Na última edição da coluna “Sincera forma do mundo”, Gabriel Martins se debruça sobre os futuros possíveis do cinema brasileiro
Publicado em 01/08/2024
Atualizado às 15:34 de 19/08/2024
Ali pelos idos de 2017, no Festival de Brasília do cinema brasileiro, algumas coisas aconteceram. Tínhamos simultaneamente a estreia de Vazante (2017), de Daniela Thomas, e Café com canela (2017), de Ary Rosa e Glenda Nicácio. O primeiro filme representou, a partir da recepção de boa parte do público (principalmente o racializado), um cinema velho – pela maneira como se debruçou sobre as existências negras. Tínhamos a diretora e a produção brancas, narrando dores da escravização com pouca sensibilidade para as complexidades do corpo e da história negra. Já em Café com canela, percebia-se um caminho mais aberto para o experimento, uma parede que chorava em um filme que, por ser todo torto (no melhor sentido), trouxe frescor e alimento para um desejo de cinema latente em quem ali estava presente. Muito aconteceu de lá para cá, inclusive muitos outros filmes da dupla Ary e Glenda e muita discussão sobre negritude e artes. Naquele momento, surgiram muitas novas vozes no cinema brasileiro e existia certa anunciação de um futuro próximo bem interessante. Esse futuro ainda não veio como se esperava. No primeiro texto deste conjunto, trouxe alguns dados e opiniões que surgiram em uma conversa sobre cinema negro brasileiro com Tatiana Carvalho Costa, atual presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan). Nesta segunda parte, debruço-me um pouco mais sobre alguma possível ideia de futuro para esse campo artístico a partir de um histórico de carências, ausências e desigualdades.
Uma das perguntas essenciais que fiz para Tatiana foi: "Onde estão os realizadores negros hoje, em 2024?". Mas, antes de entrar nisso, é importante entender com um pouco mais de densidade essa expectativa. De acordo com Tatiana – que, além de pesquisadora e presidente da Apan, foi curadora de vários festivais importantes, como a Mostra de Tiradentes –, existiu de fato um momento de uma produção frutífera e de enorme qualidade que ocupou muitos espaços. Em certo ano, inclusive, a Mostra de Tiradentes chegou a ter 70% dos curtas-metragens selecionados dirigidos por pessoas negras. Lembro-me inclusive de um momento muito especial no Festival de Rotterdam, em 2019, quando vários realizadores negros foram ao evento para um panorama do cinema negro brasileiro intitulado Soul in the eye, em homenagem ao curta Alma no olho (1974), de Zózimo Bulbul, com curadoria de Janaína Oliveira. Esse conjunto de filmes ocupando espaço em um grande festival é algo histórico.
Toda essa efervescência se manteve, em algum nível, no espaço dos curtas-metragens, mudando bastante o panorama e a estrutura de festivais como o Festival de Curtas de Belo Horizonte e até os mais tradicionais, como o Festival de Gramado, que viu na sua programação uma presença cada vez maior de curta-metragistas vindos de outros lugares que não os costumeiros. Isso proporcionou e proporciona, para além da renovação em tela, uma presença dos corpos dos realizadores em meios que trazem a eles mais oportunidades de trabalho, coprodução, agenciamento, construção de carreira e, acima de tudo, experiência de vida. Muitas pessoas, inclusive, viram nessas oportunidades uma maneira de fazer suas primeiras viagens internacionais ou mesmo nacionais, conhecendo lugares que talvez não veriam a não ser pelo cinema – uma história que eu, particularmente, também vivi e vivo.
Apesar desse movimento, um processo que pareceria natural para um realizador branco, a migração de projetos de curtas-metragens para longas-metragens, não aconteceu. Tatiana comentou sua frustração, enquanto curadora, ao migrar do processo de seleção de curtas para o de longas em Tiradentes e entender que não estavam ali os próximos projetos de vários realizadores interessantes surgidos nos anos anteriores. Os filmes não foram inscritos porque na verdade não foram feitos. Existiu, no meio desse processo, como todos sabemos, uma pandemia devastadora para o cinema nacional. Mas é preciso entender também que, particularmente para o cineasta negro, esse choque foi ainda mais brutal.
No texto anterior, levantamos dados que apontam que, mesmo no campo dos editais, em que vinham se aprimorando instruções normativas de ação afirmativa, a desigualdade de oportunidades era radical entre negros e brancos. Diferente de um curta-metragem – um projeto de curta duração que pode ser feito em um intervalo menor de tempo, como projeto de faculdade ou mesmo de uma oficina –, o longa-metragem naturalmente precisa de mais estrutura, dinheiro ou, pelo menos, tempo. Tatiana menciona como uma série de realizadores que se destacaram no momento pré-pandemia foram absorvidos por canais de streaming ou pela Globo, numa necessidade de oportunidade e também de trabalho – além de atender a uma demanda dos canais por maior diversidade no seu corpo técnico. Cineastas como Everlane Moraes, Juliana Vicente, Bruno Ribeiro, irmãos Carvalho e Renata Martins viram na iniciativa privada uma maneira não só de sobreviver, mas também de criar melhores condições para suas famílias. Muito importante lembrar que, para o artista negro, muitas vezes, correr atrás do seu sustento significa também prover para sua família, seus pais, e virar uma rede de apoio diante de um histórico que, no geral, passa pela vulnerabilidade financeira.
A questão é que, nesse processo, na minha opinião – também compartilhada por Tatiana –, o cinema brasileiro perdeu um combustível criativo ao não termos projetos autorais de pessoas talentosíssimas que, vendo seu talento focado nos ditos "players", tiveram, no geral, menos campo para experimentação em projetos que poderiam ser mais disruptivos. Não digo, com isso, que dentro dessas estruturas os artistas não puderam fluir suas ideias e mesmo tirar o espectador de um lugar-comum – destacando-se, por exemplo, o conjunto Histórias (im)possíveis, roteirizado por Jaqueline Souza, Renata Martins e Grace Passô. Mas existe também um limite desse meio de produção, a forma como certa agenda se dá e, acima de tudo, como ela não emancipa verdadeiramente o artista negro – que se vê, no fim das contas, como parte de uma estrutura maior e anterior a ele, com um projeto do qual ele não é dono.
E isso me leva a uma pergunta final, que fiz a Tatiana, sobre um horizonte utópico para o cinema negro. O seu resumo me parece muito potente: presença e permanência. Queremos estar presentes e permanecer presentes, não entendendo nossa expressão como algo passageiro. Vale nisso também uma crise, que Tatiana coloca como epistêmica, que é a universalidade, ou um sujeito universal que ainda é entendido como sendo branco. O que esse cinema negro vem para reivindicar e afirmar, como Tatiana diz, é a pluralidade do nosso povo e uma interpretação da sociedade brasileira mais complexa. É reconstruir uma noção de referência emocional na ficção e no documentário a partir de histórias que nos vejam numa dimensão ampla. E, como força de trabalho, é necessário também que o negro esteja, no mínimo, na proporção que ele representa na sociedade brasileira. Que possa trabalhar dignamente e viver seu lazer como o cidadão brasileiro que é. Parece simples, mas ainda está longe.
Associações como a Apan seguem lutando para tornar essa utopia real. Projetos como o Laboratório Negras Narrativas fortalecem a tríade criativa do roteiro, direção e produção-executiva, amparando tecnicamente, criativamente e emocionalmente o artista negro para fortalecer as redes de produção e colocá-lo de maneira mais plena em um meio onde as portas se fecham com frequência e é muito difícil se manter de pé diante dos desafios. É fundamental, também, o mapeamento que Tatiana aponta de empresas vocacionadas que têm em seu CNPJ no mínimo 50% de pessoas negras, para que essa cadeia produtiva negra possa ser mais bem compreendida e, a partir disso, as políticas públicas estruturantes possam ser intensificadas de modo a contemplar essa demanda.
Mas a questão que me parece mais essencial e que deixo aqui no final deste texto – e que também encerra minha participação nesta coluna – é pensar que, enquanto agentes culturais, precisamos estar sempre em luta. Vivemos reviravoltas nos últimos anos que, em certo sentido, podem ter nos dispersado – embora, em muitos aspectos, também tenham nos unido. A volta de Lula ao poder também pode ter criado uma ilusão de que as coisas estão melhorando (o que, em muitos aspectos, está), quando existe sempre uma iminência da volta à estaca zero. A luta racial nos ensina a estar acordado o tempo inteiro e cada vez mais compreendendo que nossa existência não pode ser só criativa, mas ativa na política, em conjunto, em volume. Mesmo com nuvens pesadas, eu vejo um futuro bonito, sinceramente. Vejo que, nos próximos dez anos, teremos clássicos que não tivemos nos últimos dez anos. Mas, para isso, é preciso lutar pelo cinema negro para que ele seja um sonho vivo e um pilar essencial do audiovisual. Axé!
Coluna escrita por: