No texto de abril da coluna “Sincera forma do mundo”, Gabriel Martins reflete sobre a obra de André Novais Oliveira, conhecida como Andrezera
Publicado em 15/04/2024
Atualizado às 20:19 de 15/04/2024
André Novais Oliveira, chamado de Andrezera, é, na minha opinião, um dos maiores autores de cinema no mundo hoje. Tudo bem, não tenho nenhuma imparcialidade para afirmar isso, pois, além de sócio, trabalhei ativamente em quase todas as produções dele. Sinto também que essa afirmação é quase desnecessária, já que André, felizmente, está recebendo suas flores ainda em atividade – o que é importante, em especial por se tratar de um cineasta negro e de periferia. Ele é um gênio mesmo, alguém de sentimentos múltiplos, oferecidos para nós por meio de seus filmes.
André conseguiu achar seu caminho muito cedo ao encontrar em Fantasmas, o filme que o levou para o cinema brasileiro, um terreno fértil para falar de relacionamentos afetivos. Na verdade, esse caminho vem de antes: de curtas menos vistos, como 150 mg, e outros que nos introduzem um humor peculiar, a exemplo de Uma homenagem a Aluízio Neto, a primeira obra do cineasta em Super 8.
Em janeiro deste ano, durante a homenagem na Mostra de Tiradentes, defendi André como o nosso grande diretor de comédias românticas. Sinto que o trabalho dele faz um exercício frequente de pensar encontros e separações, tensões e constrangimentos, desejo e frieza, tudo a partir de um envelopamento das produções muito atento à imagem (não existe nada aleatório). Paralelamente à narrativa, Andrezera estuda o próprio cinema, suas possibilidades, sua matéria. Fantasmas não é um filme sobre o campo audiovisual? Há o quadro, os limites físicos e existenciais desse quadro e o que ele pode testemunhar, afirmar, iludir. “Cê viu? Não era ela? Não era a Camila?”. Tem mentira e verdade ao mesmo tempo. Existe o tempo, um filme que pode ser o presente, mas que também pode ser o passado, um flashback, uma fita rebobinada. O tempo do filme falando do tempo da personagem em um gesto que diz que é possível falar de amor em uma esquina e um posto de gasolina.
A espiritualidade de André aparece no cinema na forma de abismos. Abismos, pois existe uma busca frequentemente pautada por um instinto. Olhar para a vastidão do mundo e nela encontrar algumas inseguranças. Se eu pular, onde vou cair? O mistério do mundo. Em todo abismo, também uma paisagem para olhar. Um horizonte (um belo horizonte?) que abre portas para cinemas possíveis. O processo criativo do André é intuitivo, de quem nasceu para fazer isso mesmo. Em debates, a palavra “natural” vem do próprio André como uma descrição de seu caminho pessoal e coletivo de cineasta. Que isso, porém, não se confunda com uma falta de técnica, de referência ou de profissionalismo. Pelo contrário: ele é do artesanato, do roteiro no papel, da anotação, do detalhe. Tem foco quando prepara e filma. Tem trabalho técnico para atingir determinados resultados. O que não existe é a burocracia do procedimento. André bebe da fonte de Kiarostami, Kaurismaki, Wilder, Domingos de Oliveira e Charles Burnett, cada um desse uma “linha de busão” que vai para algum lugar, achando nesse meio um caminho todo seu.
Contudo, o que é esse caminho? Para mim, é um tempero agridoce. É um “ninguém é perfeito”, no final de Quanto mais quente melhor. Existe um compromisso com a honestidade dos sentimentos vindo de alguém que só consegue fazer esses filmes por estar se entendendo no mundo ainda. Sinceridade antes de tudo. Isso não diz só sobre trazer questões pessoais para as obras, mas sim de lidar com elas em um tempo específico a fim de que exista espaço para aparecer o entendimento. Tempo e espaço. O tempo do plano gera espaço para podermos chegar no filme. O espaço do plano nos dá tempo para ver o que está em tela, brincar de olhar. E uma periferia pode ser tanta coisa. Eis uma imagem bastante desconcertante diante da voracidade do mundo nos anos 2020: uma quebrada que medita.
Talvez, meu filme favorito de André até hoje seja Pouco mais de um mês, um curta-metragem pensado, executado e finalizado em menos de duas semanas. Assim como Fantasmas, o filme evoca o cinema como parceiro do amor – agora, em uma câmara escura no quarto de Élida e que nos permite ver a rua “projetada” no teto do cômodo. Em um quarto cabe um mundo. Extracampo em campo. Há um fluxo do constrangimento de um início de namoro que carrega o trabalho com uma doçura tensa. A gente se vê ali naqueles tempos de silêncios intermináveis, quando vinte segundos duram duas horas. Quem nunca?
No entanto, o que mais me pega, no geral, é a capacidade desse projeto e de todos os outros de André de conectar, naturalmente, o pessoal e o coletivo. Existe uma situação íntima, mas ela nunca está descolada do mundo, do entendimento que somos atravessados por paisagens, sons, pontos de ônibus, carros e pessoas das mais diversas, tudo passando pelo quadro enquanto uma individualidade se fragmenta na nossa frente. Os diálogos entre André e Élida tornam-se potentes, pois, de modo irônico, precisam sair do espaço seguro, o ventre do quarto, para assumir suas inseguranças no meio da rua, com barulho ao redor, em um excesso de informação. Em certo momento, quando vão dar o último beijo no filme, a montagem faz com que as personagens sejam atropeladas por um ônibus que vai levá-las ao conforto final. Calmaria e tempestade cruzando-se como na vida.
Muito do que falo aqui já falei publicamente lá e cá. Achei prudente, porém, aproveitar a coluna para organizar esses pensamentos, já que, no futuro, dá para voltarmos a este texto e teremos mais um escrito sobre André. Mesmo sem distanciamento, consigo olhar para a obra dele também como espectador e me ver admirado pela maneira como esse conjunto melhora o cinema brasileiro.
Além disso, este texto surge no momento em que a Filmes de Plástico, empresa que criei com André, Maurilio Martins e Thiago Macedo Correia, completa 15 anos. No exercício de olhar para trás, me senti emocionado ao ver todo o nosso trabalho e essa trajetória linda do cinema de André. Pensar na arte dele representa defender um cinema que, embora admirado por alguns hoje, também afronta o status quo. Enquanto o caminho do mundo dobra para um mínimo denominador comum criativo como modus operandi, a obra de André nos traz coragem. Sai a mediocridade e entra o risco. É algo que brota em uma convocação para nos desafiarmos no fazer artístico, termos ousadia para pensar combinações narrativas. André pula no abismo do cinema e volta de lá com uma história para contar. Daqui, aprendemos um pouco mais a escutar o mundo, entender suas voltas, decantar seus sabores e, por fim, saímos um tanto mais engrandecidos.
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