Ao fazer um mapa do oceano pelo qual mais de 10 milhões de negros navegaram escravizados, o artista guia nosso olhar pela história e pela atualidade, pelo crime e por potências esquecidas
Publicado em 18/03/2021
Atualizado às 17:13 de 16/08/2022
Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Arjan Martins
Atlântico, 2016
acrílica sobre tela
200 x 390 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Esses são os mares dos quais o poeta Castro Alves pedia que se fechassem as portas. Na pintura de Arjan Martins, intitulada Atlântico, vemos uma representação do oceano no qual foram feitas mais de 30 mil viagens de navios negreiros, nas quais mais de uma dezena de milhões de africanos foi subtraída das suas casas, segundo a base de dados Slave voyages, que apresenta informações de 1501 a 1875. Cerca de 3 milhões desses escravizados tiveram por destino o Brasil. “É verdade”, perguntou o poeta, “tanto horror perante os céus?”. Era.
Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural
O mapa de Arjan condensa símbolos, conceitos e datas históricas. Sobre o continente americano está o termo slave trade – o comércio ou tráfico de escravizados. Mais próximo à África lemos diáspora, palavra que designa a dispersão forçada de um povo. Há também dois anos inscritos nesse último território: 1534 e 1870. Em 1534, com a produção de açúcar, começa a escravidão indígena no Brasil – na década de 1550, inicia-se o sequestro de negros para cá. Em 1870, sob os desdobramentos da Guerra do Paraguai, o abolicionismo ganha força no país* (leia mais).
Ainda mais, vemos a rosa dos ventos – recurso de navegação que representa os pontos cardeais –, o ícone da coroa portuguesa, embarcações, um pequeno quadro com fluxos navais aos países caribenhos, referências aos dois locais no Brasil que mais receberam pessoas vendidas, a Bahia (Baya Todos os Santos) e o Rio de Janeiro. Vemos, duas vezes, no corpo da África, o número nove em algarismo romano – o que parece apontar para duas épocas. Primeiro, o século IX a.C., quando foi fundado, onde hoje é a Tunísia, Cartago, estado dominante no Mediterrâneo por séculos. Segundo, o século IX d.C., no qual o império de Gana vivia seu apogeu e em que a civilização iorubá, na região da Nigéria, criou cidades. Esse continente sempre foi pujante.
Entre marcas da barbárie escravista e signos da potência africana destruída e ignorada, a pintura não somente imerge nosso olhar no passado como o direciona a procuras históricas, mapeia a história em profundidade – se este texto não tivesse informado sobre alguns sentidos possíveis, caberia a quem vê o quadro descobri-los (e certamente há outros...). Trata-se de um ponto de vista ativo, de quem constrói e contesta hoje, como comenta de outras obras o crítico Michael Asbury: “[Elas] não nos revelam uma história, mas sim como a história é apresentada aqui e agora”.
O contemporâneo, com efeito, é uma faceta decisiva do trabalho do artista. Uma de suas telas, por exemplo, pode remeter ao motorista Anderson Pedro Mathias Gomes e à vereadora Marielle Franco, assassinados em 14 de março de 2018 – completados três anos, a investigação segue indefinida. Em outra pintura, retrata Ágatha Vitória Sales Félix, que morreu em 2019 aos 8 anos, baleada quando voltava para casa com a mãe, em um transporte coletivo, ao cruzar uma operação policial na capital fluminense (em 2020, 12 crianças foram mortas no estado).
Contudo, essa atualidade não se reduz à denúncia: em Arjan, são igualmente essenciais os fatos brutos e a elaboração artística. É o que afirma o curador Luiz Camillo Osorio: “As pinturas de Arjan evidenciam as dores da colonização e da opressão escravocrata – ainda tão presentes em nossos conflitos sociais cotidianos – mas fazem isso com uma exuberância violenta da forma, que não se deixa domesticar em ilustração”. Portanto, não se trata só do que Arjan pinta, mas de como pinta, do que se apropria. Nesse sentido, o artista conta de um trabalho feito sobre fotos que comprou em uma feira e que, “como um estalo”, “migraram para os [seus] trabalhos”:
Migraram como pessoas mesmo, não como marcas afro, ou como elementos temáticos. Eu queria pintar aquelas senhoras. [...] estas imagens me traziam uma sensação de muita dignidade [...]. Mas obviamente, tinha ali uma questão de que precisamos falar, que é dos brasileiros. Estamos falando de uma pintura que comenta sobre uma grande parcela da população, que não necessariamente está nos lugares de possíveis oportunidades, está à margem, está numa estrada, assim como naquelas fotografias. Eu me interessei por estas pessoas. Estamos falando hoje dos negros, de uma dívida social, de oportunidades, de educação, etnocídio, estamos falando de várias camadas e negros. E estão emergindo estas camadas da comunidade afrodescendente no meu trabalho.
Comentando alguns retratos, um catálogo diz que “são distintos pedidos de trégua”, que, “com traços sublimes as pinturas do artista tratam de expor os rostos negros em suas resistências”. O par resistência/trégua ecoa a espoliação e a força evidenciados na África. Arjan tem sempre um olhar duplo? Como soma arte e fato, seu gesto guarda afeto e denúncia, criação e aprendizado.
Argentino Mauro Martins Manoel, o Arjan Martins, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Laje, no Rio de Janeiro, onde teve aula, entre outros, com os artistas Elisabeth Jobim e João Magalhães e com o pesquisador Fernando Cocchiarale (que abordou sua obra aqui). Suas primeiras obras são desenhos, intervenções em espaços públicos e criações a partir de materiais encontrados nas ruas. A pintura com o tempo se tornou central no seu trabalho. Para saber mais, veja este perfil do artista feito pelo jornal Público, de Portugal. Ainda mais, releia Atlântico pela perspectiva do uso de mapas nas artes visuais por meio deste artigo da área de geografia.
* Também em 1870, nos Estados Unidos, foi promulgado o primeiro de uma série de enforcement acts, ou leis de execução obrigatória, que tomavam medidas para garantir os direitos de cidadãos negros americanos (outros dois seriam publicados em 1871). Esses atos legais vinham na esteira de três emendas à constituição do país: a 13ª, que aboliu a escravidão, a 14ª, que determinou a garantia de proteção legal a todos, e a 15ª, que reforçou a universalidade do direito ao voto. Leia sobre isso no site do senado dos Estados Unidos (em inglês; para o português, use a tradução do Google).