Os Engenheiros do Hawaii como forma de entender o mundo de simulacros descrito pelo filósofo Jean Baudrillard – mundo esse em que ainda vivemos
Publicado em 10/05/2024
Atualizado às 16:32 de 10/05/2024
A repercussão dos reality shows no Brasil é singular e difícil de mensurar. No começo dos anos 2000, trabalhando como professor temporário no ensino médio de uma escola pública federal, fui surpreendido com a iniciativa de alguns estudantes de criar um site em que realizariam votações semanais para “colocar no paredão” e “eliminar” professores. Esse absurdo foi ainda maior porque, ao procurar a coordenação pedagógica e pedir alguma medida, fui questionado: “Você está com medo de ser eliminado?”. Na sala dos professores o apoio também não existiu. Ignoraram quase completamente a minha advertência sobre o perigo dessa iniciativa; a exceção foi uma docente efetiva que, tendo formação em direito, me chamou no canto e disse que entraria em um processo comigo se eu quisesse. Por fim, a iniciativa saiu do ar, em razão dos rumores do processo e da justificativa de que não poderiam fazer aquele “reality” usando o logo e o nome da instituição. Aqueles estudantes, porém, eram mesmo empreendedores e não aceitaram esse não: resolveram fazer o “reality” eliminando uns aos outros semanalmente. A iniciativa não durou 15 dias, mas gerou traumas e atritos sérios e abissais, como o são todos os dramas de quem tem 16 anos.
Essa situação ocorreu num momento em que os smartphones e as redes sociais não faziam parte do cenário, porque a própria internet não estava tão popularizada. Mas a perspectiva “desmaterializada” já era um lugar-comum [como testemunham filmes como O show de Truman, de Peter Weir (1998), e Matrix, de Lilly e Lana Wachowski (1999)], especialmente no caso brasileiro. Nesse momento, a hegemonia da televisão se afirmava na construção do cotidiano – a tal ponto que, em 1986, nas Filipinas, no movimento que derrubou o ditador Ferdinando Marcos, os rebeldes não se mobilizaram para tomar o palácio do governo, mas sim a emissora de televisão, passando a transmitir a “realidade” da revolução.
Justamente por ocupar essa posição de clichê, a “irrealidade” é tema e problema comum nas representações do Brasil (como no Realismo Mágico ou nas descrições feitas por Umberto Eco em O pêndulo de Foucault e em Viagem na irrealidade cotidiana). Os paradoxos dessa condição foram mote para as representações do país nas canções dos Engenheiros do Hawaii, banda de rock que surgiu em 1985 numa faculdade de arquitetura no Rio Grande do Sul. Naquele momento, RPM, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Titãs e outros grupos já montavam um cenário roqueiro no Brasil. Os fundadores do Engenheiros do Hawaii, Humberto Gessinger e Carlos Maltz, foram influenciados pela perspectiva pós-moderna de Robert Venturi e Aldo Rossi – que criticavam o caráter épico, utópico e purista do funcionalismo da arquitetura moderna – e, com ironia e ostentação, misturavam referências de forma lúdica e paródica, reconhecendo sua condição de produto e a vitória dos letreiros neon nas fachadas das grandes cidades. Desse modo, o absurdo de Albert Camus e a liberdade do existencialismo do filósofo Jean-Paul Sartre surgiam, nas palavras de Humberto Gessinger (autor de praticamente todas as letras do grupo), misturados com os oxímoros de Umberto Eco e com a pretensão de incorporar a ironia crítica de Jean Baudrillard, que, em Simulacros e simulação, sentenciou:
O desafio que o capital, no seu delírio, nos lança – liquidando sem vergonha a lei do lucro, a mais-valia, as finalidades produtivas, as estruturas de poder e voltando a encontrar no termo do seu processo a imoralidade profunda (mas também a sedução) dos rituais primitivos de destruição, esse desafio, é preciso aceitá-lo numa sobrevalorização insensata. O capital é irresponsável, irreversível, o inelutável como o valor.
Essa incorporação do discurso de Baudrillard é mais forte nos discos da formação clássica da banda – com Humberto Gessinger (baixo e voz), Augusto Licks (guitarrista) e Carlos Maltz (baterista) –, que seguiu à risca o caminho da (auto)produção frenética (um disco por ano), multiplicando citações, referências, aliterações e oxímoros e fazendo o discurso girar sobre si mesmo até o paroxismo. O desafio do capital traz a certeza de que, ao produzir para a sociedade de consumo, que nos direciona para a alienação e a falta de sentido, deveriam aceitar e expor a lógica de suas engrenagens, que apaga as diferenças (“Revolta dos dândis I e II”) e faz da publicidade a base para a criação da realidade (“Terra de gigantes” e “Além dos outdoors”, por exemplo). Se o Existencialismo beat reconhecia que a estrada é a vida (“Infinita highway”), pilotar uma moto em alta velocidade em um horizonte sem sentido é uma forma de presentificar o niilismo em seu delírio (como diz a letra de “Filmes de guerra, canções de amor”: “ninguém é bastante lúcido / para andar tão rápido”). O existencialismo que traduz a liberdade em consumo funciona melhor banalizado, no reconhecimento da angústia presente na necessidade de decidir entre marcas numa prateleira.
Os exemplos se multiplicam, mas no álbum O papa é pop (1990) isso tudo atinge sua melhor formatação. Por exemplo, utilizando uma “mesma” música para denunciar a continuidade de um discurso que privilegia o ter: aplicando a busca pela posse ou pelo consumo em todas as esferas, temos uma “Perfeita simetria”, com a paranoia de alguém apaixonado que idealiza uma redenção com a volta da pessoa amada, restaurando a ordem perdida; e com o discurso publicitário que nos vende a esperança de que a compra de qualquer produto poderia nos livrar da indiferença, da obsolescência e do vazio de sentido: a busca pela transcendência é um jogo de compra e venda (“O papa é pop”). Referências à arquitetura pós-moderna também estão espalhadas pelo disco, como na canção “Nunca mais poder”: “Todo mundo é eterno / Todo mundo é moderno / Como um calendário do ano passado / Como a Coluna Prestes / As colunas do Niemeyer / Como a Holanda de 1974 / Um símbolo sexual dos anos 60 / Todo mundo é moderno / Todo mundo é eterno / O papa é moderno / O pop é eterno”.
Na descrição de Baudrillard, o desaparecimento do sentido não se dá pela morte, mas pela “epidemia da simulação”, que leva à dispersão e à dissolução das referências, que não fazem com que o sistema deixe de funcionar, mas o potencializam. Ora, nos textos de Baudrillard, a crítica à desreferencialização do objeto simbólico não tem um sentido moralizante, o que acaba sendo inevitável no discurso artístico que tenta se apropriar de sua teoria para desenvolver novas representações. Por isso mesmo, o sociólogo francês renegou a tentativa de apropriação de sua obra por filmes como Matrix e Videodrome, de David Cronenberg (1983). Muitas vezes, a tentativa de simulacro da teoria de Baudrillard cai na nostalgia da representação redentora e na reafirmação essencialista de posições reacionárias. É o caso da canção “A violência travestida faz seu trottoir”, que cita diretamente o título do livro de Baudrillard À sombra das maiorias silenciosas: “Na maioria silenciosa, orgulhosa de não ter / Vontade de gritar, nada para dizer / A violência travestida faz seu trottoir / Nos anúncios de cigarro que avisam que fumar faz mal”. Dizer que a “violência travestida” faz o trabalho de sedução/prostituição que falsifica os desejos e dilui o sentido não deixa de ser uma forma violenta de fobia em relação ao que não repete os papéis/padrões que se consideraria “naturais”.
Uma das afirmações marcantes de Baudrillard foi a de que a primeira Guerra do Golfo – que aconteceu no começo da década de 1990 e teve as imagens dos ataques feitos por caças norte-americanos fartamente divulgadas – não existiu: o excesso de imagens dissolveu o sentido da violência, que surgiu como uma espécie de jogo de videogame distante, uma realidade virtual. Na canção “Realidade virtual”, Humberto Gessinger pondera sobre as exigências paradoxais da posição de Baudrillard, que pede que, ao mesmo tempo, reconheçamos e critiquemos o domínio dos simulacros. A alternativa seria manter a TV sempre como um sol que tudo ilumina: “na outra janela o sol sempre brilha / o risco é calculado: vídeo-guerra, vídeo-reino-dos-céus”. Na poltrona, podemos confortavelmente nos posicionar para “vivenciar” a guerra em sua realidade virtual ou procurar a transcendência religiosa dos programas de tele-evangelistas.
É justificado dizer que os Engenheiros do Hawaii foram consumidos pelo simulacro que denunciavam. Com o fim da formação clássica do grupo, as referências ao discurso de Baudrillard e ao pós-modernismo na arquitetura se diluíram, ante a necessidade de criar sentido.
As várias reformulações do grupo que tiveram Humberto Gessinger como líder somam-se agora à atual turnê de Augusto Licks e Carlos Maltz com a banda cover Engenheiros sem Crea. Como dizia a letra de “Tribos e tribunais”, as contradições desaparecem embaixo do tapete, já que não existe original: “Críticos da arte / Arte pela arte / Pink Floyd sem Roger Waters / (Welcome to the machine) / Formas sem função”.
Do mesmo modo que foi preciso lembrar Baudrillard que a guerra efetivamente matava pessoas e produzia dor e sofrimento, a “realidade” dos “shows de realidade” logo se revelou mais do que uma simulação: ela incorpora a lógica do mercado de trabalho pós-fordista, em que temos um horizonte de desemprego estrutural no qual o significado do trabalho mudou. A socióloga Silvia Viana, no livro Rituais de sofrimento (2013), mostra como as pessoas se submetem à concorrência aceitando um jogo sem regras predefinidas e no qual o sofrimento e os conflitos são tomados como parte do espetáculo – práticas que culminam com o julgamento do público sobre a eliminação daqueles menos aptos/adaptados para gerar entretenimento. A exclusão interativa traduz um mercado em que não há espaço para todos e, por isso, cada qual deve ser empresário de si mesmo, não bastando “cumprir suas funções”, mas sempre tendo que ofertar um “algo mais” indefinido. O fantasma do desemprego (e do cancelamento) está sempre presente. (Uma série de transformações que, como teorizou o filósofo Gilles Deleuze, marcam a transição entre a sociedade disciplinar e a sociedade de controle.)
Isso ajuda a entender por que meus colegas docentes que tinham cargos efetivos não deram muita atenção àquele jogo de eliminação: não era – naquele momento – um problema para eles. Agora é uma questão para todos nós.
Gessinger considera a canção “Esportes radicais”, de 2002, uma espécie de continuação temática de “Infinita highway”. Nela, o Existencialismo dá espaço para uma busca por criar sentido, como imaginava Antonio Gramsci no cárcere (incorporando uma citação do escritor Romain Rolland):
se nada faz sentido, há muito que fazer / não há alternativa, é a única opção / unir o otimismo da vontade e o pessimismo da razão / contra toda expectativa, contra qualquer previsão / há um ponto de partida, há um ponto de união: / sentir com inteligência, pensar com emoção.
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