiras. A saber, Benjamim de Oliveira é um palhaço-cantor que fez parte dessas primeiras gravações, bem como Bahiano, Eduardo das Neves, Cadete e Mário Pinheiro, que também trabalhavam em circos.
Entre os diversos gêneros executados, tem-se destaque o lundu, que antecede o samba e possui uma cadência melódica que permite canções jocosas, irreverentes, com caráter de crônica, fazendo inversões sociais em seu discurso, constituindo-se como documento de uma época. O violão, apesar de marginalizado pelos grandes salões por longo período, era o instrumento predominante utilizado pelos palhaços para a interlocução com o público – o que se vê evidenciado em muitas gravações –, mas também se encontram fonogramas com outros acompanhamentos, inclusive com orquestras.
Essa relação entre palhaços e mercado fonográfico destaca os trânsitos que o circo fazia para fora dele, em diálogo com tecnologias do seu tempo, inclusive. É uma relação que foi se desenvolvendo ao longo do século XX e até hoje continua, com o lançamento de discos de palhaços – a lembrar das famosas marchinhas de Carequinha e Arrelia.
Vale ressaltar que existia uma cena musical nas cidades na qual o circo participava e disputava espaço e público. Não vivia isolado ou à parte, como uma comunidade itinerante fechada. Pelo contrário: por depender do público para seu modo de produção e continuidade, o circo sempre se deu em relação à sociedade, buscando formas de atrair o respeitável público.
É importante observar que esse trânsito de palhaços na indústria fonográfica se dava, sobretudo, em centros urbanos como o Rio de Janeiro. Assim, diz respeito à interface com palhaços que tinham destaque nessa cena e, em geral, vinham de circos considerados de grande porte. Contudo, esses repertórios, bem como os de palhaços que circulavam em circuitos que não cruzavam com essas oportunidades, vão sendo reverberados país adentro, em emboladas, lundus, caipiradas, galopes, recitativos etc. em picadeiros de circos de diversos portes.
Shows no picadeiro
Agora, saindo de uma relação entre circo e música que se expressa fora do primeiro e nos voltando para dentro do espetáculo, trago o segundo ponto proposto: os shows de artistas da rádio, da TV e das localidades que aconteciam no picadeiro. O picadeiro se estabeleceu – durante grande parte do século XX, mas sobretudo entre a década de 1940 e a de 1970 – como um espaço de contato vis-à-vis com o público, que, muitas vezes, só conhecia os artistas pela voz e pelas fotos. Ainda com a TV, o circo continuou a ser um espaço que se beneficiava em abarcar atrações musicais, na medida em que divulgava esses artistas país adentro – considerando que a sua itinerância constituía um palco-picadeiro móvel, em lugares nos quais, por vezes, não existia espaço para apresentações.
A música era protagonizada nos picadeiros por cantores e cantoras que se exibiam numa segunda parte do espetáculo do circo, sendo a primeira o espetáculo de variedades. O evento, portanto, passava a ser composto de atrações de dentro e de fora do circo, não raramente abarcando artistas da própria localidade ou das adjacências. Dessa forma, os shows no picadeiro representam o momento em que o circo abriga atrações “de fora” para ser apresentadas a um público “de fora” – assentados nas arquibancadas no momento do espetáculo – “dentro” do espaço circense. É o momento em que a interface dentro/fora acontece sob o céu de estrelas da lona, envolvendo atores “de fora” que não compõem apenas o público, mas também a categoria de atração musical.
Seja o picadeiro um palco para artistas de fora do circo ou para a reverberação de circenses fora da circunscrição da lona, veem-se dois aspectos de enorme contribuição e relação de sua história com o desenvolvimento da música no país, invisibilizada por narrativas hegemônicas. São muitos os Benjamins. São muitos os sons dos picadeiros, dentro e fora dele. São muitas as escutas circenses. São diversas as camadas da relação entre circo e música na história imbricada dessas duas linguagens. Olhemos para isso.
(*) Lívia Mattos é circense, acordeonista, cantautora e socióloga. Nascida em Salvador (BA), dedica-se à pesquisa sobre o circo brasileiro – sobretudo no que tange à sua interface coma música –, documentando narrativas de circenses veteranos e desenvolvendo trabalhos autorais no campo cênico-musical há 18 anos. Destaca-se, na sua produção criativa, A sanfonástica mulher-lona, As trigêmeas, Mono amour, Sanfona aérea, A lira da lona e o mais novo Retumbantes – além do seu álbum Vinha da ida, lançado pela Natura Musical. Atualmente, é mestranda em artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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