O álbum tem letras intensas, tanto veementes quanto descontraídas, além de uma parte musical que instiga a audiência a ficar alerta
Publicado em 21/03/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
Poeta, compositora, instrumentista, cantora, sonoplasta, engenheira de som, além de astróloga... Essa é a paulista Anna Vis, que, em 2019, lançou Máquina orgânica, seu primeiro livro de poesias e, agora, no começo de março, Como um bicho vê, seu primeiro álbum, com direção artística de Romulo Fróes.
Como um bicho vê teve seu ponto de partida quando, no início da pandemia de covid-19, em 2020, Anna viu uma postagem do cantor e compositor Romulo Fróes pedindo que compositoras e compositores enviassem suas músicas para que ele colocasse letras e, assim, se iniciassem novas parcerias. Dias depois de Anna enviar uma melodia, Romulo retornou com “Espantalho sem espelho” e um incentivo para que ela fizesse seu primeiro álbum.
Romulo Fróes, um dos principais nomes da música popular de São Paulo e do Brasil, é um artista que preza o “álbum” e o desenvolvimento conceitual, ainda que esse conceito surja naturalmente ao longo do processo. Com um trabalho solo consistente que rendeu mais de uma dezena de álbuns, além dos lançados com a Losango Cáqui, sua primeira banda, e com o Passo Torto, e dos dois divididos com César Lacerda e com Tiago Rosas, Romulo assumiu o posto de diretor artístico na YB Music, sendo responsável por álbuns históricos, como é o caso do premiadíssimo Mulher do fim do mundo, de Elza Soares. Em sua trajetória, ao lado de figuras como Clima, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Nuno Ramos, Rodrigo Campos e Thiago França, é nítida a criação de uma linguagem musical que se utiliza do samba de maneira poética, que atravessa a essência humana de forma crua, apesar de lírica, sem a preocupação em aparar arestas. Muito pelo contrário, essas arestas são fundamentais para a personalidade intensa e brilhante da obra. Essa linguagem transbordou do seu núcleo e banhou diversos outros trabalhos, como é o caso de Como um bicho vê, de Anna.
Múltiplo, como sua criadora, o álbum reúne 12 canções, e em dez delas Anna se encarregou da música, enquanto as letras ficaram com Romulo Fróes (“Espantalho sem espelho”, “Aquela que teima”, “Estrangeira” e “Um moribundo”), Alice Coutinho (“Água com gás”), Clima (“Lá vou eu e nada é maior”, “De cara”, Mil noites” e “Calada”) e Morris (“Tribunal da rosa”). Nas duas faixas restantes, Anna foi responsável pelas letras e as músicas foram compostas por Juliana Perdigão (“Vitalina meia vida”) e Marcelo Cabral (“Eleito leitor”). O poema “Sem vacilação”, escrito por Anna, foi dividido em nove partes e funciona como um fio que costura as 12 canções.
O título Como um bicho vê saiu da faixa “Calada”, que traz na letra: “[...] Vi como um bicho vê / como é / sem vacilação [...]”. A frase, segundo Clima, seu autor, fala sobre a forma como os bichos veem as coisas, encarando-as em seu estado, sem poder vacilar, pois não sabem o que elas são capazes de fazer. Essa ideia acabou se transformando no conceito do álbum, que é bastante adequado à maneira como é o Brasil, um país em que a população precisa estar sempre alerta, pois, paradoxalmente, a anormalidade é vista como normalidade.
Se o texto é intenso, com certa concretude urbana, alternando, vez por outra, veemência e leveza e também tristeza e descontração, a parte musical segue na mesma direção, instigando a audiência a ficar em estado de alerta, assim como no conceito do álbum, “sem vacilação”, para que o desfrute seja completo. Para isso, as canções, com suas melodias que fogem da obviedade, ganharam arranjos precisos, valorizados pela performance artística, que trabalhou muito bem andamentos e dinâmicas, realçados por um apuro técnico impressionante (chama atenção a masterização e a mixagem feitas por Carlos “Cacá” Lima).
Os arranjos foram feitos por Marcelo Cabral e Maurício Takara, ao lado de Anna. Enquanto ela se ocupou da voz e do violão, Cabral se encarregou do baixo elétrico, synth bass e synths, e Takara, da bateria, percussões e synths. O álbum contou com a participação especial de Ná Ozzetti (em “Mil noites”), Juçara Marçal (“Tribunal da rosa”), Juliana Perdigão (“Vitalina meia vida”), Clima (“Calada”) e Romulo Fróes (“Um moribundo”). As nove partes do poema “Sem vacilação” ganharam paisagens sonoras criadas pelo artista, produtor e engenheiro de som Mbé, que foi cirúrgico na construção de ambientes que ajudaram a amarrar tão bem o conceito de Como um bicho vê.
Levando-se em conta que, a cada dia que passa, fica mais claro o quanto a humanidade precisa rever sua postura diante do planeta e diante de si mesma, talvez o melhor caminho a seguir seja uma reconexão com sua origem, por meio de uma reflexão cuidadosa, que a faça voltar aos trilhos. Uma observação interna, dando a devida atenção ao que somos, e uma observação externa, entendendo o entorno e nos colocando como parte de um todo. A arte é uma excelente ferramenta para chegar lá, e trabalhos artísticos que se multiplicam em beleza, inquietude, provocação e com a profundidade que encontramos em Como um bicho vê merecem toda a nossa atenção.