Na estreia da nova série, Icaro Mello apresenta um poema sobre memória, ancestralidade e cicatrizes históricas inspirado na obra de Mário Cravo Neto
Publicado em 16/08/2022
Atualizado às 16:34 de 16/08/2022
Versos destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada publicação, um escritor é convidado a criar um poema inspirado em uma obra do acervo. Nesta edição, escreve Icaro Mello.
Mario Cravo Neto
O Deus da Cabeça, 1995/2001
fotografia em brometo de prata selenizada, 7/15
100,5 x 100,7 x 3,5 cm
Acervo Itaú Cultural
(imagem: Arquivo do artista/Itaú Cultural)
Com o mundo nas costas, trago-te a história das minhas
Dez mil anos
embaixo de um casco
não é demasiado
tempo de espera.
Xangô e a justiça
decidem,
a lentos passos,
o destino de covardes algozes:
Sinhôs de humanos lassos.
A nós, Quelones,
afeitas à terra {e à casa},
um convite à festa da morte,
que alimenta o fausto da corte.
Resistentes ao sinistro festim,
Negamos o convite latim
Condenaram-nos ao silêncio sem fim,
E a carregar a morada nas costas.
Xangô e a justiça
decidirão,
a lentos passos,
o destino de covardes algozes:
Sinhôs de humanos lassos.
Em marcha fúnebre à costa,
carregando a angústia e a memória
na cangosta, o portão sem retorno,
no tumbeiro, perder nossa história.
Quatrocentos anos
com o mundo e o chicote nas costas.
O libambo: a tolher-nos o passo
e no casco: cicatrizes expostas.
Em mais duzentos:
silêncio eterno quebrado.
Mas a manilha ainda nos cativa,
Junto à fome, a miséria e o zimbrado.
No corpo a Quelone carrega
as memórias da terra e da morte.
Está sempre à espera da sorte,
porque a casa que ainda carrega
é ocupada pelo dono do forte.
Xangô e a justiça
decidiram,
a lentos passos,
o destino de covardes algozes:
Sinhôs de humanos lassos
– O futuro é a corte das pobres.
Das marcadas com a dor dos chicotes.
Tartaruga de mais de dez mil anos,
quando morre dá à luz a mais fortes...
Veja também:
>> Todos os textos, nas várias curadorias, sobre obras do acervo do IC
Icaro Mello é poeta, fotógrafo, produtor cultural e historiador formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). É editor de conteúdo no IC.
Mário Cravo Neto é fotógrafo, escultor e desenhista. Sua fotografia costuma enfocar partes do corpo humano, associando-as a objetos, como bolas e pedras, ou a animais, conferindo à imagem um ar de estranhamento e, por vezes, um caráter ritualístico, transitando pelo imaginário religioso e místico, principalmente da religiosidade católica e do candomblé. Saiba mais sobre o artista na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira.