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Artistas negros | A disciplina da madeira e a Bahia metafísica: os fascínios de Emanoel Araújo

Nas primeiras gravuras do artista, temos um ponto de vista privilegiado para pensar sua trajetória, seus experimentos com formas e materiais, sua reelaboração dos conteúdos da cultura

Publicado em 25/03/2021

Atualizado às 14:58 de 07/09/2022

Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Emanoel Araújo
Bahia, 1964
álbum com sete xilogravuras e desenho a nanquim e aquarela
54 x 28 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

“Criação de beleza e mistério, a beleza e o mistério da Bahia.” Assim o escritor Jorge Amado se refere aos gatos representados pelo artista visual Emanoel Araújo – felinos da noite de Salvador, “em sua ânsia, em seu desejo, em sua presença quase humana”, gravados em madeira. São da mesma época e estilo as três imagens que destacamos acima – também nelas despontam o belo e o misterioso baianos? O menino e os cataventos azuis, laranja e verdes; as três mulheres de vestido estampado; por fim, o orixá Omolú, responsável pela saúde, em meio à sua dança.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Essas figuras compõem Bahia (1964), álbum que reúne ainda outras quatro gravuras: três cenas da capital baiana, casas, ladeiras, igreja, e um gato. Trata-se de produções do início da carreira de Emanoel. Nascido em Santo Amaro da Purificação, cidade do recôncavo baiano onde também nasceu um amigo seu, Caetano Veloso, o artista começou na arte criando pinturas com guache. Depois de se mudar para Salvador, tomou gosto pela gravura, incentivado por Henrique Oswald, seu professor na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia, na qual ingressou em 1963.

Emanoel aprendeu métodos de gravação no metal ­– a água-forte, a água-tinta – mas, como ele diz nesta entrevista ao jornalista Miguel de Almeida: “era fascinado por madeira”. Repare: o material, mesmo sem se definir como será usado, já interessa. A matéria apaixona o artista, mas não só – exige também um domínio; é o que nota o gravador no depoimento citado: “A técnica é uma questão de disciplina, isso foi Henrique quem me ensinou”. Tendo ouvido isso, o entrevistador questiona: “O que seria essa disciplina?”. A resposta é a que segue:

Trabalhar constantemente determinadas funções da gravura. A gravura tem muitos estágios, muitos estados. Tem a madeira, o desenho, o corte, a prova, os brancos, tirar do preto o preto. A gravura se caracteriza por linhas positivas contra formas negativas. Ou seja, você tem preto e tem que tirar o preto dele. A gravura é a arte pela qual se cria o positivo do positivo.

Toda essa dinâmica – essa mescla de fascínio e disciplina – marca as xilogravuras que vimos. Além disso, inscreve-se nelas a tradição da gravura baiana, caracterizada, de acordo com Emanoel, pelo uso de aglomerados (chapas de resíduos de madeira prensados) e compensados (chapas de lâminas de madeira prensadas), o que, diz ele, permite “buscar no sulco da madeira a textura, meios tons e a própria madeira como matéria”. No que esses detalhes técnicos mudam a sua percepção daquelas obras, do brincante, das baianas, do deus? O que você vê agora?

A partir desses trabalhos, a obra de Emanoel se desdobraria em variados caminhos. Sua gravura abordaria outros temas (da política e da erótica, por exemplo) até se tornar abstrata, ou, podemos dizer, fascinada pela forma e pela cor. Também desenvolve com o tempo um interesse por peças tridimensionais, desde gravuras com relevos até chegar a esculturas. Em 1976, visitar a Nigéria lhe fez mais flagrante a problemática da negritude – fundamental na sua trajetória – e lhe sugeriu absorver inspirações da arte africana, seus símbolos, seus materiais e sua geometria.

Esse diálogo com uma África “arcaica, ancestral e mítica” parece ser motivado tanto pelo bom encontro entre práticas – Emanoel já operava com padrões geométricos – quanto por uma busca pelo que constrói sua identidade – como indivíduo, como brasileiro e como homem negro tendo de viver sob estruturas racistas. Ele parece dizer: é preciso saber quem veio antes de nós, temos de compreender o que nos constitui. Essa questão é muito evidente em uma declaração sua sobre Para nunca esquecer: negras memórias/memórias de negros, exposição curada por ele que, diz o artista, é

uma arqueologia de uma cultura que foi soterrada. Esta exposição, assim como as outras que fiz, tenta trazer à luz todos os elementos que compõem a cultura brasileira, esse grande caldeirão que está sempre subterrâneo. Revisitar essa memória é, no fundo, retirar essa cultura de um porão, de um terreno soterrado onde ela se encontra, [onde] por mais que você grite, grite, grite, por mais que você faça alarde, ela continua sem ressonância. Essa exposição é importante para mim no sentido de que possa ser uma ressonância sob vários aspectos: o da autoestima, o da necessidade (da ostentação) do halo ancestral que existe entre o estigma e a vida.

As gravuras que observamos prefiguram um pouco tudo isso. Já na representação da arquitetura de Salvador estava, nota a doutoranda em artes visuais Patrícia Pedrosa, sua “aproximação com a geometrização”, dada por “memórias afetivas que evocam um barroquismo baiano” (e nos contornos do catavento não vemos esse aspecto?). Por outro lado, Jorge Amado defendeu que a cultura popular, a “criação cotidiana do povo”, alimentava, entre outros, Emanoel. E na medida em que aspirou à África antiga, o artista sente falta de “uma Bahia metafísica, dos anos 1960 e 1970” – talvez essa mesma das xilos. Lá e cá, a afeição das formas e dos materiais e a postura crítica e recriadora diante da cultura. É disso então que são feitos a beleza e o mistério.

Emanoel Araújo é gravador, escultor, desenhista, ilustrador, figurinista, cenógrafo e pintor. Além da atividade como artista, tem atuação expressiva como curador, museólogo e gestor cultural – é o diretor curador do Museu Afro-Brasil, criado em 2004 com os itens da sua coleção particular; e foi, entre 1992 e 2002, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Leia sobre sua história na tese de doutorado Garimpeiro de memórias: memórias de Emanoel Araújo, de Francisco Rohrer, e conheça seu ateliê neste vídeo da revista Bravo!. Acesse outras informações e uma galeria com mais de dez obras suas na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.

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