Em trabalhos dos artistas Amelia Toledo, Antônio Henrique Amaral, Luiz Sacilotto, Claudio Tozzi e Éder Oliveira, o que já sabíamos está no ponto para ser descoberto outra vez
Publicado em 21/10/2021
Atualizado às 16:58 de 16/08/2022
Cores é a sexta série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada publicação, são apresentadas obras variadas, mobilizadas por uma cor primária. Siga esse ciclo também pelo Instagram.
por Duanne Ribeiro
A arte devolve experiências que a gente nem sabia que tinha deixado para lá. Por exemplo: olhar uma cor. Quando você já parou e observou, digamos, pois é nosso tema, o amarelo? Dando foco a ele mesmo, e não de passagem vendo-o, quase sem constatar, no sol, na aliança de casamento, no miolo de uma margarida? Imagine, dar atenção a uma cor! Quem tem tempo para isso?
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Amelia Toledo teve, e parece que nos convida a ter. Na obra da artista que nós destacamos, sua majestade, o amarelo (esse modo de falar, tiramos, claro, da música de Roberta Miranda – mas, ora, o sabiá também é amarelinho...) é quase tudo o que nos é entregue: pintada sobre a juta, a cor aparece vazada pelos poros dessa fibra; também não é colocada no tecido de forma sólida, mas em pinceladas que se sobrepõem. Esse tipo de trabalho é característico de Amelia: os seus campos de cor, horizontes e espirais dão vivências do amarelo, do azul, do roxo, do verde...
Se vamos e voltamos desse contato com o amarelo em pessoa, nossa percepção das coisas que são amarelas muda? Pelo menos por um tempo, ver, digamos, uma banana não será o mesmo. A arte faz redescobrir experiências que poderiam parecer triviais ou silenciosas. Não é o caso desta Penca com 2 bananas, de Antônio Henrique Amaral? O amarelo, desta vez, é fundo, luminoso, e aparece também, escuro, junto ao marrom da fruta muito madura. Além desses verdes e azuis estrangeiros no cabo, o recorte da imagem pode impedir que se identifique de imediato do que se trata. Nosso olhar era dono de algo tão comum e agora pode se deixar surpreender.
Algo semelhante parece ser proporcionado por C 9770, de Luiz Sacilotto. De acordo com a região da obra a que damos enfoque, um efeito diferente se entrega. Se abrangermos com a vista toda a peça, é delineável um grande losango; os contornos, de fato, não são dados, mas os intuímos. Se seguirmos o caminho das linhas a partir das bordas – por exemplo, à esquerda, no topo, preta e, à direita, no topo, amarela –, podemos delimitar quatro quadrados. Se não considerarmos que a mudança de cor implica interrupção (não é natural pensar assim?), pode ser demarcado um par de retângulos, de cima a baixo em cada lado – e então é como se tivessem sido deslocados: se trocássemos os dois de lugar, formariam uma gradação decrescente de quadrados.
Esgotamos assim C 9770? Pelo contrário, o que marca a obra é a potência de permanecer múltipla: não podemos reduzi-la a essas leituras que fizemos nem a outras; o movimento de uma a outra (e, aliás, mover o olho de um ponto a outro não dá uma impressão móvel, vibrátil?) é sua força.
De nossa parte, isso implicaria uma capacidade de conter perspectivas numerosas em um só ato de entendimento, ao mesmo tempo que se mantém possível para nós visitar as diferenças. Homem se enterrando, de Claudio Tozzi, permite – como toda arte? – um procedimento assim. Vemos, contra o fundo amarelo, uma composição feita de azul, vermelho, preto e branco. Com a sugestão do título, podemos imaginar o tal homem que se põe sob a terra. Acima, um tríptico mostra o personagem em duas situações – à esquerda, voltado para uma direção e, à direita, para outra – e exibe, sem cores, o desenho, que agora lembra mais um mapa. Pouco muda e tudo muda.
É interessante que Claudio tenha outra pintura muito similar: A luta (veja no site do artista, clicando em “Obra” e depois em “Década 70”). As poses nos extremos do tríptico são similares, mas, nesta segunda, a mão diante do corpo remete à postura do boxe. Já a imagem maior – quase a mesma, invertida a orientação – levaria a visualizar uma briga no chão. Se você, leitor, for como eu, tudo isso se passa somente pelo nome dado às duas obras. O título preenche as imagens de certa forma, como as cores fazem com que simples contornos representem algo.
As formas e as cores, as narrativas e as imagens são sempre carregadas dos sentidos que pomos nelas? Nossa última obra pode dar o que pensar nesse sentido. Encare o rapaz pintado por Éder Oliveira, mais amarelo que O homem amarelo, de Anita Malfatti. Que impressões ele lhe passa? Agora reveja a pintura com a seguinte informação: Éder retrata, entre outras representações do homem amazônico, acusados de crimes capturados pela polícia e divulgados pela imprensa (veja mais obras). Nós olhamos nos olhos de um criminoso? Isso altera a nossa percepção?
A arte insinua questões que a gente nem suspeitava precisarem de resposta. Por exemplo: como percebemos as pessoas, o que se mistura nesse contato? Pode ser tão tortuoso enxergar alguém de fato quanto se dedicar a observar por um tempo uma cor. Quem tem tempo para isso?