Icaro Mello cria um conto sobre memória e saudade inspirado na obra de Dora Longo Bahia
Publicado em 17/05/2022
Atualizado às 16:44 de 16/08/2022
Narrativas é a sétima série produzida aqui no site que destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um texto literário inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Icaro Mello.
Dora Longo Bahia
Sem título, da série Imagens infectas, 1999-2000
serigrafia e gravura em metal sobre papel e caixa de papel com impressão tampográfica, 13/15 e 8/10
52,5 x 52,5 x 4,5 cm cada uma
Acervo Banco Itaú
(imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural)
O quarto, quente e úmido, ainda mantinha um pouco do cheiro de seu avô. “Vô Silvério sempre manteve este lugar como um templo” – deixou escapar seus pensamentos em voz alta, ecoando pelo cômodo. Miguelito, filho único de um filho único, havia crescido tendo seu avô como herói e como a fonte de sabedoria que guiava sua família. O jeito carinhoso como costumava chamar Vô Silvério pela casa dava uma aura de candura ao caboclo, que respondia ao seu chamado com um suave “Aqui, Miguelito”. Sempre carregado de feições austeras, fechado em seu escritório, o avô era o único a usar tal apelido. Para o neto, Silvério Justo dos Anjos seria para sempre Vô Silvério, e ele, Miguel Augusto dos Anjos, desejava ser para sempre Miguelito.
Em frente à escrivaninha, sobre a cadeira preferida de seu avô, um livro chamou sua atenção, ali repousado como se tivesse sido recentemente utilizado. A capa de couro preto se destacava em meio a um cômodo repleto de mobílias brancas. O livro parecia estrategicamente posicionado para criar o maior contraste possível, convidando-o à leitura. Em sua capa, uma gravação dourada dizia: “Memórias”. Sentando-se na cadeira, aconchegou-se com o suave calor do sol da manhã. Tomando o livro nas mãos, percebeu se tratar de um álbum de fotografias como tantos outros que o avô um dia lhe mostrara enquanto relembrava histórias de um tempo que, para Miguelito, só seu avô havia vivido. Até então desconhecido, aquele memento era repleto de fotos muito diferentes daquelas com as quais o rapaz se acostumara. Todos ali pareciam estranhos a ele, em parte pela má conservação do álbum e pela degradação natural das fotografias. As páginas eram organizadas em grupos de três ou quatro fotografias e retratavam crianças brincando em planos muito abertos, em que era difícil até distinguir a diferença de idade entre elas, fotos de viagens e fotos da própria casa e os encontros e memórias que nela se construíram.
Miguelito folheou as páginas despretensiosamente, imaginando a que memórias se referiam. Seria Vô Silvério alguma daquelas crianças? Quem eram aquelas outras pessoas? Por mais óbvio e banal que parecesse, nunca imaginou que de fato seu avô um dia tivesse sido criança, que tivesse brincado com seus amigos em algum campinho de terra batida pelas redondezas ou mesmo que fosse uma pessoa viajada, repleta de amigos. Vô Silvério, na visão do neto, sempre fora um senhor atencioso e prestativo, porém rígido, um muro. Em sua memória, atribuía-lhe essa imagem severa por nunca ter visto o avô gargalhar ou chorar, coisas que para Miguelito eram a maior expressão de suavidade.
Chegou à última página do álbum. Uma única fotografia, retratando seu avô nos fundos de um terreno, beirando o matagal, pendia meio de lado, colocada às pressas ao lado de um bilhete: “Silvério, para nunca se esqueceres da doçura que és. Marisa”. Na foto, o avô sorria. A descoberta não se conteve apenas nos pensamentos, e Miguelito vocalizou, quase sussurrando, a voz embargando: “Vô Silvério era doce”.
Miguelito, num fluxo de memória inconsciente, lamentou todas as vezes em que devia ter perdido um sorriso do avô enquanto não estava por perto. Inspirou profundamente ao imaginar a possibilidade de uma lágrima escorrendo pelo rosto do avô ao observar o neto a dormir em uma profunda paz, ou ao vê-lo brincando sozinho no jardim, ou pelos corredores da casa.
Vô Silvério partira em paz durante a última madrugada. Naquele quarto, naquela foto, restava a única memória registrada de seu sorriso. Naquele quarto, os dois, separados por décadas, se despediam. Um, para sempre Vô Silvério. O outro, nunca mais Miguelito.
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Icaro Mello é poeta, fotógrafo, produtor cultural e historiador formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). É editor de conteúdo no Itaú Cultural.
Dora Longo Bahia é artista multimídia, ilustradora, professora e cineasta. Utilizando-se de várias técnicas – pintura, fotografia, vídeo –, a artista se define como uma produtora de imagens. Muitas de suas pinturas são feitas com base em fotografias projetadas em um suporte bidimensional. O uso da figuração é um aspecto importante em sua obra, e chama a atenção para a materialidade e a ação do tempo a que estão destinadas as imagens. Saiba mais sobre a artista na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.