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Rumos Legado Teatro: Teatro Experimental Alta Floresta

O Teatro Experimental Alta Floresta (TEAF) foi fundado em 1988 em Alta Floresta (MT). Já produziu mais de 30 espetáculos, além de...

Publicado em 11/02/2015

Atualizado às 21:04 de 02/08/2018

 

O Teatro Experimental Alta Floresta (TEAF) foi fundado em 1988 em Alta Floresta (MT). Já produziu mais de 30 espetáculos, além de realizações como: o Seminário de Cultura de Alta Floresta, curso de formação de jovens mobilizadores sociais por meio do teatro (ação do Ponto de Cultura TEAF), o Festival de Teatro da Amazônia Mato-Grossense e a Biblioteca Comunitária Entrelinhas.

Esta entrevista foi cedida pelo coordenador do grupo, Ronaldo Adriano.

Observatório: O Teatro Experimental Alta Floresta (TEAF) participou do edital Rumos Teatro, do Itaú Cultural, em 2010. A premissa do edital era o envio de projetos que visassem ao convívio, ao compartilhamento de formas de criação entre dois grupos de teatro e ao desenvolvimento de pesquisas na área. Assim, surgiu o projeto Florestas e Antas, Experiências Teatrais – em Busca de um Teatro Possível, que vocês desenvolveram com o Grupo de Teatro Celeiro das Antas (DF). A proposta desse projeto é o processo de formulação em experiências teatrais e estratégias de ação para o teatro do possível na produção artística e na manutenção de grupos. Você poderia comentar um pouco mais sobre o resultado dessa pesquisa e as influências, se houve, na atuação do grupo?

TEAF: O projeto e o encontro com o Celeiro das Antas nos proporcionaram uma reflexão muito boa e que nos fez olhar para nós mesmos. Buscamos refletir sobre o teatro que fazemos dentro de nossas realidades. Observamos que os recursos usados pelo Celeiro, grupo que vive numa realidade de cidade grande – e nós somos de uma cidade jovem, pequena, localizada na fronteira entre Mato Grosso e o Pará, na Amazônia mato-grossense – acabavam sendo acessados em nossas montagens e acabávamos desenvolvendo formas de gestão, tecnologias e estética. Durante os seis meses do projeto do Rumos Teatro, fizemos reuniões e seminários por Skype, o TEAF foi a Brasília e acompanhou a rotina do Celeiro e vice-versa. Acompanhamos ensaios, idas ao mercado, reuniões e tudo que, de alguma forma ou de outra, todos nós fazemos. Afinal, não é possível existir dois atores num só, somos pessoas atravessadas e afetadas, seja pelo engarrafamento nas ruas de Brasília, seja pelas castanheiras que derrubam para dar origem a residenciais.

Isso tudo influenciou sobremaneira a dinâmica de trabalho do TEAF, especialmente porque antes do Rumos vivíamos num processo de reestruturação do grupo. O encontro foi muito potente e, além disso, existia uma mútua afetividade entre os dois grupos ativada em 1999, quando nos encontramos num festival em Anápolis (GO), em nossa primeira viagem para fora de Mato Grosso com um espetáculo. Desse encontro resultaram, além de muita conversa, uma carta e uma entrevista que o José Regino [diretor, ator e palhaço fundador e membro do Grupo Celeiro das Antas] deu a uma revista periódica de um dos membros do TEAF, na qual ele revela disposição para nos dirigir. Apenas isso, uma carta e uma entrevista. Não sabemos para o Celeiro das Antas, mas para nós esse “só isso” já foi maravilhoso. E, dez anos depois, o TEAF e o Celeiro se reencontraram no Próximo Ato, realizamos o Rumos Teatro juntos. Fomos além: montamos Santa Joana dos Matadouros em um processo colaborativo. O processo foi maravilhoso e muito consciente do que fazíamos e das próprias lacunas. Na verdade, quase podemos dizer que o processo começou durante o Rumos, pois, quando nos sentamos para iniciar os trabalhos de montagem, já tínhamos clareza de como funcionávamos. Afinal, já nos conhecíamos bem.

Hoje, depois da montagem de Santa Joana dos Matadouros, podemos afirmar que nossas reflexões e conclusões no projeto Florestas e Antas, Experiências Teatrais – em Busca de um Teatro Possível se materializaram no processo. Entendemos e reconhecemos esse momento vivido pelo TEAF, execução do projeto e montagem, como algo para aumentar a potência e enxergar mais do que já vínhamos discutindo e pensando para o grupo.

Você acredita que mais editais que estimulam esse tipo de compartilhamento entre grupos e a pesquisa ajudam no processo de formação dos integrantes do grupo? Como?

Editais dessa natureza são fundamentais para proporcionar trocas mais profundas entre os grupos. Conhecer o outro e entender a si mesmo por meio da relação com o outro é fundamental, especialmente no teatro, que é uma arte do encontro, como muitos dizem. É na fricção do encontro que nossas energias se entrecruzam. Também é importante destacar que o caráter artesanal do teatro e compartilhamentos entre grupos são formas de ver e vivenciar o teatro possível de cada grupo. Não para copiar, mas para nos inspirar, nos provocar, nos tirar da zona de conforto e potencializar nossos trabalhos.

Quanto à formação, não há dúvidas de que o compartilhamento entre grupos é importante. E para nós poder viver experiências de compartilhamento com outros grupos acaba por suprir uma lacuna abismal. Para nós, que estamos 820 quilômetros distantes da capital e vivemos em um estado onde não há curso superior nem técnico em teatro – e que, por consequência, somos um grupo constituído por atores-biólogos, atores-filólogos, atores-historiadores, atores-professores, funcionários públicos etc. –, nossa formação tem se dado ao longo dos 26 anos do grupo, pelo fazer e pelos encontros.

A peça Santa Joana dos Matadouros conta a história de uma jovem militante do movimento cristão e seu envolvimento e o de sua igreja com a realidade de um empresário que detém o monopólio do gado e da carne num momento em que a crise afeta a produção de carne, atingindo todos os envolvidos nessa cadeia produtiva. Você poderia comentar um pouco sobre as reflexões que a peça provoca?

Montar essa peça no contexto de Alta Floresta e Mato Grosso é quase como colocar as décadas de 1920 e 1930 no tempo atual. É como uma subversão da lógica do tempo cronológico, pois não há diferença no que diz respeito às práticas e às lógicas usadas no mercado de carne da época e às utilizadas nos dias atuais. Vivemos numa microrregião do estado que possui mais de 5 milhões de cabeças de gado, é a primeira colocada entre os municípios mato-grossenses com bioma amazônico, os quais, juntos, somam mais de 17 milhões de cabeças. A consequência disso é uma economia sustentada pelo mercado da carne e, mesmo distantes dos grandes centros, as decisões tomadas no mercado, como embargos, altas e quedas de preços, são sentidas quase imediatamente em nível local. Portanto, a peça que Brecht escreveu entre 1928 e 1931 mostra de forma épico-didática o mundo de hoje e como as pessoas são reféns daqueles que detêm os meios e os modos de produção. Considerando a realidade do estado de Mato Grosso, a obra de Brecht é extremamente atual. Procuramos deixar clara essa relação por meio de dados dos últimos dez anos sobre o agronegócio local. Analisando os dados, as informações disponíveis, sem esforço podemos fazer a ligação entre os dois universos, a Chicago dos anos 1930 que inspirou Brecht a escrever Santa Joana e o cenário que serviu de inspiração para nossa montagem, a Alta Floresta dos anos 2010.

O Teatro Experimental é um Ponto de Cultura e realiza, entre outras atividades, cursos de teatro. Você pode comentar quais foram as mudanças na comunidade local com a presença desse espaço e a importância dele na formação de público para o teatro?

Cada atividade artística e formativa que ocorre numa cidade que descreveremos a seguir é muito significativa. Em 2009, quando fomos reconhecidos como Ponto de Cultura, criamos o curso livre de teatro e, desde então, temos tentado estabelecer e estruturar uma metodologia em formação para o teatro. Desde 2010, passaram diretamente pelo curso cerca de cem pessoas. Hoje, muitas delas frequentam espaços artísticos assiduamente. Outras pessoas, por terem tido a formação, foram incluídas como voluntárias no Programa Mais Educação e em outras atividades que geram renda. Esse trabalho se aprimorou e acontece em nossa sede própria, enquanto antes ele acontecia em parceria com uma escola estadual do município. Atualmente, o TEAF possui uma sede própria, o Espaço Cultural TEAF, e isso tem se revelado como a inauguração de um novo estágio de contribuição para a cultura da cidade. O teatro experimental que vive e participa da história da cidade tem sido, pelo próprio fato de existir e atuar em diálogo com a cidade, um importante agente de formação cultural em nível local.

Alta Floresta é uma cidade de apenas 38 anos e foi fundada por um projeto particular de colonização estimulado pelo governo militar, com o slogan de “integrar para não entregar”. Com essa visão, os “vazios” no território nacional foram preenchidos. Inicialmente, o mote é transformar Alta Floresta e região em uma área agrícola e, para tal, foram atraídas pessoas, em sua maioria do norte do estado do Paraná, para reproduzirem os modos e as técnicas de produção agrícola usados naquela região. É claro que problemas não tardaram a surgir; questões como escoamento de produção e a pobreza do solo amazônico em nutrientes colocaram em xeque as técnicas e as culturas plantadas. Hoje, sabemos que a maior riqueza da Amazônia está em sua floresta em pé, em sua biomassa viva. Ainda no fim da década de 1970, apenas três anos após a fundação oficial da cidade, teve início o ciclo do ouro, que perdurou até o início da década de 1990. E foi nesse período que a cidade viveu sua maior transformação. Milhares de pessoas de todas as regiões do país iniciaram uma corrida pelo ouro. Nosso aeroporto foi considerado um dos mais movimentados do país, a população flutuante chegou a 120 mil pessoas (hoje são 50 mil). E foi na turbulência da corrida pelo ouro que nasceu o Teatro Experimental de Alta Floresta, em julho de 1988. Um grupo de teatro nas circunstâncias da época era algo improvável, e a forma de existência encontrada foi a busca pela formação de crianças, jovens e adolescentes para o teatro. A formação se dava por meio do fazer teatro e muitas peças foram montadas. Paralelamente, era feito um trabalho de formação de plateia e educação para o teatro na cidade. No início, havia escolas que se recusavam a levar alunos, sem cobrança de ingressos, a um projeto que tínhamos chamado Escola no Teatro, mas pouco tempo depois essa realidade mudou radicalmente. Assim foram formados todos os integrantes que o TEAF já teve. Hoje somos nove pessoas, mas estimamos que, ao longo dos 26 anos do grupo, já passaram pelo grupo pelo menos mil pessoas.

O Teatro Experimental completou 26 anos de atividade neste ano. Em comemoração, o grupo percorreu as trilhas do teatro em Mato Grosso. Diante dessa experiência, quais foram as realidades encontradas pelo grupo quanto à formação de público e de atores nesses lugares?

Realizamos um projeto de circulação com Santa Joana dos Matadouros. Iniciamos em Cuiabá, onde se concentra a maior quantidade de grupos e produções do estado. Na verdade, não temos o que poderia ser chamado de trilhas do teatro, mas “clareiras do teatro em Mato Grosso”. Existem ou existiram vários grupos na capital e no interior, mas muitos têm suas trajetórias interrompidas por adversidades alimentadas por falta de políticas públicas. Agora, existem sim trilhas sendo construídas entre os grupos que resistem a uma infinidade de coisas. Nossos projetos para circular no estado visam sempre estabelecer ligações com cidades (não apenas com áreas urbanas, mas também com áreas rurais), buscando fomentar a produção teatral, formar público e construir uma espécie de circuito. Na verdade, acabamos lutando para garantir o direito de muitas pessoas, o acesso à cultura e à arte, mesmo que elas não tenham consciência disso. Circular é algo que tem sido muitíssimo difícil; as distâncias são enormes, as realidades de grupos e cidades em relação a equipamentos e espaços são precárias e os recursos financeiros para romper com tudo isso são ínfimos.

Para realizar esse projeto e outros, costumamos “fabricar” teatros. De todos os locais a que fomos, apenas em Cuiabá contamos com todas as condições técnicas. Nas demais cidades, nós levamos todo o equipamento de iluminação do grupo (cabos, refletores, gambiarras etc.) para nós mesmos montarmos em teatros de centros culturais, auditórios e até mesmo quadras escolares. O uso do espaço alternativo não é uma opção estética, e sim uma imposição da realidade. Já nos apresentamos em quintais, embaixo de árvores, em centros comunitários e clubes de mães. A polivalência é comum, ao mesmo tempo somos atores, diretores, iluminadores, cenotécnicos, faxineiros, eletricistas, produtores, carregadores de caixas e motoristas. O que encontramos nas cidades é um público carente de teatro. Não são incomuns casas lotadas e grande abertura nos órgãos de imprensa local. Já sobre a formação dos atores, nos deparamos com realidades parecidas com a nossa em diferentes estágios da trajetória histórica do grupo.

O Ministério da Cultura aprovou o benefício Vale-Cultura, no valor de 50 reais mensais. Você já consegue perceber se esse benefício está gerando novos públicos para o Espaço Cultural TEAF?

Não existe ainda um benefício direto do Vale-Cultura para nosso espaço. Também não temos ouvido muito sobre o assunto até mesmo na capital. Isso não quer dizer que somos contra o Vale-Cultura; muito pelo contrário, o achamos um avanço. Porém, ele se depara com uma realidade crua do interior do país, onde consumir cultura é, resguardadas raríssimas exceções, ver TV e ouvir música com o hit do momento. Sabemos e temos consciência de que nós, como grupo de teatro e o próprio espaço cultural que criamos, somos ações de resistência e esperamos um dia ser beneficiados por programas como o Vale-Cultura, mas antes o país tem um enorme desafio: o Vale-Cultura precisa vir precedido e acompanhado de políticas públicas e garantias dos direitos culturais das pessoas. É preciso investir mais nos grupos artísticos e culturais para que tenham forças para continuar formando público, não pelo convencimento, mas pela experiência da fruição. Temos de ser fortalecidos para circular com nossas produções e permitir as descobertas da necessidade da arte que está dentro de cada ser humano.

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