A partir de oficinas músico-pedagógicas, Caravana MusiLibras incentiva a construção de frases e ditados rítmicos por crianças e jovens em todos os níveis de surdez
Publicado em 28/05/2019
Atualizado às 16:31 de 15/08/2019
por Marina Lahr
Qual é o som do silêncio? A música possui o poder de impactar mesmo aqueles que não conseguem ouvi-la? É possível incluir surdos e deficientes auditivos no ensino dessa arte? Como democratizar de forma efetiva a cultura? Para Irton Mario Canalli Silva, músico-educador de 46 anos, todas essas questões podem ser respondidas com uma simples mas expressiva frase:
“Os limites existem nos ouvidos de quem ouve, não nas mãos de quem toca”.
Mais conhecido pela designação Ras Batman Alagbê, o pedagogo – natural de Recife (PE) – é responsável pela criação e pela disseminação de uma metodologia de ensino musical capaz de transformar a música em uma linguagem ainda mais universal. O método MusiLibras, desenvolvido por Mestre Batman após anos de pesquisa e interesse por essa temática, reúne uma série de práticas sonoras e corporais que auxiliam pessoas surdas ou com deficiência auditiva a experimentar profundamente a musicalidade. Seus estudos resultaram na formação do Batuqueiros do Silêncio, grupo composto de músicos surdos que tocam percussão. O conjunto segue a metodologia do músico-educador e foca as sensações que a música proporciona através do metrônomo visual – equipamento desenvolvido pelo próprio Batman e que utiliza um sequenciador eletrônico e uma combinação de lâmpadas para transmitir cores, em uma descrição visual das frases rítmicas das melodias.
A partir de experiências em diversas oficinas e festivais de sua cidade natal, Mestre Batman decidiu expandir o ensino MusiLibras e levar seus batuqueiros e sua iniciativa para outras regiões do Brasil, disseminando com maior intensidade essa importante ferramenta de comunicação e expressão. Foi assim que surgiu, em 2017, a ideia de promover a Caravana MusiLibras. A iniciativa, contemplada pelo edital 2017-2018 do Rumos Itaú Cultural, envolve ações e atividades musicopedagógicas com crianças e jovens surdos em todos os níveis de surdez, que vão poder vivenciar a construção de frases e ditados rítmicos em diversas cidades do país.
A caravana, segundo Mestre Batman, é um caminho viável para expandir a missão de realizar uma investigação musical com a comunidade surda brasileira. Na entrevista a seguir, além de compartilhar detalhes do projeto, o músico fala sobre o seu percurso e o seu trabalho.
A metodologia MusiLibras foi desenvolvida por você há alguns anos, e diversas oficinas pedagógicas já foram realizadas em Recife e região. Como surgiu a ideia dessa iniciativa e qual é a motivação da caravana?
A minha inspiração veio através de um filme chamado O Resto É Silêncio, de Paulo Halm (2008). A produção mostra a curiosidade que a pessoa surda tem em relação às sensações que a música provoca. No passado, eu já havia realizado alguns trabalhos de inclusão com cegos e pessoas em tratamento psiquiátrico, sempre utilizando a música. A partir desse curta-metragem, percebi que eu também poderia explorar a curiosidade que alguns surdos têm em relação às impressões musicais para nós, ouvintes. Depois de viajar por muitas cidades do Brasil, decidi que era hora de amplificar essa oportunidade, levando para mais crianças e jovens surdos essa experiência musical que ultrapassa os limites do som. Foi assim que surgiu a ideia da Caravana MusiLibras e do projeto [para o] Rumos.
Como funciona, em essência, a metodologia MusiLibras?
O método é, basicamente, uma dinâmica de percepção corporal, uma espécie de alfabetização musical visual. Nas oficinas de aprendizado, iniciamos as atividades apresentando um panorama de como foi o primeiro contato dos seres humanos com as sonoridades que a natureza propicia. Em seguida, introduzimos o alfabeto MusiLibras de sinais visuais, a fim de que os participantes possam identificar as figuras de tempo musical e entender como funciona a altura das notas musicais – para, assim, criar melodias musicais. Após essa etapa, visitamos os estudos de Platão e Pitágoras, que apontam as relações entre a matemática e tudo o que está ao nosso redor, aproveitando para mostrar a junção de vários sons e sua importância para a harmonia na música. Finalizamos esse primeiro momento falando do terceiro e principal elemento que compõe a música: o ritmo. Depois disso têm início as atividades práticas de percussão corporal, seguidas por exercícios de percepção e técnica de conjunto utilizando o metrônomo visual – tecnologia assistiva na educação musical brasileira desenvolvida por mim e que facilita a compreensão de frases rítmicas construídas com lâmpadas de cores e tamanhos variados.
O grupo formado por você, Batuqueiros do Silêncio, possui grande relevância por possibilitar a inclusão de músicos surdos. Qual é a história dele e o que você teve em mente ao escolher esse nome para o conjunto?
Quando se escuta ou se lê esse nome, Batuqueiros do Silêncio, acredito que acontece uma pequena confusão na mente das pessoas, pois é um paradoxo. Foi exatamente por isso que pensei nesse nome para o grupo, que surgiu das oficinas de sensibilização musical que comecei a realizar em Recife no ano de 2009, com o nome inicial de projeto Som da Pele. Por causa dos exercícios de percussão corporal e prevendo que o grupo iria crescer com a sequência de workshops que eu pretendia realizar, escrevi um projeto para a Fundação Palmares, que havia aberto naquele ano o edital Ideias Criativas para o 20 de Novembro. Então, escolhi o título Batuqueiros do Silêncio – um Baque de Nação Promovendo a Inclusão, e assim permanecemos. É interessante dizer, além disso, que em Recife todo grupo, para ser reconhecido oficialmente, precisa batucar no Carnaval. Por isso criamos também o bloco Batuqueiros do Silêncio e, desde então, estamos nas ruas de Recife e Olinda durante o Carnaval e nos palcos de todo o país, desde os mais simples até o Maracanã – onde pudemos tocar no encerramento dos Jogos Paraolímpicos Rio 2016.
Na Caravana MusiLibras, você propõe o ensino voltado para crianças e jovens surdos ou com deficiência auditiva. Qual é a importância de promover esse ensino logo nos primeiros anos?
Nas várias oficinas e cursos de música que realizamos em diversas cidades do país, percebemos uma resistência maior por parte dos surdos adultos, que possivelmente já foram subestimados por alguns ouvintes durante a vida – fator que pode ter ocasionado um distanciamento do chamado "universo do ouvinte". Queremos apresentar a possibilidade da prática musical vivenciada a surdos mais jovens na intenção de minimizar os impactos desse distanciamento que existe entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte, pois, afinal, todos nascem com musicalidade. Nosso trabalho objetiva diminuir um eventual preconceito da comunidade surda em relação à música e mostrar que a prática musical pode trazer muitos benefícios para os surdos, tanto no campo cognitivo – trabalhando a memória, a atenção, a coordenação motora, a percepção – quanto no fomento à criatividade das pessoas surdas. O projeto é um dos caminhos que enxergo para externalizar toda essa potencialidade artística que ainda é pouco reconhecida.
De que forma o projeto pode contribuir para transformar a concepção de que somente os ouvintes são capazes de aprender e apreciar música?
Infelizmente muitas pessoas ainda não perceberam que as diferenças existem para nos aproximar em vez de segregar. Muitos ainda insistem em só enxergar as limitações do outro, e não suas potencialidades. Há muita gente também que não está preparada para conviver com o novo, com o desconhecido, com o que está fora do lugar-comum. Por isso, acredito que minha proposta de despertar a sonoridade surda e de fazer música com pessoas surdas pode causar certo choque, um despertar. Com a MusiLibras eu busco mostrar que todos nós nascemos com musicalidade e que o som, antes de soar, vibra. E essa vibração pode ser sentida tanto por ouvintes quanto por pessoas surdas ou com deficiência auditiva, que vivem em um universo no qual tudo é visual. A intenção é demonstrar à comunidade surda – e também à ouvinte – que a música é um idioma universal e que todos podem, e devem, se comunicar e se expressar através dela. Acredito que a Caravana MusiLibras vai deixar muitas sementes de inclusão em todas as cidades por onde passarmos. Tenho certeza de que vamos encontrar aqueles que, assim como nós, enxergam um mundo mais equilibrado e menos diferente, apesar dos inúmeros retrocessos que estamos vivendo atualmente.