Uma poética que reivindica a força de Orixá, a magia dos encantados, o saber dos mestres e mestras da cultura afrodiaspórica e indígena
Publicado em 15/02/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
Este terreiro-nação, atravessado por tantas temporalidades, viu e vê corpos alienígenas (como diria Daniel Munduruku) a fincar estacas e lhe cravar o nome. Este terreiro-nação, atravessado por tantas preciosidades, sentiu e sente o gosto gélido e seco de um dicionário pleno de palavras mortas, as quais também produzem morte. Neste terreiro-nação, contudo, caminha um caboclo afro-indígena em prece: Camillo César Alvarenga (caboclo guajajara). Os poemas que publicamos nesta edição da série Encontros integram o livro Ádúrà (paraLeLo 13S, 2022), o quarto do poeta. Conforme o título em iorubá indica, trata-se de um livro-reza. Um livro com a potência de uma poética que reivindica como genealogia a força de Orixá, a magia dos encantados, os ensinamentos dos mestres e mestras da cultura afrodiaspórica e indígena no Brasil. São essas entidades nomeadas e reverenciadas nos versos, nas epígrafes, dedicatórias e na própria construção formal dos poemas. Livro-assentamento. O trajeto migrante do escritor, nascido em São Félix (BA) e que vive hoje em Olinda (PE), é preponderante para a construção das paisagens que amorosamente nos (re)apresentam o Recôncavo Baiano como contínuo transatlântico, porto e ponto de convergência das epistemes dos povos originários e africanos – e sobre isso há tanto o mestre Mateus Aleluia canta-teoriza. Quem já andou pelas ruas de Cachoeira sabe que é preciso estar de Ori firmado para não tombar, tamanha é a densidade das energias que se movem ali, junto com as águas do Paraguaçu. Pois bem, os poemas do caboclo guajajara performam esse coro de vozes humanas e não humanas a produzir zonas de indistinção entre a chamada literatura, a oração, o ponto de caboclo, o samba de roda, o coco de roda, a ladainha, o causo e a crônica. Experimentos linguísticos disruptivos da linearidade da gramática e da brancura da folha-tela em que se escreve. Palavras que inscrevem o mistério e dão a ver escondendo, comunicam silenciando. Por meio dos poemas, parece-me, o poeta ritualiza o seu fechamento de corpo, tão necessário, haja vista ser esse mesmo corpo ameaçado constantemente pela violência estruturante deste terreiro-nação. Por meio dos poemas, “oralitura” viva e pulsante, sem dúvida alguma, se rasura o signo nação e se rega e acarinha com beleza o terreiro.
textos de Camillo Alvarenga
Èṣù
Do mar
ao mar
de volta
na enseada
ensaias
em tua
Orla às
Vistas
da costa
da Barra
no punhado
de búzios
(tantas
moedas)
coleção
de cauris
de Èṣù
que guarda
e Dança
na porteira
em Águas
De Meninos
feito espuma
e que na areia
farfalha
a escrita e
estraçalha
o silêncio
e comunica
sem palavras
aos sentidos
a imagem
do vivido
antecipado e
imprevisto
do encontro
e do interdito
desvio do
Destino
saltimbanco
no caminho
em que persigo
o percurso
do ritmo vívido
de tudo
de todos
os toques
e trocas e
de todos
acordes
e batuques
de todos
os santos
e seres
humanos
deusas e
deuses
que sejam
e são a Bahia
no toque
das mãos
de Yá Awon
na pena
ekodidé
e no risco
de comer
vidros, no
corpo moído
em tua densidade
e volume líquido
tapume entre
o tempo e
a miragem
entre o mar
e a eternidade
entre as águas
e a cidade
teu dorso, Èṣù,
canto selvagem
no galope
das ondas,
teu colo Èṣù,
berço aquático,
mistério de teu
totem desaparecido
e reencontrado
emergindo naus
e náufragos
grafismos
assentados
na cumeeira
das coisas e
nas areias
dos dias.
XANGÔ
Xangô
Xangô Barú
Xangô Barú faz
Xangô Barú faz fogo
Xangô Barú faz fogo com
Xangô Barú faz fogo com o
Xangô Barú faz fogo com o falo
Xangô Barú faz fogo com a fala
Xangô Barú faz fogo com a Xangô
Xangô Barú faz fogo com Xangô Barú
Xangô Barú faz fogo Xangô Barú faz
Xangô Barú faz Xangô Barú faz fogo
Xangô Barú Xangô Barú faz fogo com
Xangô Xangô Barú faz fogo com o
Xangô Xangô Barú faz fogo com o falo X
Xangô Barú Xangô Barú faz fogo com a fala X
Xangô Barú faz Xangô Barú faz fogo com a X
Xangô Barú faz fogo Xangô Barú faz fogo com X
Xangô Barú faz fogo com Xangô Barú faz fogo X
Xangô Barú faz fogo com o Xangô Barú faz X
Xangô Barú faz fogo com o falo Xangô Barú X
Xangô Barú faz fogo com a fala Xangô X
Xangô Barú faz fogo com a X
Xangô Barú faz fogo com X
Xangô Barú faz fogo X
Xangô Barú faz X
Xangô Barú X
Xangô X
ÀDÚRÀ
Oxóssi quebra a pata do mal inimigo
Oxóssi
livra a caça do mal caçador
Oxóssi
flecha o olho do invejoso
Oxóssi
fura o peito do traidor
[Okê Arô! Okê Arolê Okê Maior! Oxotocanxoxo Odé!]
Salve a Jurema Sagrada!
Salve!
Salve Juremeira no Juremá...
Salve!
Salve o Cabôco Índio
Salve!
Salve meu pai Oxalá...
Aqui ou em Aruanda
No terreiro ou em Visala
Aldeia é chão onde piso
Água é lugar de morada
Ô sangue de meus ancestrais
A terra vem irrigar
Ô sangue de meus ancestrais
Corre em mim, me sustentar
Quando o sol sobe do mar
Ou a Lua no alto se esconde
Nas vistas se mostra o perigo
Não teme o guerreiro na fronte
Porque a luta é todo dia
E o inimigo não descansa
Eu sigo o meu caminho
Xangô é ponta de lança
Se na espada rebrilha o fogo
Nas chamas não vá se queimar
Eu africano índio
Caboco aqui e no Juremá
De onde venho sou rei e senhor
E vivo a estender meus domínios
Aprendo com o Tempo
outras artes e ofícios
Com instrumento alívio a dor
da inveja e imitação sou inimigo
passo a passo sigo a linha do improviso
Rasgo o repente e caminho no precipício
Na corda bamba danço e me equilibro
Por que a sabedoria e a ciência
Olorun a Orí ensinou
Por que a memória da resistência
até hoje meu corpo carregou
Se quer coco de combate
No campo prepara o embate
Coco do Farol se anunciou
Toda segundinha é de meu cumpadi ( id est)
es
este
este poema
é todos os outros dias também
este poema
hoje é uma segunda-feira especial
este poema
partiu com D. Odete num rumo (luto contra o luto)
este poema
hoje, há 3 anos atrás, nasceu com Benjamin
este poema
não é um parabéns pra você, meu filho,
este poema
não é um carpir a D. Odete, à sua benção Ebomi,
este poema
não pode dizer como hoje está sendo um dia difícil
este poema
não tem uma palavra sequer
este poema
não é um cordel do fogo encantado
este poema
não é uma canção da bossa-nova
este poema
não é a solução da greve dos caminhoneiros
este poema
não é o pagamento das minhas dívidas (a poesia?)
este poema
não me livra das pessoas que vão ler e não-ler
este poema
não é meu (arquiteto)
este poema
não é um desejo de sair de si (de jeito nenhum)
este poema
não é um segredo inscrito no silêncio
este poema
não esta ciente de si mesmo, nem de mim
este poema
não será declamado em voz alta
este poema
é uma imitação barata da ira
este poema
não é um embrião de versos
este poema
não pode parar a chuva (pajelança)
este poema
não pode derrubar uma estrela enquanto é lido
este poema
não está sendo escrito na minha TL do FB
este poema
é uma invenção estética em mundo sem ética
este poema
é a memória de meus ancestrais falando em mim
este poema
não cansa cantar a cascata derramada das costas
este poema
é um mito caverna ideal de passar fome e solidão
este poema
é uma praça deserta onde vagam meninos de rua
este poema
não pode ser um poema porque não há manuscrito
este poema
está em uma zona cinzenta entre o Cairo & Ilê-Ifé
este poema
sangra das minhas mãos enquanto escrevo
este poema
morre manuscrito em tela digital na era dígito
este poema
queria-se código, senha, hieróglifo, rito, rio
este poema
queria ser como os outros todos gravado no infinito
este poema
não existe nem existiu nem existirá ele é o tempo
este poema
escasso rastro da memória ancestral, artefato
este poema
fincado no precípuo momento em que são um só
este poema
piramidal palavra e esfíngico pensamento, abayomi
este poema
este
es
Olinda, Maio, 2018
AGÔ ILÊ, AWÊRE –
Para Mateus Aleluia
– a mitologia
do guerreiro –
da mitopoética
à cosmopolítica
dos ancestrais :
uma introdução
às narrativas afroindígenas.
da arqueologia
à genealogia do ancestral
os caboclos – florestas de ritos,
encruzilhadas de mitos –
etnofilosofia
ecopolítica
indígena (contra-o-estado)
e
as variações
entre fascismo e populismo
o samba : a lira
da linguagem musical da mata
lírica caboclafricana
o outro mundo que é possível
o plano ancestral do rito
: o caçador da cura
a última narrativa :
O candomblé não dorme.
É 2 de Julho,
e o candomblé
não cansa.
Porque
não cessa esse
tambor ? E são
tantos, sãos,
que despencam
das ladeiras
e invadem as ruas
pelas portas
e janelas a dentro
das casas caiadas de branco.
Do alto, silenciam-se as ladeiras...
Vale do Paraguaçu, 2016.
RECÔNCAVO
"Meu desespero ninguém vê
Sou diplomado em matéria de sofrer"
– Batatinha
Há um lugar
onde há
um rio
que nasce
da lama
das almas
que nasce
na Chapada
e vai dar
na África
ou as águas
do Atlântico
ou Índico
que chegam lá
teleportam
bantus
transportam
nagôs
e irmãos
e parentes
espalhados
de toda parte
um lugar
onde
a maré maior o rio invade
onde a manhã
é não haver a tarde
e a noite é uma
placa prateada no
fundo escuro do universo
irradiando a
madrugada
um lugar
onde não se entra
nas águas a noite
sem permissão
sem licença
por boa educação
um lugar
onde cada esquina
tem dono
cada poste
seu guardião assentado
cada praça
é uma morada
cada morro
uma matriarca
cada casa
um terreiro cada
canto
um vento em fúria e
ternura ritmado no couro
arrepio nos pelos eriçados
da pele
um lugar
que levo
gravado comigo
e comungo com outros
e outros mundos
o mote que moe as horas
que teimam a passar
e que muitos chamam
saudade,
mas que também
tem outros tantos nomes...
Ankhesenamon
Nemêsis
Catarina Paraguaçu
Ashanti
Oxum,
Dandara
Xica da Silva
Maria Felipa
todas elas,
estas
aquelas cujas raras íris
uma vez mais
brilham no horizonte...
Força fluvial
que arranca
toco pedra ponte
carrega areias ancestrais
de antes do sol e dos sais
antes das luas e
suas crateras
os cristais de luz
anéis nas mãos de Olorum
e orixás orbitando galáxias
e sistemas
se expandindo
pelo infinito em torno de N’Zambi
e seus inkisis
nos faz lembrar
do barro vermelho
(Lemba êeee, Lemba
Lemba do barro vermelho
Lemba do vermelho barro
Lemba êeee)
Lemba... que Orumilá
já escreveu o passado
e o futuro já aconteceu
Devir outro mundo
este de que sou estuário
leito
manobra das águas
sobre a barragem
correnteza que arrasta ilha
alarga sem alarido
os fechos do infinito
força que é
fogo das pedreiras
silêncio da mata
leveza do ar-consciência
da alma
bandeira de ktembu
odus
&
itans
gravados
em muxima
Parto da asa
do pássaro
encantado
com a
árvore primeira
onde vive Yá Onilê
e em cada vôo
das Yá mi Oxorongá
um destino
se cumpre
e uma vida vivida
se vale e
se leva
no Vale do Paraguaçu.
Camillo César Alvarenga é doutorando e mestre em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Para a tese de doutorado, estuda cosmologia e práticas rituais iorubás e a política científica; na dissertação de mestrado, abordou o culto aos caboclos, o samba de roda e a relação afro-indígena no Recôncavo baiano. É também bacharel em ciências sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Como poeta, além de Ádúrà, é autor de Scombros (2012), OFiltro (2013), macumbe-se (2018) e Flor de búzios (no prelo).