Acessibilidade
Agenda

Fonte

A+A-
Alto ContrasteInverter CoresRedefinir
Agenda

Esculturas | Reabilitação e recusa da aranha: escultura e memória em Louise Bourgeois

Com 5 metros de altura, 5 metros de largura e 3 metros de comprimento, esse gigantesco aracnídeo pode mobilizar nosso imaginário e se funda em figuras decisivas do passado da artista

Publicado em 03/12/2020

Atualizado às 17:24 de 16/08/2022

Esculturas destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.

Louise Bourgeois
Spider, 1996
bronze
324 cm × 563 cm × 554 cm
Acervo Itaú Cultural
Imagem: Brunno Covello

Por Duanne Ribeiro

A aranha é um símbolo. Há uma explicação, fornecida pela própria escultora, Louise Bourgeois (1911-2010), sobre seu significado. Mas, talvez, seja melhor nos aproximarmos desse artrópode enorme com mais vagar e menos facilidade... Pois a obra não causa algo – fascínio, curiosidade – à primeira vista? Seguindo o sentimento, quem sabe não achemos a artista a meio caminho.

Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do Itaú Cultural

Spider tem mais de 5 metros de altura e largura, além de 3 metros de comprimento. Poderíamos passar entre suas oito pernas, envolvidos por elas, observar seus ângulos retos, suas curvas, suas patas tocando, afiladas, o solo; no centro, acima da nossa cabeça, abdômen e cefalotórax, mais nada. “O que a grandeza expressa?”, questionou Louise em um diário no dia 6 de janeiro de 1953, após notar que o pintor Mark Rothko (1903-1970) produzia obras grandes e miniaturas. Cobertos, abraçados por Spider, podemos sentir essa questão.

“Quanto tempo [a grandeza] dura? Recorrente permanente temporário”, adicionou a artista. Suas anotações vão então para outros dilemas; ficamos com essas dúvidas e com tais características de nossa relação com o que é grande: o impacto vai e volta, desaparece com o tempo, às vezes fica. Diante de Spider, podemos deixar de nos impressionar: é só uma aranha. Conhecemos aranhas; são pequenas ou pequeninas; essa é hiperbólica, nada mais. Porém, ocorre que, nesse caso, a grandeza expressa a pequeneza. O pequeno se evidencia, aparece de outra forma.

Aparece como? Nossa simbologia particular pode dar alguma resposta. A que remetem, o que representam os aracnídeos para você? A mim cativam o artesanato das teias, a caça paciente de que são palco, sua resistência maior que a do aço. Esse bicho é de um poder que consiste em trabalho e administração. É partindo desse imaginário que posso me aproximar de Spider. E você? Tendo esse saber sobre nós, podemos dialogar melhor com Louise.

Para Louise – chegamos, enfim, àquela explicação citada no início –, a aranha é a mãe. Spider não é a única obra que traz aracnídeos; outros exemplos são Ode à Ma Mére (1995), álbum de nove desenhos desse animal, além de textos que o assimilam à mãe da artista, e Maman (1999), uma escultura similar, com algumas variações (Spider é toda de bronze; Maman é de aço e bronze, e carrega 32 ovos de mármore). Sobre a inspiração, em Ode à Ma Mére, Louise escreveu:

A amiga (a aranha — por que a aranha?) porque minha melhor amiga era a minha mãe e ela era decidida, inteligente, paciente, consoladora, razoável, delicada, sútil, indispensável, pura e útil como uma aranha. Ela podia também defender a si e a mim, recusando-se a responder a questões pessoais “estúpidas”, inquisitivas, constrangedoras.

O nome dessa amiga era Joséphine Fauriaux, que, com Louis Bourgeois, seu marido, teve duas filhas e um filho (Louise foi a criança do meio), ganhando a vida com um negócio de tapeçarias. Era uma mulher forte: “Quando minha mãe dizia algo, as estruturas tremiam e meu pai fugia. Ela tinha muitas mulheres trabalhando para ela e tinha de ser vigorosa. Até hoje tenho medo do que eu penso como sendo a ‘Mãe Brava’”, contou a escultora em 1979. “Eu posso nunca me cansar de representá-la”, anotou também, porém em 1995, no Ode à Ma Mére.

Não só a figura materna, mas o ambiente em que cresceu remete ao animal. Em 1992, a criadora registrou: “Quando eu era pequena, todas as mulheres na minha casa mexiam com agulhas. Eu sempre tive uma fascinação pela agulha, pelo poder mágico da agulha. A agulha é empregada para reparar danos. É um pedido de perdão. Nunca é agressiva, não é um alfinete". A aranha é também tecelã, trabalhadora – e feminina, o que transparece em uma fala sem data certa (entre as décadas de 1980 e 1990): “‘A aranha fêmea’ tem má reputação – é aferroadora, é assassina. Eu a reabilito. Se eu tenho que reabilitá-la, é porque eu me sinto criticada”.

Detalhe de Spider (imagem: Brunno Covello)

Contudo, esse símbolo não é simplesmente um modelo ou uma homenagem; a artista embate contra ele, rejeita alguns elementos: “Para o meu gosto”, voltamos ao Ode a Ma Mére, “a aranha é um pouco fastidiosa demais. Existe algo muito francês, complicado, descaradamente racional, ‘tricotante’ nela, com seus invisíveis reparos, cada vez mais precisos e delicados; ela nunca se cansa de achar pelo em ovo. Essa análise sem fim é exaustiva e, visualmente, pode ser redutiva. Ela me faz querer correr à rua e encher os pulmões de ar”. Nesse ponto do texto, acontece uma reviravolta, pois a escultora afirma: “Pela primeira vez, esta aranha admite que está cansada”.

Esta aranha. Louise parece falar de si. Pode ser que, em confronto com as imagens do álbum, a frase ganhe outro sentido, mas aqui, só, ela se interpreta assim. Aliás, em 1971, respondendo a um questionário, ela retrucava a “Como você aproveita seus dias?” com “Eu trabalho como uma abelha e sinto que realizei pouco”. A aranha é o que Louise não pode ser. Louise é a aranha.

Louise Bourgeois criou esculturas, instalações, pinturas, desenhos. Escreveu bastante sobre o seu processo criativo, suas referências e o trabalho emocional realizado por meio da arte – parte desses textos, junto a entrevistas, foi publicada em Louise Bourgeois – Destruction of the Father, Reconstruction of the Father, de onde extraímos as citações deste artigo. Cursou matemática na Universidade de Sorbonne, mas abandonou após a morte da mãe, em 1932. Com 25, voltou-se à arte, com estudos na Escola de Belas-Artes, entre outros espaços. Na década de 1940, depois de um ciclo de pinturas e gravuras surrealistas, passa a experimentar esculturas. Prossegue ativa até o fim da vida, buscando, segundo ela, no livro citado, “não fazer diferente, mas melhor”.

Compartilhe