Tirar a comunidade do buraco cravado no sertão de Pernambuco e mostrá-la ao mundo. Foi essa a analogia que os moradores de Tiririca dos...
Publicado em 05/07/2017
Atualizado às 10:56 de 03/08/2018
Por Adriana Ferreira Silva
Tirar a comunidade do buraco cravado no sertão de Pernambuco e mostrá-la ao mundo. Foi essa a analogia que os moradores de Tiririca dos Crioulos fizeram quando, em 2013, um grupo de pesquisadores propôs digitalizar a cultura e o patrimônio do lugarejo para levar sua história para além das fronteiras desse quilombo indígena, localizado na base da Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, a 500 quilômetros da capital Recife.
“Essa frase, dita por uma liderança quando nos reunimos com a comunidade pela primeira vez, se tornou o título da ação”, relembra o biólogo cearense Nivaldo Aureliano Léo Neto, um dos coordenadores de Do Buraco ao Mundo: Percepções sobre o Patrimônio Cultural de Tiririca dos Crioulos – projeto que ele organiza ao lado da paulista Larissa Isidoro Serradela, formada em artes visuais e mestra em antropologia, e da professora tiririquense Aleckssandra Ana dos Santos Sá.
De 2013 para cá, o grupo resgatou a herança dessa sociedade afro-indígena – e devolveu autoestima a um povo que há décadas enfrenta o racismo – por meio de uma série de vídeos reunidos num canal do YouTube, de um livro sobre a história de Tiririca dos Crioulos e de um disco, cujo repertório mescla tradições indígenas, católicas e africanas. O livro e o disco podem ser baixados gratuitamente no blog do projeto.
“Ser selecionado pelo programa Rumos Itaú Cultural permitiu revisitar esse acervo e criar uma instalação multimídia”, conta Larissa. O material audiovisual integra uma exposição itinerante, que passou por João Pessoa, Recife e, em outubro, chega a dois espaços culturais de Tiririca. Além disso, diz ela, com o apoio do Rumos foi possível ampliar a tiragem da publicação impressa e do CD.
“No sertão de Pernambuco, existem outros indígenas e quilombolas com parentesco entre si, mas Tiririca é diferente porque, quando se trata de políticas públicas, sua população está oficialmente ligada às duas identidades”, afirma a antropóloga. “A terra, por exemplo, foi reconhecida como quilombola e está em processo de demarcação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), mas a educação escolar é indígena porque eles são parentes dos Pankará”, revela Neto.
[caption id="attachment_98717" align="aligncenter" width="537"] A exposição Tiririca dos Crioulos: Pessoas Fortes na Luta já foi apresentada em João Pessoa (acima) e Recife | foto: Larissa I. Serradela[/caption]
Graças a essas características, em 2014 os dois desenvolveram um projeto de pesquisa e de registro da memória local e o inscreveram num edital destinado a divulgar o patrimônio afro-brasileiro, lançado pelo Ministério da Cultura em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ao ser contemplados por esse e, posteriormente, outros editais, no entanto, não estavam sozinhos. A comunidade inteira se envolve, sob a coordenação de Larissa, Neto e Aleckssandra, que nasceu em Tiririca dos Crioulos e dá aulas na escola local.
“É um trabalho colaborativo no qual, por meio de oficinas, os próprios tiririquenses indicam as referências culturais que são importantes para eles”, explica Neto. “Além disso, todos atuam como pesquisadores: os moradores operam câmeras e realizam entrevistas, ao lado de historiadores e fotógrafos. Até as crianças participam, fazendo desenhos, por exemplo. Somos um coletivo interdisciplinar e interétnico.”
O grupo começou a desvendar os segredos de Tiririca ouvindo seus moradores mais velhos, que compartilharam reminiscências sobre benzeduras, rituais e celebrações, além de conhecimentos ligados à caça e à natureza. Nesse processo, Aleckssandra descobriu que as ruínas pelas quais passava todos os dias, no trajeto rumo à escola onde dá aulas, eram, na verdade, os restos da casa de um de seus avôs, um homem que teve grande importância para a formação do lugarejo. Desde então, a professora costuma levar seus alunos até o sítio, para lições que contextualizam suas origens.
“Resgatamos também a história do líder Mané Miguel, um indígena Pankará que se casou com uma mulher negra de Tiririca nos anos 1940 e ficou morando lá, onde realizava ritos religiosos e de cura, o que fez dele um destacado curandeiro local”, conta Larissa. Essa interseção aparece em diferentes esferas. No cenário musical, por exemplo, convivem giras ligadas às celebrações de religiões africanas, a toré indígena e cantos entoados nas novenas dedicadas a São João e Nossa Senhora.
Batizada com o nome de um capim que cresce na região, o tiririca, não há precisão sobre o nascimento de Tiririca dos Crioulos – o termo crioulos é uma maneira pejorativa de se referir aos afrodescendentes. “Eles estão ali desde tempos em que a memória se perde”, diz Neto. “Nas narrativas ancestrais, fala-se de negros que se casaram ou construíram outras relações de parentesco com povos indígenas vizinhos por volta de 1900.”
Essa rica miscigenação foi, primeiramente, vista sob uma ótica racista. “Na década de 1950, no alto sertão de Pernambuco, existia separação entre brancos e negros até para que eles não dançassem juntos. Imagine então ser um negro misturado. As pessoas tinham vergonha de dizer que eram de Tiririca”, afirma Neto. Mas, com o resgate e a valorização de suas raízes, esse imaginário está se alterando. “Essa sensação de estar num buraco está desaparecendo. Agora eles sabem que a imagem que eles gostariam de apresentar deles mesmos está na internet, na exposição. Todo o mundo os vê.”