por Heloísa Iaconis
“Acontece”, disse Gal Costa em relação a um ruído no número de “Fruta gogoia”, durante o show de 1971 que originou o registro Fa-tal – Gal a todo vapor. O ruído, o comentário da cantora e o riso da plateia aparecem na gravação que transformou, sem retoques de edição, um ao vivo belo, autêntico e engajado em LP duplo. E é essa fusão de beleza, autenticidade e engajamento, preservada no álbum e acesa por dentro, que capturou Assucena. Hoje, um ano após o 9 de novembro de 2022, o dia da partida de Gal, a filha do Tropicalismo continua se encontrando com a mãe de todas as vozes por meio de um trunfo brasileiro: a música. Com o tributo Rio e também posso chorar, que chega ao Itaú Cultural em 24 de novembro (ingressos, a partir de 15 de novembro, na página do IC na Inti), Assucena festeja a garota talentosa que revolucionou o país, do som aos costumes, com tamanha inteligência em uma voz tamanha (a ponto de ter leveza até no grito).
No cerne do repertório da homenagem, uma releitura do disco-espanto, Fa-tal, com a inclusão de “Para um amor no Recife”, de Paulinho da Viola, faixa que fez parte do espetáculo-matriz, mesmo que não conste no long play. E há ainda a força do violão, do compromisso com a memória do Brasil e do carinho por Gal, tudo ressaltado por Assucena na entrevista a seguir, tudo porque coisas sagradas permanecem.
(Acontece, Galzinha, que você permanece. Acontece. Para sempre).
Quando você começou a ouvir Gal?
Gal sempre foi uma voz sobre os nossos ombros, como um passarinho. Desde que me entendo por gente, a voz dela já estava em rádios, novelas e filmes – e, de tão popular, naturalizou-se.
Mas ouvi-la, no sentido pleno (diria até absoluto), ocorreu na época da faculdade, a partir de 2011, 2012, com o desejo de conhecer coisas novas, antes de montar a banda As Bahias e a Cozinha Mineira [posteriormente, As Baías]. Quando escutei o Fa-tal (1971), fiquei impressionada: jamais imaginei que existisse algo parecido na música popular brasileira. É um disco contracultural, com ranhuras, rasuras, microfonia. A beleza do álbum está na coragem de gravá-lo com aquela estética do subdesenvolvimento, da precariedade e da melancolia de um país latino-americano sob uma ditadura militar. Com Gilberto Gil e Caetano Veloso exilados em Londres, Gal sustentou um dos principais movimentos artísticos do país, o Tropicalismo. Ela e nomes como Waly Salomão, poeta e diretor maravilhoso.
Depois do Fa-Tal, que foi um susto e uma novidade para mim, comecei a ouvir toda a obra de Gal. Ganhei da minha irmã uma coleção de CDs, de Domingo (1967), o primeiro, gravado com Caetano, a Baby Gal (1983). Consumi esses discos com as minhas vísceras. Uma escola de como ousar ser artista, uma artista em sua completude, fora o canto lindo, a afinação total. Uma intérprete muito grande, que vai de Dorival Caymmi a Ismael Silva, de Geraldo Pereira a Luiz Melodia, que atravessa a história e a música do Brasil. Eu não poderia não me render a essa dimensão camaleônica de Gal Costa, de transformações e escolhas tão profundas e certeiras. Tanto que mudei de rota: iria seguir carreira acadêmica, porém Gal não deixou.
Ainda sobre o Fa-tal – Gal a todo vapor, como surgiu a ideia de celebrá-lo?
A banda [As Baías] terminou em julho de 2021. Estávamos em uma pandemia mal governada e eu queria construir um álbum. Contudo, naquele período, uma série de inseguranças me cercava, porque considerava que não tinha fisionomia artística sem o grupo. Quando você participa de um projeto, há seis anos e integralmente, surge um amálgama de tal forma que não se sabe quem é o eu e quem é o outro. Decidi, por isso, retornar para a Bahia, o meu lugar de origem, e para Gal.
No mesmo 2021, o Fa-tal completou 50 anos. Digo que Gal e esse disco me pariram como a artista que sou hoje, pois foi o álbum que me acompanhou no meu processo de transição. Então, veio em mim a coragem para reler essa obra. Todas as vezes que estamos perto da nossa verdade, existe também o medo enquanto sensor de consequência, não o medo que nos empaca. Com coragem e medo, portanto, além de respeito e reverência, fiz essa homenagem. Valéria Graziano, minha empresária, me incentivou e o Sesc comprou a ideia. Foi assim que, no dia 10 de novembro de 2021, Dia Internacional dos Direitos Humanos, no Sesc Pinheiros, estreei esse show. Antes da abertura, houve uma fala maravilhosa de Danilo Santos de Miranda [diretor do Sesc São Paulo, falecido neste ano] por vídeo, um mestre cujo empenho político e social proporcionou a milhares de artistas trabalharem com dignidade. Foi um espetáculo bonito, uma honra.
Como se deu o processo criativo de releituras das canções?
Engraçado, não queria convidar Rafael Acerbi, que foi da banda, porque havíamos vivido o fim do grupo com tanta intensidade que precisávamos descansar um do outro. Entretanto, só conseguia confiar nele. Rafa, na direção musical, soube bem o que era d’As Baías e o que é da minha carreira, teve uma escuta maravilhosa e trouxe boas ideias. Nós nos articulamos para fazer uma releitura moderna do Fa-tal, com sintetizadores, uma linguagem contemporânea aliada, por exemplo, ao clássico do violão.
Por falar no violão: qual a importância do instrumento na elaboração narrativa do espetáculo?
Um dos princípios do Fa-tal é Gal tocando violão, a Gal bossa-novista da primeira parte do show. Não toco, mas pedi para Victor Grizzo confeccionar um violão cênico. Ele produziu um violão tropicalista, colorido, com espelhos (faço um jogo com espelhos durante “Assum preto”, canção lindíssima de Luiz Gonzaga), um elemento dramático e cenográfico da apresentação.
O violão é importante também por ser o símbolo da música popular brasileira, da insubordinação, da possibilidade de a cultura romper fronteiras, estruturas e desigualdades. Um instrumento barato, de fácil circulação. E, devido a esse poder de circulação, mulheres, por muito tempo, foram impedidas de tocá-lo. Era um instrumento de homens. Quando Gal pegou o violão e o colocou entre as pernas, havia uma beleza poética e política. Não conseguimos dimensionar o impacto social que isso teve: quantas mulheres, mulheres trans que nem sabiam que eram trans, bichas viram essa imagem? Estou falando de algo revolucionário.
O seu show intitula-se Rio e também posso chorar, um verso de “Hotel das estrelas”. Qual o efeito que esse verso tem em você?
Lembro que, quando passei a ouvir o Fa-tal, morava em um lugar com uma janela para a cidade de São Paulo. E a música começa com “Dessa janela sozinha / Olhar a cidade me acalma / Estrela vulgar a vagar / Rio e também posso chorar”. Vivia um momento de meditação profunda, um encontro com a Assucena que estava nascendo. Poder rir e chorar, sendo quem você é, com o desejo de uma sabedoria consciente e afetiva, é de uma beleza intensa. O contexto da canção refere-se à ditadura militar, claro. Porém, quando uma mulher em transição se depara com a solitude, ela tem o poder de analisar seu riso e seu choro por uma perspectiva de libertação. Isso é poderoso, genuíno, mexe comigo.
Além de Rio e também posso chorar, você ainda fez, neste ano, uma homenagem ao álbum Índia (1973). O que há de diferente entre essas apresentações?
O Sesc 24 de Maio tem um projeto chamado Meio século de discos históricos e fui convidada para apresentar o Índia, a coroação de um processo bem-feito de homenagem. Esse show traz uma banda maior que o Rio e também posso chorar, com piano, bateria e percussão, e uma estética diferente, uma musicalidade que conversa com o jazz e o neo soul, um Brasil mais de terra do que de ar.
Em Lusco-fusco (2023), o seu primeiro disco solo, há influência de Gal?
Eu me considero uma filha do Tropicalismo. Acho que o que aparece depois da Tropicália se tropicaliza. Esse movimento entendeu aquilo que vem da raiz, do povo, compreendeu um Brasil que não está apenas na escolha de um cânone. Gal me ensinou a respeitar o arrocha, o pagode baiano, o pagode carioca, o tecnobrega, o samba. A Tropicália e Gal quebraram o preconceito, mostraram que música boa é aquela que nos toca. E essa abertura é essencial para que a arte não fique só nas mãos de homens brancos, cisgêneros e abastados. No meu disco, quis trazer o meu lugar de mulher trans, brasileira, latino-americana, compositora, com estilos musicais que dialogam.
Faz um ano da partida de Gal. Como você se sentiu naquele 9 de novembro de 2022? E, agora, após muitas homenagens, como é o seu contato com a obra dela?
Comecei a minha carreira com Gal viva. Comecei a cantar o Fa-tal com Gal viva. Ciro Barcelos, artista grandioso que participou do Dzi Croquettes, foi na minha estreia e mandou vídeos para ela. Gal respondeu agradecendo, mandou corações e prometeu a Ciro que iria assistir ao espetáculo, mas não deu tempo.
Estive com ela algumas vezes, como no Satélite 061, festival de Brasília, em 2016 (fomos a banda que se apresentou antes de Gal) e na estreia do documentário O nome dela é Gal (2017), de Dandara Ferreira. O nosso primeiro encontro aconteceu em 2015: estávamos ensaiando para a gravação do disco Mulher (2015) e, na sala maior do mesmo estúdio, Gal ensaiava para o Estratosférica (2015). Em dado momento, fui ao banheiro, a porta estava trancada e resolvi esperar. Quando a porta se abriu, era Gal Costa. Eu a parei e disse: “A poesia está na minha frente”. Ela: “Hã?”. Repeti: “A poesia está na minha frente”. Ela: “Muito obrigada”. Eu: “Posso te dar um abraço?”. Ela: “Pode”. Dei um abraço nela e não consegui dizer mais nada, voltei para a sala sem acreditar. Fico emocionada ao lembrar dessa casualidade do destino. Foi um encontro nos corredores de um estúdio de ensaio, o lugar da nossa alquimia, um símbolo forte da parte que ninguém vê do trabalho artístico, do não glamour.
Quem é Gal Costa para Assucena?
Gal, para mim, continua sendo uma menina rock 'n' roll, muito talentosa, que revolucionou o Brasil, com frescor e uma enorme vontade de viver. Faço terapia e sei que as nossas idades nunca saem de nós, precisamos aprender a lidar com elas. Sempre enxerguei Gal como aquela garota baiana, cheia de energia, que só queria cantar. E segue cantando, viva em sua obra, conversando com a gente.
Assucena [com interpretação em Libras]
sexta 24 de novembro de 2023
às 20h
[duração aproximada: 60 minutos]
Sala Itaú Cultural – 224 lugares
[classificação indicativa: livre, segundo autodefinição]
Reserve seu ingresso [a partir de 15 de novembro, às 12h]