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A Forma do futebol brasileiro

Os dez anos da derrota de 7 a 1 da seleção brasileira para a seleção alemã na Copa de 2014 são mote para repensar o papel do futebol na cultura brasileira

Publicado em 12/07/2024

Atualizado às 16:40 de 11/07/2024

Por Marcos Carvalho Lopes

Os textos sobre futebol do filósofo paulista Bento Prado Júnior publicados na imprensa mereciam ser reunidos em um livro. Se Bento demorou mais de 30 anos para tirar da gaveta e publicar sua tese de doutorado, foi o futebol que inspirou a sua primeira publicação em jornal, ainda na década de 50, revoltado com as manipulações dos dirigentes em relação as políticas de rebaixamento da segunda divisão do campeonato paulista. 

A timidez para levar a público seus trabalhos de filosofia contrasta com a motivação do torcedor do Palmeiras, que publicou crônicas utilizando sua autoridade filosófica e a caixa de ferramentas conceitual para exaltar seu time como uma Forma, ideal, irrefutável, irresistível, seria a verdadeira Academia – não a de Platão – a de Ademir da Guia, reeditada por Rivaldo e companhia por brevíssimo período na década de 90.

Veja também:
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Bento chegou a questionar retoricamente (na crônica de 1996 “só comparáveis a nós mesmos”): “O Rivaldo não joga igualzinho ao Ademir da Guia (como sempre sonhei jogar, e tento fazer Filosofia)?”. Neste caso, é o trecho “entre parênteses” que nos interessa: o que seria “fazer filosofia como jogar futebol?”. Noutro texto, falando dos momentos em que jogava futebol nas ruas de São Paulo (na crônica “A arte do futebol de rua”, Bento repetiu a mesma inspiração: “até hoje, quando escrevo meus textos de filosofia, contra aquilo que me parece mais detestável na filosofia hegemônica nas universidades do mundo, nunca deixo de tentar chutar a bola contra a parede para driblar o meu adversário”.

Esse tabelar com a parede para superar o adversário parece mesmo uma estratégia (deleuziana) para se esquivar do tipo de “conversação” ou apelos de produção, que, cada vez mais, fazem parte do contexto universitário. Mas essa torção argumentativa, própria do torcedor, pode ser identificada com outra tendência marcante da cultura brasileira quando tratamos de futebol: a desmedida (hybris) que nega a alteridade (José Miguel Wisnik), de tal modo que pressupomos e reivindicamos previamente uma posição incomensurável, de tal modo, que, quando perdemos, a justificativa é a de que derrota foi para nós mesmos. Se o impulso sublime que o futebol ofereceu para o filosofar de Bento Prado funcionou como uma Forma platônica em sua busca por excelência, talvez tenha trazido consigo algo dessa dificuldade (ou desse jeitinho) para lidar com a alteridade e manter a bola em seus pés. 

Hoje é difícil tomar o futebol brasileiro como um mote para formas de pensar criativas: quiçá o jogo atual esteja muito mais próximo de como o pensamento mais conservador por aqui se articula, copiando os modelos e estruturas europeias e negando qualquer indisciplina criativa. No aniversário de uma década do 7 a 1 podemos fazer um arco do desenvolvimento dessa posição do futebol como Forma ideal de excelência, pensando na atuação da seleção brasileira nas copas do Mundo de 1950 e 2014. 

A Copa de 1950 no Brasil foi decidida em um quadrangular disputado entre Uruguai, Brasil, Suécia e Espanha. O Brasil chegou ao jogo final precisando de um empate depois de duas goleadas: de 7 a 1 contra a Suécia e de 6 a 1 contra a Espanha. Tanto os times da Suécia quanto da Espanha tentaram enfrentar o Brasil de igual para igual, num jogo aberto que gerou esses resultados avassaladores. O jogo contra a Espanha, na descrição de Joel Rufino dos Santos em seu História política do futebol brasileiro (publicado em 1981), foi “o maior baile sem música da História. Chico chegou a sentar na bola. Ademir, no finzinho, carregou “a criança” nas costas, do meio-campo à meia-lua. Danilo fez 22 embaixadas com o calcanhar. Acredite quem quiser”.  Depois do 6 a zero, houve espaço para torcida em coro cantou a marchinha de Braguinha “Touradas em Madrid”, enquanto no campo os jogadores brincavam com embaixadinhas e dribles.  

O Uruguai apenas empatou com a Espanha em 2 a 2 e ganhou da Suécia por 3 a 2 de virada. Então o clima de vitória parecia justificado: o Brasil precisaria somente do empate com o Uruguai para ser campeão do mundo. No entanto, já havia a preocupação prévia com o perigo de menosprezar o adversário: o Brasil havia jogado contra os uruguaios em maio daquele ano em um amistoso e, depois de fazer o primeiro gol, a seleção brasileira teria perdido o foco e, quando acordou, o jogo, que estava 3 a 1, acabou com uma derrota inevitável de 4 a 3.

No ano anterior, o Brasil perdeu para o Paraguai por 2 a 1, naquele que poderia se o jogo do título do Campeonato Sul-Americano (no jogo de desempate a vitória brasileira foi de 7 a zero).   Isso era um alerta de um roteiro que poderia se repetir... e se repetiu. Na grande final, tendo feito 1 a zero no início do segundo tempo, o time brasileiro manteve desnecessariamente uma postura ofensiva. O empate do Uruguai deixou o Maracanã abismado, a virada o reduziu ao silêncio e a perplexidade. Diante do revés, a tentativa de explicação era tarefa difícil, por isso mesmo, o Jornal dos Sports dirigido por Mario Filho preferiu estampar na capa o título de um artigo escrito por um jornalista austríaco “Uruguai, campeão do mundo, de fato; mas o Brasil, o melhor team do mundo” que considerava que a importância excessiva dada ao futebol pelo público brasileiro, fez com que o time não conseguisse jogar bem (uma avaliação que podemos manter para a copa do mundo de 2014).  

Na avaliação de Joel Rufino dos Santos em sua História política do futebol brasileiro foi o populismo e o nacional desenvolvimentismo de Getúlio Vargas a partir da década de 30 que permitiu a existência de gênios como Zizinho, porque, neste contexto, o povo estava incluído no plano dos governantes, com cálculo, mas tendo como resultado os direitos trabalhistas, o desenvolvimento de empresas como a Petrobras e os bancos de desenvolvimento tentavam articular um capitalismo nacional. 

As vitórias nas copas de 58 e 62, com a multiplicação de craques, seriam resultado desse contexto, que repercutiu ainda na conquista da copa de 1970. Mas com a ditadura militar e o golpe de 1964, o movimento de internacionalização da economia que havia começado com Juscelino Kubitschek (1956-60) tornou-se uma camisa de força para as forças criativas do povo, resultado em prejuízo para a música popular, a literatura e o futebol.

Ilustração colorida mostra jogador com o uniforme da seleção brasileira masculina de futebol, usando a camisa 10, carregando uma bandeira do Brasil. No lugar da sua cabeça, há uma labareda de fogo. Uma cobra amarela vem em sua direção. Atrás do gol, há água, como um lago, e um jogador também camisa 10 levanta a bandeira, mas ele não tem cabeça. Uma coroa boia na água. A bola está atolada em uma poça, na frente da trave.
Os dez anos do 7 a 1 são mote para repensar o papel do futebol na cultura brasileira (imagem: Flavia Ocaranza/Girafa Não Fala)

 

Outro fator fundamental na decadência do futebol brasileiro foi a militarização, com os apelos por disciplina e tecnificação que colocam uma camisa-de-força na criatividade. O racismo e a perseguição e condenação da rebeldia e do futebol-arte levavam o historiador a sentenciar, falando sobre a seleção de 1978: “O futebol brasileiro foi alegre, hoje é triste; foi agressivo, hoje é defensivo. A culpa não está em algumas pessoas investidas de poder têm do futebol. As que estão aí acreditam mais no técnico e no esquema de jogo que no jogador; e estão a ponto de conseguir que nossos craques percam a confiança na sua arte – uma arte aprendida na rua, de geração em geração”. Joel Rufino profetizava que o processo de redemocratização ressuscitaria o futebol brasileiro e com uma melhor distribuição de renda, os craques se multiplicariam.

A profecia de Rufino talvez tenha se realizado parcialmente com a seleção de 1982, já em um contexto de derrocada da ditadura militar. A derrota da seleção de 82, com seu futebol ofensivo e bonito, talvez tenha uma semelhança com aquela de 1950, ao restaurar a crença de que tínhamos o melhor futebol do mundo (ver Tales Ab’Saber). Mas a democracia demorou e a distribuição de renda continua sendo uma promessa pouco articulada.

A vitória do Brasil na Copa de 1994 não serviu para reafirmar a magia brasileira, o jogo burocrático e de resultado deixava a criatividade aparecer em lampejos de genialidade (veja o texto de Bento Prado “Alegria: o gol de Ronaldinho”). Ainda que a hegemonia no futebol mundial tenha se seguido até o começo do novo século, a profissionalização e internacionalização do futebol, aos poucos foram enfraquecendo os campeonatos nacionais. A vitória na Copa de 2002, quando contrastada com o futebol pífio jogado durante as eliminatórias, mereceria uma análise mais longa.

7 a 1

Aqui saltamos para a derrota de 2014 para a Alemanha. Nesta Copa, o Brasil, jogo a jogo, foi desfazendo seu favoritismo para quem acompanhava o desempenho das equipes na competição, passando muito próximo da eliminação nas oitavas-de-final. Na semifinal contra a Alemanha, sem seu principal jogador contundido, Neymar, e seu capitão e líder da defesa Thiago Silva, era de se esperar que o Brasil adotasse uma postura defensiva, como aquela que o técnico Luís Felipe Scolari havia adotado em 2002, quando havia sido campeão. Mas para ele e para todos os jogadores o peso de ter de vencer vinha acompanhado da cobrança de ter de apresentar um futebol ofensivo digno das tradições brasileiras.

O Brasil foi para cima, como um touro segue na direção do toureiro, confiante na própria força. Novamente o Outro nos apareceu como irreal e, diante da superioridade do time alemão, os brasileiros ficaram atônitos, levando uma sequência incrível de gols. O resultado de 7 a 1 não veio acompanhado de acrobacias com a bola ou de qualquer forma de menosprezo por parte dos alemães.

Mas, se tentamos reavivar a análise de Joel Rufino para explicar este revés, temos que considerar que a Copa no Brasil foi prenunciada por uma série de manifestações contra sua realização, denunciando os gastos excessivos com a construção de estádios. As manifestações continuaram repercutindo depois do fracasso da seleção, numa tentativa de encontrar culpados e "resgatar o país" corrompido: ou se veste a camisa da seleção ou se está contra o Brasil. O tipo de nacionalismo exaltado nestas manifestações logo se aliou com a reivindicação de disciplina e ordem que são mote de movimentos autoritários e antidemocráticos.

As arenas tornaram o futebol brasileiro um produto mais valorizado, ou seja, mas distante das classes populares. Não existe mais espaço para o futebol de rua em periferias cada vez mais violentas, e quando existe, é muito difícil que revelem jogadores, já que a formação de base é cada vez mais indispensável para que internalizem a disciplina tática necessária para a profissionalização.  Os jogadores promissores são vendidos para o exterior cada vez mais jovens, muitas vezes sem terem atuado no Brasil (e, nalguns casos, com dificuldades para falar português).  Nos poucos momentos de conquistas nos últimos anos, os jogadores brasileiros trataram de exibir sua crença de que de alguma forma vencem porque são privilegiados por uma relação especial com Deus. Essa reivindicação de um tipo de perfeição sem autocriação faz com que volta e meia repitam que são os melhores do mundo, que têm mais títulos e que devem ser respeitados, ou seja, deveríamos estar gratos de que ainda joguem pela seleção. 

Os jovens pobres que conseguem ascensão através do futebol não têm no esporte um modelo de educação democrática e solidária. Muito pelo contrário: sabem que eles mesmos são commodities, um mercado que recruta pessoas pobres e periféricas de todos os lugares do mundo, o qual o Brasil é uma grife respeitada e questionada. A interrogação está em saber se vão tentar desenvolver o seu melhor, se aperfeiçoar e se dedicar para construir uma carreira em seu máximo potencial, ou se já se consideram perfeitos e só esperam o reconhecimento que todos naturalmente lhes devem. 

Bento Prado Júnior provavelmente hoje estaria tentando reformular e repetir a promessa utópica de Joel Rufino: com a melhora da qualidade de vida, de educação e democratização da sociedade brasileira, o futebol brasileiro vai renascer, através de jogadores com a ginga necessária para questionar as estruturas opressivas. Veriam ainda algo da Forma do futebol brasileiro viva na seleção brasileira feminina. Mas a esperança seria movida menos pelo talento incontestável dos dribles de Vinicius Junior, do que pela sua atuação como algoz de racistas.

Coluna escrita por:

Marcos Carvalho Lopes

Marcos Carvalho Lopes

Doutor em filosofia, professor universitário e host do podcast Filosofia Pop
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