Em seu novo texto, a colunista Sofia Borges tenta compreender suas próprias fotografias
Publicado em 14/03/2022
Atualizado às 12:07 de 10/11/2022
- Introdução -
O texto que escolho para dar continuidade vem dos primórdios do meu pensamento a respeito da imagem. Compartilho aqui algo que escrevi em 2008, ano em que concluía o curso de artes visuais na Universidade de São Paulo (USP). Esse texto foi uma grande aventura, eu o apresentei na minha tese de conclusão de curso e, como nomeei na época, trata-se da genealogia de um objeto ainda incerto. A relevância de compartilhá-lo aqui é para mostrar as origens do pensamento que segue até hoje estruturando minha prática. Aqui vai:
Talvez seja sobre as origens do sentido fotográfico para mim. Ou, mais possivelmente, se trate da genealogia do “sentido em si” para mim e da decorrente filiação desta para com a minha prática artística. Buscarei nessa genealogia a fundação de um pensamento artístico e sua descendência nas obras aqui apresentadas.
Na origem mais remota estará a experiência pessoal, não artística; a qual culminará, primeiro, em uma vontade artística e, depois, na busca de um meio que melhor se adéque ao propósito de meu trabalho. Tentarei demonstrar a familiaridade entre minhas intenções e a escolha da fotografia como meio e, por fim, tratarei das ramificações ocorridas na prática artística decorrentes dessa escolha. Contudo, antes de abordar tais questões, farei algumas considerações mais amplas quanto ao meio fotográfico, por serem relevantes à discussão.
É necessário esclarecer que tal estudo se debruça sobre uma dada produção, meus primeiros trabalhos: retratos e autorretratos feitos entre 2005 e 2008. As fotografias aqui analisadas não são o resultado dessas reflexões. Essa genealogia é a aventura de mapear motivos subterrâneos à minha prática, já que eventualmente estes são encobertos pela autonomia poética e interpretativa dos trabalhos. Não se trata de examinar o fruto da minha pesquisa artística, mas as características de seu solo e raiz.
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Antes de abordar as questões intrínsecas ao meu percurso, farei algumas considerações mais amplas quanto ao meio fotográfico. Tais considerações serão somente a tentativa de responder a alguns conceitos construídos por Roland Barthes em seu livro A câmara clara, uma vez que, ao longo desta investigação, diversas vezes lançarei mão desses conceitos.
Neste texto, haverá a análise de três séries fotográficas: Fotos de família, Cenas e Duplos. Contudo, a reunião das fotografias como “séries” é momentânea – nunca me importou, enquanto as fazia, entendê-las como conjuntos. Meu interesse pela fotografia, assim como por outras áreas, tem outro ritmo, e cada trabalho é o que determina o rumo do próximo, são interesses contínuos.
A minha intenção aqui não será a de tentar direcionar, para o espectador, como se deve compreender as minhas fotografias; será tentar, eu mesma, compreendê-las. É a primeira vez que me arrisco a abordar as minhas fotografias por todos os ângulos em que as vejo. Portanto, a esta genealogia caberão desvios e contradições que ajudem a demonstrar a fragilidade do meu assunto, que é artístico e, definitivamente, incerto.
- Condições fotográficas (ou resposta a R. Barthes) do referente fotográfico -
"Eis-me assim, eu próprio, como medida do “saber” fotográfico. O que meu corpo sabe da Fotografia? Observei que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de éidolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto." (Roland Barthes, A câmara clara)
Como espectadora, antes de criar uma relação produtiva com a fotografia, esta apareceu para mim num ambiente familiar, do hábito de tê-las por perto, de olhá-las e reconhecê-las. Neste primeiro capítulo, não incluo no que chamo de fotografias as reproduções em revistas, livros, pôsteres, outdoors etc.; falo delas próprias, em pequeno formato, e do hábito de tê-las nas mãos para olhar. Essas de que falo possuem uma função específica e a executam rigorosamente.
A essa função está ligada uma ideia de inacessibilidade ou amortecimento (aquilo que, lentamente, se torna morto). Reconhecer alguém ou algo numa foto é constatar sua fisicalidade e sua vocação para a morte (nem a paisagem escapa disso). Pois, ao fotografar algo ou alguém, não se captura o sentido desse ato, tampouco o significado daquilo que é fotografado; fotografam-se corpos, cheios e inanimados, prestes a se consagrarem em algo, mas sem nunca de fato o fazê-lo.
Sobretudo nas fotografias em que se estava presente quando tiradas, existe uma espécie de contagem regressiva para o infinito, como se, ao olharmos pela primeira vez uma foto recentemente tirada, nos déssemos conta de somente uma parcela de seu significado. Já com o passar do tempo, elas ganham espessura e se transformam, aos poucos, em objeto. Do instante em que foram tiradas ao momento em que as olhamos, as imagens vão adquirindo superpostas camadas, que, uma a uma, segregam a fotografia de seu sentido original.
Existe nesse acúmulo de camadas uma pungência, que manifesta uma intenção, mas não a declara, deixa o objeto num estado de latência, mostrando-o sem nunca o revelar por completo. Na minha opinião, é justamente essa pungência que torna o referente tão fundamental na fotografia, ele é a última ligação com o real; é o que mantém com o significado uma espécie de “estado de sedução”.
A meu ver, a única verdadeira (e indissociável) camada da fotografia é o seu referente. Ele é uma ponte sempre com um fim incerto. Não existe nenhum sentido que adira intermitentemente numa fotografia. Ela só consta, só refere, mas não constrói um pavimento firme até outro lugar qualquer. O referente, mais que uma ponte, é um píer, que, para você terminar de atravessá-lo, tem que aceitar seu fim variável.
Esse movimento de sair de um terreno firme, plano, para chegar à outra ponta – possivelmente uma beirada do mar ou até um precipício – é, para mim, a condição fotográfica geral. Pois o que, de fato, sempre encontramos num referente fotográfico são as próprias coisas fotografadas postas em estado de exceção, uma vez que nada as liga a nenhum outro lugar ou tempo; elas estão ali, são aquilo, e não há nada que possamos fazer. A fotografia, nesse sentido, carrega consigo a condição de existir em vão.