Luis Schlappriz e Franz Heinrich Carls retrataram com ferro e gás, com pessoas, classes sociais e pequenos acontecimentos, a modernização da capital pernambucana
Publicado em 05/11/2020
Atualizado às 17:25 de 16/08/2022
Cidades destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural. Em cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Luis Schlappriz (desenhista), Franz Heinrich Carls (gravador)
Vista da Ponte Nova do Recife, 1863-1865
litografia
29,5 x 38 x 5 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Impressionante mesmo foi quando um boi voou por cima dessa ponte. Certo, não era bem essa ponte, mas sim a sua primeira encarnação, inaugurada em 1644 por Maurício de Nassau (1604-1679), governador da colônia holandesa em Pernambuco. Chamada então Ponte do Recife, sua construção passou por alguns percalços; para abater os danos no orçamento, Nassau inventou um espetáculo, de modo a poder cobrar pedágio dos curiosos. Anunciou: o boi vai voar.
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Dito e feito: o governador mandou fazer um balão com couro de boi, que, “amarrado em cordas finas, sobre roldanas, controlado por marinheiros, [dava] cambalhotas no ar”. Foi um sucesso – de público e de arrecadação. Hoje, essa ponte que corta o Rio Capibaribe – após ser reconstruída em 1917, com concreto – leva o nome do conde (passeie por ela no Google Street View).
A gravura que trazemos para cá conta um ponto intermédio nessa história. Após várias reformas, a via é toda refeita, desta vez com ferro, sendo nomeada Sete de Setembro. No instante em que Luis Schlappriz e Franz Heinrich Carls a retratam, Recife não mais está boquiaberta diante de um couro inflado, assiste a um espetáculo diverso: o da busca por uma modernidade entendida sob padrões europeus. A representação dessa dupla de artistas testemunha essa movimentação.
Isso desde a estrutura da ponte. “O ferro era um material novo”, diz Eliza Brito Santos, “ligado à Revolução Industrial, que representava o progresso buscado pelas elites recifenses”; o seu uso “ajudava a construir a fisionomia de urbe do progresso”. Também as lâmpadas que sobranceiam essa armação de linhas cruzadas em X apontam o avanço tecnológico: operantes com base em gás carbônico, substituíam os lampiões a óleo de peixe ou azeite de carrapateira.
Schlappriz e Carls registraram muitos outros momentos dessa Recife que se transformava. Vista da Ponte Nova do Recife integra Memórias de Pernambuco – Álbum para os Amigos das Artes, a primeira coleção de gravuras “inteiramente litografada no Recife”, segundo o blog do Instituto Moreira Salles (IMS). Algumas dessas obras parecem, como a que enfocamos, ter como personagens figuras do desenvolvimento urbano e econômico: o porto, a bolsa de valores, a fábrica de gás...
Além disso, recorda o IMS, essas imagens “oferecem um convite irrecusável a conhecer a vida e o comportamento daqueles que habitam dentro [delas]”. No primeiro plano da nossa litografia, temos muito disso: canoas – importante meio de transporte então – cruzam o Capibaribe; duas mulheres escravizadas, uma delas com frutas sobre a cabeça, observam o rio; um casal (de classe alta?) passeia entre cachorros e cavalos. Vista da Ponte Nova do Recife – como outras obras de Schlappriz e Carls – guarda vários pequenos acontecimentos, e assim narra a cidade.
Por outro lado, esses personagens, essas vidas, são implicados pela vontade de progresso tanto quanto o ferro da ponte ou o gás das lâmpadas. Explica Eliza, “a paisagem urbana se modificava, com obras modernizantes que, na prática, tinham o objetivo de higienizar e branquear a urbe, afastando os pobres e negros dos centros urbanos”. Dessa forma, seria interessante buscar ver, no convívio dessas classes sociais nas gravuras de Schlappriz e Carls, essas tensões de fundo.
Luis Schlappriz, de origem suíça, chegou a Recife em 1858, tendo atuado como pintor, litógrafo e caricaturista na imprensa. Franz Heinrich Carls (1827?-1909), alemão, aportou na capital em 1859 e, em 1861, fundou “um dos mais célebres estabelecimentos litográficos da cidade”. É descrito como “o melhor impressor-litógrafo de toda a história da litografia pernambucana”. Descubra outros “artistas viajantes” de época na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.