Conhecido como o "Aleijadinho do Rio", Valentim fez esculturas valorizando o gesto e a expressão; deu traços brasileiros aos anjos e, também urbanista, modernizou a cidade do Rio de Janeiro
Publicado em 29/04/2021
Atualizado às 17:07 de 16/08/2022
Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Mestre Valentim
Apóstolo, s.d.
cedro
70,5 x 15 x 24 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Deus até já podia ser brasileiro, mas foi com Mestre Valentim que os anjos ganharam cara de Brasil. Na Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, no Rio de Janeiro, os querubins que ele esculpiu em 1772, ainda discípulo do entalhador Luís da Fonseca Rosa, trazem traços mestiços como os de seu autor. Filho de um homem branco – o português Manoel da Fonseca e Silva – e de uma mulher negra – a africana alforriada Amatilde da Fonseca –, Valentim era, como se dizia à época e depois, mulato*. Deu, então, um tanto da sua cor às criancinhas aladas; encheu mais suas bochechas e seus lábios, pôs curvas nas feições. Se formos para o céu, estaremos mais em casa.
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Nesse gesto, o Barroco, estilo originalmente europeu importado pelo colonizador, era renovado. Essa integração de aspectos do povo e do imaginário local à estética transplantada se desdobrou pela América: Bolívia, México e Peru, por exemplo, geraram reinvenções do gênero classificadas como estilo mestiço ou híbrido. No Brasil, nota o repórter Silas Martí, "o barroco luso-brasileiro também infiltra elementos profanos e sincréticos" na decoração religiosa, e não só Valentim, mas Teófilo de Jesus, Aleijadinho e Manoel da Costa Athaide – autor de uma Virgem Maria com "nítidos traços negros" – tornaram a fé, talvez, mais próxima e pessoal para muitos.
Isso tudo mostra como mesmo tradições que podem parecer muito estáticas, com critérios rígidos de composição, são transformadas na vida da cultura; um detalhe, um novo símbolo incorporado e, de repente, surge uma forma de criação própria de uma terra. Mostra também que o artista, por mais que receba modelos e práticas, apropria-se, introduz-se no trabalho. Assim, o Apóstolo que dispomos acima não vale o mesmo que qualquer outra representação de um dos seguidores de Jesus Cristo. É um Apóstolo de Valentim – o que podemos perceber nele que seja apenas dele?
Esculpido em cedro, o homem nos olha nos olhos (veja a imagem no Google Arts & Culture para usar a ferramenta de zoom). Tem a testa um pouco tensa, como quem avalia, severo. Nela, vê-se um tanto do que aborda a historiadora Maria Luíza Guimarães Salgado, responsável pela restauração da obra de Valentim na Nossa Senhora do Carmo: "Toda imagem dele tem um certo movimento, não é uma peça estática. Ele sempre coloca alguma contorção, algum gesto; não é uma pessoa parada". Comentando um Cristo feito pelo artista, ela ressalta o quanto "a angústia está estampada na fisionomia". Essas esculturas, portanto, capturam momentos e caracteres.
Estamos sendo julgados pelo Apóstolo? Esse tipo de consideração é uma maneira de aproveitar as obras desse estilo, de perceber o impacto que o autor buscava. Podemos fazer o mesmo com a Figura da virtude e com outros apóstolos, como São Mateus e São João Evangelista, entre outras produções de Valentim. O que é único nesses trabalhos pode ser encontrado nas opções de qual símbolo e sentimento representar (compare, por exemplo, o São Paulo de Almeida Júnior com o de Décio Villares; ou analise as escolhas de Aleijadinho para erguer seus profetas).
Mas Valentim fez mais do que abrasileirar o barroco – diz Maria Luíza que fez do estilo algo "leve, de acordo com o carioca", com um "despojamento" próprio – e explorar as emoções religiosas. O artista foi um transformador da cidade: de 1779 a 1783, teve papel crucial na construção do Passeio Público do Rio de Janeiro, primeiro jardim aberto do país. "Mestre Valentim", informa o site do parque, "não trabalhou apenas como supervisor e autor da planta do Passeio, mas também confeccionou todas as peças de arte, inclusive as de metal, as primeiras fundidas no Brasil". A vivência do local foi lembrada por Machado de Assis:
Nos primeiros tempos do Passeio Público, o povo corria para ele, e o nome de Belas Noites, dado a rua das Marrecas, vinha de serem as noites de luar as escolhidas para as passeatas. Sabeis disso; sabeis também que o povo levava a guitarra, a viola, a cantiga, e provavelmente o namoro. O namoro devia ser inocente, como a viola e os costumes. Onde irão eles, costumes e instrumentos?
Apesar desses feitos, o escultor parece ter recebido menos atenção do que mereceria. "Por qual razão, no Rio de Janeiro, ele não é defendido, estudado, investigado da maneira que devia ser, eu, dentro da área, nunca entendi", reprova Maria Luíza. Aleijadinho, conta a historiadora, "quase foi esquecido", mas foi "ressuscitado" pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje instituto, o Iphan) no século XX. "Agora, o coitadinho do Mestre Valentim", conclui, "não teve ninguém que abrisse o bico e dissesse: ele é realmente tão bom quanto". Outra lição da cultura, então: pode ser preciso esforço para que o passado exista.
Valentim da Fonseca e Silva (ca. 1745-1813) foi entalhador, escultor, arquiteto e urbanista. Em 1748, vai a Portugal, onde aprende escultura e entalhe. Retornando ao Brasil em 1770, abre uma oficina e integra a Irmandade dos Pardos de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito. Após o serviço com Fonseca Rosa, atua na Nossa Senhora do Carmo até 1800. De 1779 a 1790 faz obras públicas no Rio e, de 1790 a 1813, talha imagens nas igrejas Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, São Pedro dos Clérigos, Santa Cruz dos Militares e Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.
*A palavra mulato é criticada pelos movimentos negros por sua carga racista. O jornalista Sérgio Rodrigues explica que o termo deriva do latim mulus, chegando a "mulo" para nomear o "animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento", e depois desdobrado para designar os filhos de brancos com negros. Apesar dessa origem, pode-se defender que "mulato" perdeu a referência e ganhou outros sentidos, conforme a posição do mesmo jornalista. Contudo, pesquisadoras como Lia Vainer Schucman e Mônica Mendes Gonçalves argumentam que o substantivo pressupõe uma visão biológica das raças, que é racista. Leia também o cordel Não me chame de mulata, da escritora e poeta Jarid Arraes.