Na coluna deste mês, Sofia Borges fala sobre a capacidade da fotografia de remeter a algo “necessariamente real”
Publicado em 13/04/2022
Atualizado às 12:07 de 10/11/2022
“O referente da Fotografia não é o mesmo que o dos outros sistemas de representação. Chamo de ‘referente fotográfico’ não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria fotografia. A pintura pode simular a realidade sem tê-la visto. O discurso combina signos que certamente têm referentes, mas esses referentes podem ser e, na maior parte das vezes são, ‘quimeras’. Ao contrário dessas imitações, na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há a dupla posição conjunta: de realidade e de passado [...]” (Roland Barthes, A câmara clara, 1980).
Na citação acima, o filósofo francês distingue o referente fotográfico dos demais pela capacidade desse de remeter a algo necessariamente real. Já os referentes de outros sistemas de representação – por exemplo, o da pintura e o do discurso – representariam o real, mas não carregariam consigo a autoridade de um testemunho.
“[...] esses referentes podem ser e, na maior parte das vezes são, 'quimeras'.” Na minha opinião, essa citação era absolutamente correta, situava com certa precisão o referente fotográfico em relação aos demais; contudo, hoje já não é. Está ao mesmo tempo correta e defasada. Se, por um lado, a fotografia agora é outra e me devolve um referente, digamos, transgênico – que se assemelha ao referente da linguagem, por exemplo –, por outro, eu só consigo manipular, distorcer e tensionar uma fotografia sem de fato “quebrá-la” – sem romper seu vínculo com o real – porque esta ainda guarda, e talvez sempre guardará, o fantasma de um fato, cujo referente nunca fraqueja em servir de prova.
A ideia de um referente transgênico vem a calhar como a solução de um impasse, pois ao mesmo tempo que o referente fotográfico, como Barthes o concebe, me situa em relação à fotografia, ele também me frustra por não corresponder ao referente de que preciso ou, ainda, ao que encontro nas minhas fotografias. O que encontro, muitas vezes, é um referente ambíguo, que relata, mas que também é quimérico, ocioso e vago.
Na minha opinião, a fotografia que proporciona essa anomalia do referente é, sobretudo, a digital. Com o seu advento, houve uma mudança de caráter da imagem fotográfica. A imagem com a qual me embato hoje é muito mais uma matéria-prima do que um registro, provê algo mais elástico e fragmentado. Ainda que a maioria das ferramentas que existem no aparelho digital seja descendente, quando não idêntica, daquelas do aparelho analógico, há uma mudança geral, paradigmática, que transtornou o próprio fazer fotográfico e, consequentemente, o seu sentido.
“Nenhum escrito pode me dar essa certeza [fotográfica]. O infortúnio (mas também, talvez, a volúpia) da linguagem [...] talvez seja essa impotência, ou, para falar positivamente: a linguagem é, por natureza, ficcional [...]” (Roland Barthes, A câmara clara, 1980).
Na citação acima, Barthes julga o referente fotográfico e o da linguagem em relação à capacidade de remeter ao real. Para mim, contudo, sua citação se faz útil porque esclarece o que espero do referente fotográfico: uma contaminação.
Interessa-me transpor para a fotografia algo do referente da linguagem, seu artifício, que desenvolve com o real um vínculo por excelência construído (e não apresentado, como faz o fotográfico). Contudo, a transposição só me é válida se eu consigo fazê-la sem quebrar a “verdade” fotográfica, sem distorcer o referente fotográfico de tal forma que perca seu vínculo com o real. Quero construir um artifício por meio da fotografia, que opere dentro da realidade, que remeta a um real convicto, apresentado (não exemplar).
A experiência pessoal
Na introdução, propus a construção de uma genealogia que possivelmente tratasse das origens do sentido “em si”. Para falar dessas origens, será necessário me afastar momentaneamente da condição de produtor/artista para voltar a uma sensação anterior, passiva e improdutiva, que remete a determinada experiência.
Desde a infância, convivo com uma reflexão pouco racional que me leva, de tempos em tempos, a uma arrebatadora certeza da falta de sentido das coisas, uma espécie de cisão profunda com o mundo e com a própria noção do eu. Como se eu fosse arrebatada por uma experiência puramente material, “dessignificada”.
As vezes em que isso me ocorreu foram ao acordar, pela manhã, num ambiente o mais familiar possível. E a sensação era de uma irrecuperável cisão com o sentido – sendo que, por sentido, quero dizer: o meu nome, a minha família, os objetos ao meu redor e a sobreposição dos fatos que me ocorreram até aquele presente momento, ou seja, ao que seria possível remontar uma ideia de indivíduo ou de história. Apesar de ter consciência dessas coisas e de suas finalidades, em nada me diziam respeito e nem sequer traziam consigo uma noção de identidade. Tudo se encontrava destituído de uso e de função, esvaziado de sentido.
Esse sentimento cindido, de forma plena, durava somente alguns minutos. Passada a espécie de epifania às avessas, restava apenas a sua constatação branda e amortecida, à qual eu conseguia, ainda por algum tempo, retornar como a uma lembrança latente na memória.
As consequências
Consagrava-se, com isso, a faculdade de retirar momentaneamente dos objetos (pessoas, coisas, imagens, palavras, sons etc.) o seu sentido. Como se o significado fosse uma película que recobrisse o objeto e o isolasse de qualquer confronto direto. Película essa que, eventualmente, se descolaria do objeto dando lugar a uma experiência pura, “dessignificada”. Em outras palavras, a retirada das camadas significativas que recobrem o objeto proporcionaria uma experiência revelada e translúcida, pois a imagem de camadas transparentes sobrepostas me remete à ideia de opacidade. E, dentro dessa metáfora, o sentido seria uma película opaca, que vela; enquanto a experiência seria vazia e, portanto, transparente e firme feito um diamante.
Ter vivenciado essa experiência algumas vezes determinou a minha própria maneira de entender e perceber o mundo. Até hoje, as constatações que retirei dela me são caras, estão vivas e a todo tempo contaminam a minha experiência atual. Nesse sentido, o vazio das coisas continua tão palpável quanto uma montanha.
Ao longo dos anos, o fascínio (ou o terror) que isso me causava acabou por gerar um desejo ambíguo, que ora buscava retirar essa película para ver os objetos em sua plenitude, ora superpunha-os de camadas, encobrindo-os com quantos significados conseguisse. E é possível que seja justamente a esse desejo que eu reajo sendo artista.
Contudo, essa reação poderia derivar-se, como o fez, a inúmeras áreas ou práticas artísticas. A fotografia nunca foi soberana dentro dos meus interesses, tampouco surgiu para mim como um meio definitivo. As minhas primeiras incursões pela fotografia aconteceram paralelamente à prática quase diária do desenho. Esse paralelismo, que durou quase toda a minha graduação, foi uma próspera maneira de entender diferentes meios e uma mesma intenção.
A citação que segue abaixo é uma boa metáfora para a divergência entre esses dois meios. Se com um eu reconstruía o que vivi de maneira mitológica, com o outro eu o fazia em forma de realidade.
“Talvez tenhamos uma resistência invencível para acreditar no passado, na História, a não ser sob a forma de mito. A Fotografia, pela primeira vez, faz cessar essa resistência: o passado, doravante, é tão seguro quanto o que se toca” (Roland Barthes, A câmara clara, 1980).
Desde o início, interessava-me pela fotografia por sua capacidade de, ao mesmo tempo, atestar e “dessignificar” a realidade. Havia, nessa passagem de realidade para registro fotográfico, um procedimento tentador: o de decantar a realidade, de torná-la um objeto que perdia aos poucos o lastro do seu sentido original, mas nunca da sua factualidade.
Esse movimento “dessignificativo”, tão caro a mim, realizava-se com tamanho êxito por intermédio da fotografia, que me proporcionava recriar uma experiência vivida como experiência artística. A fotografia permitia que eu me distanciasse sistematicamente daquilo que desejava observar. E os primeiros objetos que coloquei em análise foram a minha família e eu mesma.