Winnie Bueno, colunista do site do Itaú Cultural, fala sobre o saber-fazer e a resistência de mulheres negras
Publicado em 29/05/2021
Atualizado às 17:07 de 16/08/2022
Os processos de validação do conhecimento suprimiram os saberes de mulheres negras. Durante muito tempo, tudo o que a gente pensou não foi considerado como conhecimento. Da mesma forma, tudo o que a gente articulou como estratégia de sobrevivência não foi considerado como ação política. Nosso fazer e nosso pensar foi silenciado, apropriado, alterado. Esse processo não se deu de forma ingênua ou por ignorância, ele é parte de um projeto mais amplo, caracterizado por Sueli Carneiro como epistemicídio.
Entre os objetivos do epistemicídio, há um propósito de estabelecer o que é considerado produção teórica. É uma forma de manutenção de privilégios, uma que consolida epistemologias que não consideram as vivências e experiências de mulheres negras. Assim, a branquitude detém o poder não apenas de nomear a própria experiência, mas também de nomear a experiência de todos aqueles que considera “outros”.
Apesar dessa dinâmica, mulheres negras articularam um pensamento autodefinido, com processos de valoração e validação de seus conhecimentos que ultrapassam as fronteiras acadêmicas. O ativismo intelectual de mulheres negras reside nesse lugar. Um lugar no qual mulheres negras mobilizam seus conhecimentos como ferramenta de análise e formulação de agendas políticas que possibilitem resistências aos sistemas de dominação e uma inscrição intelectual autônoma a partir de seus próprios pontos de vista. É assim que, em nosso país, a intelectualidade de mulheres negras sobreviveu e se fortaleceu. Se hoje celebramos e conhecemos o pensamento formulado por ativistas negras, é porque essas mulheres têm articulado conceitos como instrumentos de luta, como formas de nomear os problemas que enfrentam e de caracterizar a trajetória de seu ativismo. O pensamento feminista negro há muito vem demonstrando que as lutas de mulheres negras por resistência e emancipação são uma forma de teorização, que não necessariamente está inscrita academicamente mas que, a despeito da dinâmica de supressão intelectual do pensamento de mulheres negras e da persistência das violências epistêmicas, também utilizou a academia como uma ferramenta para inscrever categorias e registros importantes dessas lutas.
A produção político-teórica de ativistas como Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Cida Bento, Nilma Lino Gomes e tantas outras sobreviveu como pensar e como fazer não por benevolência daqueles que detêm o poder. Se dependesse dessas pessoas, tudo o que essas mulheres produziram e fizeram teria desaparecido. Seus nomes teriam sido ocultados. O pensamento de mulheres negras circulou, sobreviveu, fortaleceu-se pelas mãos e pelas estratégias delas próprias. Os léxicos de resistência cunhados por essas mulheres inspiram as novas gerações, mobilizam a juventude negra, lhe dá autoestima e a empodera. Essa produção político-teórica deu forma ao ativismo político antirrascista contemporâneo. E faz ainda mais: possibilita novos modelos de teorização, alicerçados no pensamento dessas mulheres.
O fazer-saber de mulheres negras é ferramenta de resistência nas relações de luta e nas disputas de poder. Influencia uma práxis político-teórica em próprio nome, tensiona padrões de formulação de conhecimento e constitui outros marcos para a valoração do que é tido como teoria. É esse fazer-saber que coloca no centro as múltiplas dimensões, a pluralidade e a heterogeneidade de experiências da sociedade brasileira.
Nosso pensamento está vivo porque nos permitimos ser permeadas pelos legados que nós mesmas constituímos. A reversão do processo de silenciamento e deslocamento do pensamento e da ação política de mulheres negras é resultado do protagonismo das próprias mulheres negras. Não devemos absolutamente nada a ninguém.
Em verdade, temos muita conta a cobrar. Aos poucos, vamos cobrando: fazendo e pensando.