Ressignificando fotografias feitas com propósitos racistas, a artista desconstrói a representação do negro e reafirma, segundo um curador, os que “ajudaram a fundamentar a cultura brasileira”
Publicado em 06/08/2020
Atualizado às 17:43 de 16/08/2022
Artistas Mulheres Contemporâneas no Acervo destaca produções de criadoras presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Rosana Paulino
Eva Nº 1, da série Adão e Eva no Paraíso Brasileiro, 2014
colagem, grafite e acrílica sobre papel azul
49,5 x 34,5 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Arquivo da artista/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
O filósofo francês Michel Foucault fala de como poder e saber se misturam – o saber gera efeitos de poder, as relações de poder produzem saber. Algumas obras da artista visual Rosana Paulino, entre elas Eva Nº 1, que destacamos aqui, operam uma percepção similar: para abordar o racismo no Brasil, manipulam representações do negro que se constituíam como um olhar alheio, de fora, que visavam a esse outro como um objeto de exotismo ou de estudo científico.
Não temos de pronto essa sensação de olhar exógeno quando vemos Eva Nº 1? A mulher negra é vista em um padrão visual que podemos reconhecer como aquele usado para exibir criminosos e espécimes. Em grande escala, há a pintura de parte de um esqueleto, bacia e coluna; podemos extrair do todo o enunciado “é assim a ossatura desse tipo”. A obra mobiliza ícones que são tanto saber quanto poder: catalogar desse modo implica domínio e vice-versa.
Informa a pesquisadora Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua, “a série Adão e Eva no Paraíso Brasileiro, de 2014, faz parte de um projeto maior da artista de explorar a relação da ciência com os horrores da escravidão”. Entre outras, Rosana usa fotografias de Louis Agassiz (1807-1873), cientista muito influente no debate da sua época que produziu teorias e material empírico contra o evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882) – ele era criacionista – e em favor da supremacia branca. Entre 1865 e 1866, Agassiz veio ao Brasil – onde se chocou com “os efeitos perniciosos da mistura de raça” – e fez produzir 200 fotografias, no Rio de Janeiro e em Manaus.
Na série Assentamento, Rosana já havia usado figuras desse tipo, e “em Adão e Eva no Paraíso Brasileiro”, fala Juliana, tais fotografias são “novamente ressignificadas”. Para a professora, esse conjunto de obras reúne “desde pessoas escravizadas a herbários e esqueletos para representar um país onde tudo pode ser negociado, como em um grande armazém”, e nisso estaria “evidente que essa junção ou fusão sintetiza também as formas de classificação do mundo no século XIX, que incluía plantas e animais, mas também povos de origem africana e indígenas”.
Também podemos ver o título da série por meio de um diálogo com Agassiz. O cientista defendia o “poligenismo”, isto é, segundo o Nexo, com base na historiadora Maria Helena Machado,
acreditava que existiam “zonas de criação”, que haviam produzido, em partes do mundo distintas, quase ao mesmo tempo, diferentes espécies. A raça branca, por exemplo, seria aquela mais avançada, única que descendia de Adão e Eva. Agassiz afirmava que os negros, por sua vez, haviam surgido de uma outra criação, que produziu uma raça inferior, oriunda das regiões tropicais.
Portanto, para Agassiz, não haveria Adão e Eva para os trópicos, assim como o Brasil seria tudo menos um paraíso. Seja como for, com suas fotos – segundo o curador Marco Antonio Teobaldo – “o que se conseguiu na realidade foi documentar aqueles que ajudaram a fundamentar a cultura brasileira". Nesse sentido, se Eva Nº 1 e toda a série remetem acima de tudo à vida dos retratados, o título pode subverter também: exibir como pais originários esses homens e mulheres opressos.
Rosana Paulino é doutora em poéticas visuais pela Universidade de São Paulo (leia sua tese “Imagens de Sombras”), instituição onde cursou artes plásticas. É especializada em gravura pelo London Print Studio, da Inglaterra. É também professora. Entre outras exposições, fez parte de Modos de Ver o Brasil: Itaú Cultural 30 Anos, sediada na Oca, em São Paulo, e do V Fórum Latino-Americano de Fotografia, aqui na instituição. Rosana concedeu duas entrevistas ao Itaú Cultural – uma para a série Cada Voz, outra para o Diálogos Ausentes, projeto no qual ministrou a palestra O Negro nas Artes Visuais no Brasil. Saiba mais sobre ela e seu trabalho na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.