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Esculturas | Querer e repelir o toque: Maria Martins esculpe o impossível

Ao abordar as tensões do desejo, a escultora – fala o crítico Paulo Herkenhoff – evidencia "esse encontro, esse vazio em torno do qual nós somos feitos, essa incompletude"

Publicado em 10/12/2020

Atualizado às 17:23 de 16/08/2022

Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Maria Martins
O Impossível, déc. 1940
bronze fundido patinado
178,6 x 167,5 x 90 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: João Luiz Musa/Itaú Cultural

por Duanne Ribeiro

Vamos fazer um jogo. Eu digo uma palavra e você repara na primeira coisa que lhe vier à cabeça. Um, dois, três: impossível. Pronto? Guarde essa associação inicial e deixe fluir outras: o que mais esse substantivo lhe recorda, o que mais ele evoca? Não pense muito, não pense nada. Só associe.

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Essa seria uma espécie de jogo ao gosto dos surrealistas: procedimento para se deixar levar por conexões imprevistas, para revelar o que nem sabíamos que pensávamos, para fugir um pouco da racionalidade. Não é por nada que lembramos dessa corrente artística do início do século XX: a artista que encontramos hoje, Maria Martins (1894-1973), foi "a maior escultora surrealista do país" – faz sentido, assim, brincarmos um pouco de surrealismo antes de engolir apressados o seu trabalho. E essa brincadeira consiste em olhar para dentro e ver aonde isso nos leva.

Pois bem, com os significados que pudemos mobilizar (eu aqui lembrei do "Seja realista: peça o impossível", dos militantes de 1968* – será que ajuda?), fiquemos diante da obra: O Impossível, essa acima, é uma das versões dessa escultura, feitas entre 1944 e 1946. Os nossos impossíveis são o mesmo da artista? Maria dispõe duas criaturas pretas que se encaram; seus "rostos" são abertos e vazios, com laterais que se estendem como tentáculos ou espinhos de planta carnívora (a dioneia, por exemplo). Os personagens têm traços masculinos e femininos, o que induz a ver a cena como uma relação entre macho e fêmea. Tudo somado, o que, aí, não é possível?

Talvez o caminho das livre associações ­– mais ou menos bem-sucedido na nossa tentativa lá do começo – possa entregar uma resposta. Já fizemos algumas: falamos de tentáculos e espinhos. Nem animais nem vegetais, ambas as coisas sobrepostas, esse macho e essa fêmea se beijam – não é plausível ver isso? –, ou ao menos buscam o outro. Entretanto, se aproximam, podemos dizer, dentes contra dentes; o que poderia ser só afeição é pesado de agressividade. Maria soma paradoxos e, ao figurar algo que complica classificações e funde disputa e sedução, delineia algo da natureza humana. A curadora Carolyn Christov-Bakargiev, por exemplo, interpreta:

É muito assustador tocar o outro, ser tão frágil ao tocar o outro, porque nossa pele é uma membrana que separa o ser mas também permite a conexão por causa do toque. Então, acho que ela representou no seu trabalho esse mistério do toque. Esse tocar e repelir. [...] [Maria traz] essa essência fundamental do encontro com o outro, que é tão perigoso, porque você se perde, mas que também parece muito com uma tensão elétrica.

"Ela mostra fisicamente o momento de complementariedade e de encontro", expõe o crítico Paulo Herkenhoff, "mas ela chama de impossibilidade". Por meio de procedimentos assim, defende ele, Maria retrata "esse encontro, esse vazio em torno do qual nós somos feitos, essa incompletude". Sendo assim, podemos, outra vez, observando O Impossível, olhar para dentro e ver aonde leva, pois é de coisas que todos sentimos – vontade e recusa, falta e prazer – de que ela trata. Outros comentadores apontaram isso, e é interessante notar como cada ótica enfatiza sentidos distintos.

O professor Raul Antelo, no catálogo da mostra Maria Martins: Metamorfoses, feita em 2013 no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), diz que, em O Impossível, "a artista partira, de certa forma, da noção de que o amor, seja ele carnal, sentimental ou ascético, revela sempre uma saudade pela continuidade, pela continuidade perdida, isto é, reiteradamente, a busca de um impossível”. Já a pesquisadora Alessandra M. de Oliveira considera que, na escultura, "a paixão parece ser tema central e ao seu redor a sensualidade e as dores de natureza feminina fornecem intensidade à peça. Maria ousou mostrar o desejo feminino; a sexualidade da mulher".

Tínhamos antes medo, fragilidade, tensão; agora temos amor, saudade, anseio de continuidade, paixão, sensualidade, dor, sexualidade. Todas são figuras da nossa experiência; e, se jogarmos aquele jogo inspirado nos surrealistas, fazendo ramificar essas palavras, poderemos mergulhar mais e mais no impossível. Em suma, conforme argumenta Herkenhoff, existe em Maria "uma agenda aberta para expor o desejo como uma condição absoluta da experiência humana, que nos constitui sujeitos". Somos, portanto, essas plantas-bicho que se beijam-mordem?

Maria Martins foi escultora, desenhista, gravadora e escultora. Seu trabalho é marcado por uma referência ao imaginário brasileiro (por exemplo, lendas locais) e pelo foco no corpo – para Miguel Rio Branco, também artista visual, Maria trouxe "uma sexualidade que mordia. Uma sexualidade invasiva, uma sexualidade que comia pedaços das pessoas" (essa fala, assim como as demais sem fonte citada no texto, é do documentário Maria – Não se Esqueça que Venho dos Trópicos). Apesar de ser dita surrealista, à escritora Clarice Lispector ela afirmou: "Eu sou anti-ismos". Veja mais informações na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

 

* Nota: quando Maria me suscitou a lembrança desse lema, eu não sabia disso, mas escrevendo o texto acabei descobrindo, na sua entrevista a Clarice Lispector, que a escultora tratou das manifestações de maio de 1968. São duas trocas. A escritora diz: "Que é que você acha da juventude de hoje?", e Maria responde: "Acho, Clarice, que a juventude tem sempre razão, e isso de querer fazer eles robôs não dará certo nem eles se submeterão. É a minha esperança". Clarice, então: "E o que é que você me diz, Maria, do movimento dos estudantes no mundo inteiro?". A artista: "Acho que é um fenômeno tão interessante, tão extraordinário, tão humano. Havendo o mesmo movimento nos países socialistas e nas democracias, é um sinal evidente de que a mocidade tem razão".

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