Por meio de um processo criativo que mistura referências externas e internas, deixando espaço para o que não se pode prever, o artista visual busca transformar mentalidades
Publicado em 19/11/2020
Atualizado às 17:24 de 16/08/2022
Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
José Rufino
Nostrum spiritus rebellis. Nostrum spiritus domitus, 2010
madeiras, metais, ceras, tingidores, vernizes e vitrine de madeira e vidro
154 cm× 154 cm× 200 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
Por Duanne Ribeiro
O louco, o monstro, passou por aqui – José Rufino deixou que viesse e o pôs sob alguma forma de controle. O resultado é a obra. Para senti-la bem, teremos de passar pelo mesmo processo?
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Vamos descobrir. Primeiro, expliquemos algumas coisas desse primeiro parágrafo: nos referimos ali ao que José disse sobre seu processo criativo e suas definições sobre arte. O artista visual – que trabalha com desenhos, instalações, objetos, pinturas – considera que o trabalho criativo se dá no encontro entre três determinantes: influências externas, sociais, por exemplo; símbolos subjetivos, retrabalhados pelo criador; e um elemento coringa: certo descontrole. Isso tudo:
porque a criação artística é um mistério. Ela é ao mesmo tempo manipulada por aquilo que está do lado de fora – pelo mercado de arte, pela necessidade de produzir para um certo evento, pelo tempo, pela limitação financeira ou de materiais – e ao mesmo tempo por uma liberdade total. Quando a gente está criando, esse monstro emerge e aí ele tem que ser domado pelo criador.
Ainda mais, a arte é também um saber sair de cena – “Tem um momento em que eu preciso [...] deixar aflorar essa espécie de louco que mora aqui dentro e que opera na realidade o calor da criação” – e o baque do retorno – “Quando eu saio desse calor da criação e olho [para a obra], aquilo pode inclusive me provocar um susto”. Ao ver Nostrum spiritus rebellis. Nostrum spiritus domitus, portanto, observamos um entrecruzamento, um acontecimento.
A escultura – cujo nome, vertido do latim, significa “Nossos espíritos rebeldes. Nossos espíritos dominados” (que parece ressoar a definição de arte feita por Rufino...) – consiste em um móvel de madeira de estilo antigo, formado por quatro vitrines que se unem em um formato de cruz. Nesse eixo em que todas se tocam, desponta de cima uma raiz de árvore. Cada mostruário traz um objeto: em dois deles, são miniaturas de obras de arte – Roda de Bicicleta (1951), de Marcel Duchamp, e Fettstuhl (1964), de Joseph Beuys –; nas que restam, há pequenas escrivaninhas. Fatores externos e dados subjetivos interagem aqui.
Na dissertação de mestrado José Rufino: arqueologia e memória, de Mônica Pereira Juergens Age, é discutida a oposição de princípios nos trabalhos de Duchamp e Beuys. O primeiro, com a sua roda de bicicleta engatada em um banquinho, buscou diluir o sentido de “arte”, atribuindo tal palavra a um objeto comum. Já o segundo acreditava que esse projeto “antiartístico” se esgotara – era preciso provocar debates, possibilitar esclarecimentos. Fez então uma cadeira de madeira; pôs, no assento, gordura moldada em triângulo, e, no encosto, arame enrolado. Diz Mônica:
José Rufino entende a importância dos dois artistas e os coloca em equilíbrio. Em sua obra […] lembra-nos da herança deixada por Duchamp e Beuys, que foram espíritos rebeldes (spiritus rebellis), que quebraram os paradigmas de seu tempo, foram além do conceito dominante de arte (spiritus domitus).
Equilíbrio entre o mundo como disponibilidade total ao gesto artístico e a arte como instrumento para alterar o mundo? Essa divisão estaria de acordo com outras declarações de Rufino sobre sua perspectiva criativa na entrevista que citamos. De um lado, ele afirma que, como artista, atua no plano simbólico, de onde “o assunto emana – ele existe na natureza humana e se existe é tratado por artistas”. Por outro, fala que sempre visou “à transformação de mentalidades” e que, assim, seu “trabalho está sempre atrelado ao que você poderia, em síntese, chamar de arte engajada”.
Dessa forma, menos Duchamp e mais Beuys, como Mônica também aponta: para ela, em Rufino, “os objetos não são escolhidos aleatoriamente, mas fazem parte de uma ordem oculta criada pelo artista que nos leva à reflexão”. Isso vale para outros componentes de Nostrum Spiritus... – daqui em adiante, interpreto livremente, convido o leitor ao mesmo: o móvel, de aparência “antiga, colonial”, evoca as questões do tempo e da memória – assunto que é importante para Rufino. As escrivaninhas lembram o artista enquanto operário. A raiz, lado a lado com esses elementos, parece dizer que é do trabalho e do choque dessas referências que nasce... a obra? o criador?
Algo brota dessa união, e talvez seja ela a toca do monstro, o espaço do louco.
José Rufino é formado em geologia e pós-graduado em paleontologia, disciplina que leciona na Universidade Federal da Paraíba. Na década de 1980, dedicou-se à literatura, com interesse pela poesia visual e concreta. Sua atuação nas artes visuais é marcada por obras que retrabalham seu legado familiar e que operam com objetos que possuem história. É conhecido, por isso, como “artista da memória”. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.