“Já não me restam senão farrapos da ganga que cobria minha enxerga de palha, único bem que me per...
Publicado em 26/09/2017
Atualizado às 12:13 de 03/08/2018
“Já não me restam senão farrapos da ganga que cobria minha enxerga de palha, único bem que me permitiram trazer comigo, e ando mal coberta de andrajos e vergonha. Só não vivo inteiramente desnuda, como uma bugra, porque de mim se apiedou uma das escravas desta casa, deu-me uma bata de ralo madrasto, das que tecem elas mesmas para vestirem-se, e fabricou para meus pobres pés uns grosseiros tamancos de madeira que muito me têm servido desde então. Não cuideis que exagero, Majestade, pois é a pura verdade o que Vos digo. Esse é o destino das mulheres que, não sendo cativas por lei, pior vivem do que as escravas vendidas a bom preço nos mercados, porque a estas proveem os senhores para que não se lhes perca o cabedal, como não se deixa perder por nada uma mula ou um jumento. Já as mulheres brancas que nada possuem, que não servem para o trabalho nos canaviais e nas minas, nem para parir crias cativas para seus senhores, tal qual sou eu, não estando destinadas a dar-se em matrimônio pelo bom dote e como penhor de alguma aliança, não se podendo tampouco vendê-las ou não se querendo comprá-las, nada valem. Ninguém gastará com elas seus bens nem se importará com a sua decência e não terão com que cobrir-se, a menos que tenham a desvergonha e os dotes de corpo para oferecerem-se como rameiras no fundo das bodegas e estabelecer-se em bordeis. E de nada lhes adianta queixarem-se ao bispo ou aos frades porque no mínimo lhes farão ouvidos moucos e, se calhar, antes as preferirão despidas para nelas satisfazer sua luxúria do que vestidas e guardadas na inocência.”
O trecho é uma reprodução do início do livro Carta à Rainha Louca, que a escritora Maria Valéria Rezende (1942) escreve com apoio do programa Rumos Itaú Cultural 2015-2016. Nele se distingue o português arcaico, que ela recria com pesquisa cuidadosa, e a experiência gráfica do grifo como um recurso literário. Metáfora da voz feminina reprimida há séculos.
O romance histórico é sobre uma mulher, sem varão ou rendas, que é acusada pela inquisição de ter criado um convento clandestino – a casa onde vivia em companhia de outras mulheres em mesma situação. Nas cartas, essa mulher fala de sua trajetória, se defende para a rainha e questiona esse existir como exceção.
Maria Valéria, um dos principais nomes da literatura contemporânea brasileira, esclarece que essa história de opressão, que parece distante, permeia ainda nossa vida. Os grifos, por exemplo, são o que a autora da carta, em seu pedido de ajuda à rainha, considera inapropriado revelar. Quanto as vozes das mulheres ainda não se calam ou são caladas?
Maria Valéria é freira, mora em João Pessoa (PB) e tem em seu currículo uma história de luta contra a repressão política. É autora de vários livros e recebeu prêmios como Jabuti e Casa de las Americas. Ela tem voz ativa no mercado editorial brasileiro e trabalha para que outras vozes femininas tenham espaço garantido, não apenas com sua literatura mas também em atividades como Mulherio das Letras – movimento que reúne mulheres escritoras e cujo primeiro encontro ocorre em outubro de 2017, em João Pessoa.
A pesquisa para esse romance foi iniciada na década de 1980, em Portugal. Ao inscrever o projeto no Rumos, em 2015, a escritora buscou apoio para conseguir superar uma restrição física, a perda gradativa da visão. No vídeo, ela conta mais sobre essa condição e também sobre o livro.