“De que mulheres falamos quando falamos sobre as mulheres do cinema?”, questiona a jornalista Luísa Pécora na coluna “Grande angular”
Publicado em 29/06/2022
Atualizado às 14:24 de 03/08/2022
De que mulheres falamos quando falamos sobre as mulheres do cinema? Essa pergunta se torna cada vez mais relevante conforme o debate sobre igualdade de gênero ganha espaço no mercado, nas instituições, na imprensa, nas universidades e até nas redes sociais. Em primeiro lugar, tal questionamento busca garantir que o recorte de gênero venha acompanhado do recorte de raça – ou seja, que a pretendida inclusão englobe todas as mulheres que trabalham no audiovisual (e não apenas as mulheres brancas). Mas outros desdobramentos partem dessa mesma pergunta: mulheres de quais regiões do país? De que classes sociais? E de quais áreas do cinema?
É comum focarmos nossa atenção em dois grupos de profissionais: as atrizes, que são mais reconhecidas pelo público e cujas personagens convidam à reflexão sobre a representação da mulher na tela, e as diretoras, que ocupam a função tida como a mais importante dentro do set. Quando o foco se expande, geralmente é para abrigar as posições de roteirista e de diretora de fotografia, esta última ganhando destaque também por ser uma das áreas com os piores índices de participação feminina.
A realização de um filme, é evidente, envolve muitas outras profissionais além da atriz, da diretora, da roteirista e da fotógrafa. Essas “outras" profissionais são tema do livro Trabalhadoras do cinema brasileiro: mulheres muito além da direção (2022), organizado pela professora e pesquisadora Marina Cavalcanti Tedesco e recém-lançado pela Nau Editora. Os 11 artigos que formam a obra analisam a presença feminina do roteiro até a exibição – incluindo também o trabalho das mulheres no ensino de audiovisual, nos festivais e no setor de preservação.
Capítulos dedicados a áreas técnicas (a exemplo da direção de arte, do som e da trilha sonora) mostram profissionais pioneiras e nomes de destaque – fora, em alguns casos, revelarem raros e necessários dados sobre a participação feminina no audiovisual. Os levantamentos anuais da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que começaram em 2014 e já foram descontinuados, englobam só cinco funções: direção, roteiro, direção de fotografia, produção-executiva e direção de arte. A pesquisa mais recente aponta que, considerando todos os longas-metragens que receberam o Certificado de Produto Brasileiro (CPB) em 2018, mulheres representam 26% dos diretores, 24% dos roteiristas, 14% dos diretores de fotografia, 40% dos produtores-executivos e 55% dos diretores de arte (em todos os casos, tais percentuais desconsideram equipes mistas).
Coisa de mulher
Pelos dados da Ancine, percebe-se que a direção de arte é uma função exercida por muitas mulheres. Aliás, é o único dos índices pesquisados que ultrapassa 50%. Pode-se especular que essa forte presença esteja ligada à percepção de que a direção de arte, assim como os setores de figurino e de cabelo e maquiagem, seja uma função cinematográfica mais alinhada ao que se considera “feminino”. Muitas estudantes relatam, por exemplo, que durante o curso de cinema são incentivadas a seguir carreira nessas áreas, mas não nas consideradas de liderança criativa (como roteiro e direção) ou nas que envolvem tecnologia e equipamentos (como som e direção de fotografia).
Calcada em estereótipos, a associação da direção de arte à “natureza feminina” acaba, às vezes, por diminuir o talento e o esforço das profissionais da área, como aponta o artigo de India Mara Martins e Tainá Xavier publicado em Trabalhadoras do cinema brasileiro. “Se a natureza da esfera envolvida na representação de mundos dotados de espaços cênicos exteriores e interiores [...] é relegada culturalmente ao feminino, assim como a natureza da caracterização de personagens e portanto da aparência [...], é preciso lembrar que a direção de arte opera também mediante códigos próprios às estruturas dramáticas, narrativas e estéticas”, escrevem as autoras. “Os e as profissionais envolvidas nas diferentes tarefas do departamento são técnicos e técnicas especializadas, cuja qualificação não deve ser desvalorizada ou tida como natural da condição feminina”, frisam.
“Mas você que vai gravar?”
Na outra ponta do espectro está a área de som, tida como profundamente técnica e, portanto, própria do talento masculino. Embora não ofereça dados sobre a participação das mulheres no setor, o artigo de Tide Borges e Marina Mapurunga, ambas técnicas de som, reproduz interessantes depoimentos de 28 profissionais com idade entre 23 e 67 anos. A maioria relata ter passado por episódios de assédio e/ou ouvido comentários machistas no set, mostrando que essas mulheres, além de pouco incentivadas a entrar na área, são constantemente desencorajadas a continuar.
“[Os homens] não acreditavam que [eu] pudesse ser microfonista, insistiam para eu mudar de área, [diziam] que aquilo não era coisa de mulher”, conta uma técnica de som. “Tive inúmeros assistentes homens que tinham muita dificuldade em atender o que eu pedia, que discutiam ou argumentavam ou que simplesmente ignoravam totalmente”, afirma outra profissional.
As entrevistadas também apontaram a frequente necessidade de provarem seu conhecimento e sua capacidade aos outros membros da equipe. “Os homens no set estão acostumados a lidar com mulheres na arte, na direção, na produção, mas quando é na técnica, principalmente microfonista, assistente de câmera, de maquinaria/elétrica, eles vão te testar mais”, diz uma microfonista ouvida pelas pesquisadoras. “Já senti falta de confiança de diretores e atores quando percebiam que uma mulher ia fazer a gravação”, relata uma editora de som. “Aquele tipo de pergunta: ‘Mas é você que vai gravar?’.”
Na trilha das mulheres
A música é outra área desafiadora para as mulheres em todo o mundo: apenas quatro compositoras venceram o Oscar de trilha sonora original e só 7% dos 250 filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2021 tiveram trilhas assinadas por mulheres, de acordo com estudo da Universidade Estadual de San Diego.
O cenário brasileiro é delineado no artigo de Suzana Reck Miranda e Debora Regina Taño, que analisam 1.245 longas-metragens brasileiros de ficção e documentário lançados nos cinemas de 1969 a 2018. Segundo o levantamento, entre todas as 829 pessoas que de algum modo assinam a autoria das músicas utilizadas nesses filmes, apenas 38 são mulheres.
Além disso, dos 42 longas que creditam mulheres compositoras, só 28 creditam apenas mulheres (ou seja, não envolvem a colaboração com homens), e só 4 compositoras (Maria Inês da Silva, Flávia Ventura, Sílvia Beraldo e Vivian Aguiar-Buff) assinam mais de uma trilha em todo o período estudado. Os nomes masculinos, por sua vez, se repetem com frequência, sugerindo que as mulheres têm maior dificuldade em consolidar suas carreiras no setor.
Um retrato mais completo só poderá ser obtido com estudos regulares, outras pesquisas e bibliografia crescente, e quase todas as colaboradoras de Trabalhadoras do cinema brasileiro apontam, em seus artigos, a escassez de informações e a necessidade de aprofundar a análise dos pontos levantados. De fato, livros inteiros poderiam ser escritos sobre a participação das mulheres em cada uma dessas funções, ou sobre profissionais pioneiras como a diretora de arte Yurika Yamasaki e a montadora Carla Civelli (1921-1977), para citar apenas duas. Um lembrete de que o debate de gênero no audiovisual se fortaleceu, mas está ainda no começo.