Confira o texto desse mês da coluna Encontro com Espectadores, que destacou a peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu
Publicado em 06/08/2019
Atualizado às 15:23 de 01/10/2021
A abordagem de problemas brasileiros do passado remoto ou da contemporaneidade do país pode precipitar em forma teatral livre de lugares-comuns quando o capítulo for a comédia popular. Aliás, nossa única tradição teatral é a da comédia de costumes, já observava com propriedade o crítico Décio de Almeida Prado (1917-2000). Para o público internauta afeito à brasilidade operada sobre a arte com sofisticação de linguagem, a dramaturgia de Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, do santista Carlos Alberto Soffredini (1939-2001), tem muito a dizer e a revelar.
Havia quase 30 anos São Paulo não assistia a uma montagem profissional do texto que recebeu ponto-final em 1979 – portanto, há quatro décadas – e que foi levado ao palco por Iacov Hillel (1979), com o Grupo de Teatro Mambembe, e por Gabriel Villela (1990), então um jovem assinando a quarta produção na sua carreira, com elenco encabeçado por Laura Cardoso.
Agora é a vez de as novas gerações acompanharem a versão da filha do autor, Renata Soffredini, com o Núcleo de Estética Teatral Popular, o Estep, do qual o pai foi um dos fundadores, em 1976. O trabalho estreou no Itaú Cultural e fez sua segunda temporada no Teatro João Caetano, ambos em São Paulo (SP).
A diretora Renata e a atriz Bete Dorgam foram as convidadas da 31a edição do Encontro com Espectadores, em 28 de julho, realizada na Sala Vermelha do instituto e sob a mediação da jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes. Sempre no último domingo do mês, às 15h, com acesso gratuito, a parceria com o site Teatrojornal – Leituras de Cena abarca um espetáculo da temporada paulistana.
Circo-teatro
Segundo Renata, Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu traz “uma salada de gêneros”, como o melodrama moderno, o circo-teatro, a comédia e o musical. Nos bastidores de uma companhia de teatro, a dona, diretora e atriz Aleluia Simões (interpreta por Bete) luta bravamente pelo sustento de seus artistas (inclusive, o filho) e de seu negócio desde que herdou a lona de circo dos seus pais. A matriarca conhece a decadência das companhias familiares, em consequência do avanço da televisão nos anos 1950, ao transitar pelos picadeiros ou pelos pavilhões – nestes em que o palco era mais pronunciado, de modo a receber as representações cênicas.
Uma das atrações da trupe é a apresentação do melodrama Coração Materno, do português Alfredo Viviani. Na sinopse desse clássico do circo-teatro, um filho atraído e obcecado pela vedete principal de uma companhia é convencido por essa moça, que ambiciona o lugar da patroa, a matar a própria mãe. O título é similar ao da gravação icônica de Vicente Celestino, em 1937, que adaptou a narrativa para uma composição conjunta com a mulher, Gilda Abreu. Um tango-canção bem ao estilo do romantismo exacerbado do tenor que arrebatou multidões na primeira metade do século XX.
Renata explicou que, para dar conta da "metateatralidade" (a peça dentro do circo), Soffredini aperfeiçoou, ao longo dos anos, procedimentos para a atuação que batizou de “nossa linguagem”. São técnicas inspiradas na expressão genuína do artista popular. Para tanto, a atriz ou o ator buscam um “estado de jogo” a partir de pilares como a triangulação, a quebra, o foco e a ponte, nomenclaturas que passam pela relação direta com o público sem distender a sinergia com os pares de cena.
No caso da montagem em pauta, haja fôlego para narrar, cantar ou representar figuras como a cínica, o vilão, a ingênua, o galã e a “sobrete” (atriz que faz “escada” para o cômico arrematar).
Também professora de interpretação na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/USP) e formadora do curso de humor na SP Escola de Teatro, Bete Dorgam observou que os estudantes estão mais ativos para a abordagem da cultura popular e, inclusive, o meio artístico em que costuma vicejar o preconceito. O que não significa meramente culto ao nacionalismo – ao contrário.
Sabemos que a noção de popular é tão complexa quanto contestada. Isso não impede, por exemplo, que no plano da realidade sociopolítica a ascensão do populismo de extrema direita no Brasil e em outros países seja objeto de crítica, vide a recente encenação de Gabriel Villela de um clássico da comédia brasileira, Auto da Compadecida, com o Grupo Maria Cutia, de Belo Horizonte (MG), que esbanja criticidade ao desgoverno de turno.
“Nós não estamos mais no território do palhaço, mas do bufão”, afirmou Bete em relação ao momento brasileiro. “O poder tem muito medo do humor. Nas ditaduras, os comediantes são sempre perseguidos por causa disso. O humor faz você olhar objetivamente para as coisas. Não o envolve emocionalmente, ele lhe dá o distanciamento crítico.”
Bem-vinda e surpreendente presença no Encontro, o ator, diretor e pesquisador Lindolfo Amaral, cofundador do Grupo Imbuaça, de Aracaju (SE), com bagagem de 42 anos de prática e pensamento em torno do universo do teatro de rua, disse que a palavra-chave é resistência. Ele concorda com o espírito de brasilidade neste momento paradoxal da nação e apontou, como indício, a recente afluência recordista de público à visitação da exposição Tarsila Popular, em torno de Tarsila do Amaral (1886-1973), no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.
Espetáculo do Tablado de Arruar em agosto
O espetáculo Pornoteobrasil, do grupo Tablado de Arruar, estará no centro da conversa do 32o Encontro com o Espectador, em 25 de agosto, às 15h. O dramaturgo e codiretor Alexandre Dal Farra e o ator e codiretor Clayton Mariano são convidados a compartilhar com o público, sob a mediação da jornalista e crítica Beth Néspoli, as intenções que os moveram nessa mais recente montagem, em temporada às sextas-feiras deste mês no Teatro Cacilda Becker, na Lapa, na capital paulista.
A ação se passa no Brasil contemporâneo, no cenário de um acidente ou atentado – não é possível afirmar ao certo. É nesse espaço de destruição e catástrofe que a peça se dá. Após uma situação traumática como essas, é comum que o sujeito tenha as suas estruturas abaladas, estruturas estas que constituíam o seu próprio olhar para si mesmo, para o seu passado, para o seu presente, e para o futuro. Depois do trauma, que se apresenta como uma espécie de instalação feita de destroços, três cenas procuram abordar aspectos diversos desse mesmo ocorrido, que poderia ser o fim de uma ordenação do mundo.
Pornoteobrasil é a primeira parte de um díptico, do qual está em construção a segunda parte. O título, desdobrado do projeto de roteiro para longa-metragem nunca realizado pelo diretor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), Porno-Teo-Kolossal, aponta uma tentativa de cruzar, no olhar para a atualidade, aspectos teológicos, sexuais e políticos.