Trabalhando a tensão e a gradação entre materiais contrários, o artista desestabiliza este nosso mundo em que as relações estão fixadas, em que tudo é como sempre foi
Publicado em 28/01/2021
Atualizado às 17:21 de 16/08/2022
Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Nuno Ramos
Série Afogadas, 1997
ferro fundido e óleo
40 x 40 x 40 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Ao nosso redor – na nossa cidade, na nossa casa – as substâncias se aproximam sem alvoroço. A água sobre a louça ou sobre o mármore na pia do banheiro; o óleo sobre o aço da frigideira. Mesmo quando algo falha – o leite que transborda no fogão –, certa harmonia persiste: é fora do lugar, mas um fora do lugar previsto... Já na Série Afogadas, do artista e escritor Nuno Ramos, outra relação se efetiva: ferro fundido e óleo em geral não estão lado a lado. Aquela familiaridade do dia a dia foi embora, ficamos com a estranheza: por que esses materiais estão juntos, dessa forma?
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Tudo indica, para que os vejamos juntos, dessa forma. Sem procurar utilidade ou lógica, somente considerar esse pequeno absurdo do ferro fundido somado ao óleo. Por ser incomum, a própria interação entre coisas distintas se torna aparente – e uma anedota mostra que isso é importante: em uma entrevista, Nuno comenta que não gosta de tal artista porque não vê “tensão” nas suas obras. Na Afogadas, estamos atentos a uma tensão: entre sólido e viscoso, vertical e horizontal, entre a expectativa de uma “lógica” e essas formas irregulares empilhadas sobre poças.
Mesmo a composição desse trabalho – o que o levou ao estado em que o encontramos – implica o tensionamento: as esculturas são feitas de partes que, encaixadas, fazem transbordar o óleo. É o jogo entre o peso do metal e a resiliência do líquido que vai definir a figura da obra – o artista, entre controle e desatino, dispôs a cena, disparou um processo. É, diz ele, um ato delicado:
Todo mundo me fala, como se meu trabalho muitas vezes fosse assim, “ai, que legal, porque tanto faz”. Para mim não: tem uma hora que está lindo, aí cai um milímetro e estraga tudo. Eu sou super sensível nesse sentido. Mas acho que o que eu quero é o momento em que a matéria está quase solta. Aí fica bom, talvez seja isso que impressione muitas vezes, é esse momento em que a matéria está um pouco descontrolada.
Tensões semelhantes à das Afogadas se dão em outras criações de Nuno: em Manorá Branco (também de 1997), lâminas de mármore encaixadas derramam vaselina derretida (esse trabalho teria variações: em 1999 Manorá Preto – granito e vaselina com cinzas – e em 2004 Manorá Vermelho – mármore, vaselina e pigmentos), mesma operação das Pedras Marcantônio (1998). Em todas, a individualidade de cada material e o desenlace da sobreposição são o que importa. Como o artista afirma noutra entrevista, falando em especial das últimas citadas:
Acho que a região que eu habito é uma região um pouco de fusão das coisas. [...] Eu gosto das coisas meio crepusculares, entre noite e dia, entre sólido e líquido, entre velho e novo; nas cores sempre os tons, não as cores, sempre a coisa um pouco assim na borda. [...]
A pedra do jeito que está eu detesto, mas quando a vaselina cai a pedra vira outra coisa, ela amolece, o contorno externo some, a matéria serve para desmaterializar também, para criar similitudes, apagamentos, para preencher o que estava vazio. Não é uma chamada à corporiedade, esses terrenos meio pantanosos é que eu acho bonito. Está tudo meio se fundindo em tudo como se fosse aquela hora em que a individuação ainda existe mas as propriedades já estão se relacionando com as do corpo ao lado.
Esse tipo de proposta atravessa sua produção. Está nas primeiras pinturas, como ele conta em um perfil da piauí: “Lembro, no começo, de molhar a tinta na água e colocar no papel. O líquido escorria e eu mexia a folha de um lado para o outro. Foi a primeira vez que tive a percepção de que gostava mesmo era da experiência da bagunça da matéria, de ficar na consistência das coisas”. E está em trabalhos mais recentes, como Bandeira Branca (2010), instalação composta de vários materiais sólidos, caixas acústicas e urubus. No livro de ensaios Verifique se o Mesmo, Nuno diz haver “uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio em torno dele”. Assim, ele é “feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo”. Saltamos de uma borda à outra.
“É como se as coisas dissessem que estão cansadas de seu uso convencional, aspirando a uma desconformidade com a representação, a uma divergência com os símbolos”, comenta o crítico Régis Bonvicino sobre uma retrospectiva do autor e completa: “Divergência com os valores do mundo, como risco, experimento ou manifestação de um ser pensante e vivo, que se recusa a encontrar uma só resposta ou significado para uma questão”. Nesse procedimento, parece que Nuno reativa partes desacordadas do mundo. Podemos experimentar isso com aquelas nossas substâncias tão bem ajustadas? Depois não adianta chorar a inconsciência derramada.
Nuno Ramos atua nos campos da literatura, da música, do cinema e das artes visuais – na qual realizou pintura, escultura, instalação e land art (tipo de obra criada em relação com a natureza). Escreveu as obras literárias Ó (2008), Cujo (2011) e Sermões (2015), entre outras. Fez as letras do álbum Sambas do Absurdo (2017), de Rodrigo Campos, e Disco das Horas (2018), de Romulo Froés – além de ter participado de outras criações na área musical. Veja outros trabalhos no seu site e saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.