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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Ana Rüsche

Viajantes mentais e líricos, cenários surrealmente cotidianos e experiências visionárias e lisérgicas pontuam a ficção insólita de Ana Rüsche

Publicado em 14/10/2023

Atualizado às 15:59 de 11/10/2023

Por Enéias Tavares

Entre buscas existenciais e geográficas e heroínas líricas em viagem pelo mundo e pela mente: Ana Rüsche

Nós mudamos nos últimos anos. E mudamos muito, sobretudo em resposta aos tempos modernos, dispersos e líquidos nos quais todos estamos enredados. Crises ambientais, sociais e espirituais estruturam as notas de uma sinfonia dissonante, ruidosa e irregular que muitos de nós chamamos de modernidade ou de pós-modernidade ou, ainda, se quisermos polemizar, de novo medievalismo. Em outros termos, quando olhamos para a nossa política e a nossa sociedade, o futuro parece descontroladamente singrar rumo ao passado. 

Na contramão ilusória desse retrocesso mental e também cultural, novas máquinas prometem novos mundos e demandam novos comportamentos e idiossincráticas sociabilidades, especialmente se o que há para buscarmos em termos culturais e relacionais for o que vemos nas vitrines distópicas e tétricas das redes digitais. Mesmo assim, diante de tudo que muda em relação ao que aqui esteve, está e estará, continuamos... humanos.

E no caldo cultural que identificamos como humanidade jazem palavras-bússolas, conceitos sensoriais, espaços existenciais e jornadas essenciais aos quais damos os nomes de desejo, amor, medo, ódio, sofrimento e saudade, quando não pesar, culpa e prazer. É sobre esses espectros fulcrais de humanidade, semeaduras subjetivas de nossas intimidades e visibilidades, que a poesia se debruça como arte e criação. Desde os símiles de Homero até as metáforas de Safo, temos recorrido à poesia para fazer o tempo parar e o coração arder.

Mas o que acontece quando se misturam poesia e distopia, imaginação e metáfora, lirismo e insólito? Poucos nomes da nossa literatura fantástica contemporânea podem representar o feliz encontro da literatura de entretenimento com a arte da poesia como Ana Rüsche, uma poeta e uma romancista, além de ativista e agitadora cultural, que tem convidado seus leitores a revisar o mundo a partir do que revisam de si mesmos no ato da leitura. 

Ana passou a infância e a juventude no bairro do Brooklin Velho, na Zona Sul de São Paulo, sendo Ubatuba, no litoral norte paulista, uma segunda casa – um local com poucas edificações, muita chuva e mata exuberante. Na sua formação de leitora, ela relembra um lar “com toques contraculturais e sem televisão. Ler era o grande passatempo. Minha mãe foi professora pública e me incentivava a frequentar bibliotecas. Meu pai, analista de sistemas, operando imensos mainframes, fez com que nunca faltassem em casa livros de ficção científica”.

É também desses anos que vem uma bem-vinda relação com a língua alemã. Ana não chegou a conhecer seus avós, que abandonaram o próprio idioma por traumas relacionados à proibição durante o Estado Novo, mas a história deles a marcou. Naquilo que ela chama de “contaminação” do idioma alemão, que a fez ler autores como Goethe, Brecht e Celan, e a despertou para o potencial da língua, da cultura e da poesia alemã. Essa dívida de formação seria registrada nas epígrafes de seu primeiro livro, Rasgada, em 2005 (poesia, edição da autora).

Embora sonhasse com a escrita desde muito cedo, ela cursou direito, chegando a advogar por alguns anos. Paralelamente aos anos vividos entre códigos legais e processos jurídicos, publicou Sarabanda (poesia, Patuá, 2007) e Do amor – o dia em que Rimbaud decidiu vender armas (prosa poética, finalista do Nascente USP e publicado somente em 2018). Só depois dessa fase é que ela decidiu fazer letras, justamente para estar mais próxima da literatura. Dessa decisão advém sua presente atuação, como professora de literatura e de escrita criativa e colaboradora de jornais e revistas, além de organizadora de grupos de leitura e poesia.

Seu percurso acadêmico seguiu cursos de pós-graduação que incluíram mestrado e doutorado em estudos literários, nos quais se dedicou à obra de mulheres importantes para a literatura brasileira e mundial, como Dinah Silveira de Queiroz, Margaret Atwood, Lygia Fagundes Telles e Ursula Le Guin, e a muito da ficção científica estadunidense, sendo o campo das utopias (e distopias) uma de suas especialidades. Hoje, faz pesquisa de pós-doutorado voltada para a mudança climática no mundo e na literatura. Seus contos “Mergulho no azul cintilante”, um dos textos a integrar uma edição especial de A máquina do tempo, de H. G. Wells (DarkSide Books, 2021), e “Na era do fogo” (Suplemento Pernambuco, no 77, 2019) são experimentações que decorrem desse estudo e de suas reflexões sobre ecocrítica.

Para ela, poesia e prosa são práticas que se autogerminam, o que se nota em sua prosa, não raro entrecruzada de lirismo poético e sonoridades elaboradas, e em seus versos, nos quais a acadêmica, leitora e pesquisadora trabalha vieses críticos e sociais. “Procuro me referenciar em modelos de autorias ‘ambidestras’, como James Joyce e Pagu. Penso que alguns assuntos nos pedem formas específicas, e o que é possível expressar em um poema é muito diferente em um conto. Ao escrever prosa, lanço muitos artifícios da linguagem poética, no tratamento de linguagem, no uso de imagens e mesmo na sonoridade”, conta.

Um exemplo desse feliz encontro entre poesia, prosa, insólita e crítica social é a novela A telepatia são os outros (Monomito, 2018), finalista do Jabuti e traduzida para o italiano (Future Fiction, 2023). A trama entrecruza as buscas existenciais de sua protagonista, Irene, com as crises tecnológicas, químicas e espirituais que marcam o nosso tempo. Vivendo em uma comunidade alternativa no Chile, ela vivencia uma série de rituais que alteram sentidos, corpos e percepções a partir de narcóticos, tudo isso enquanto o mundo parece vivenciar a quebra das barreiras que separam o mundo físico e astral do tecnológico e digital. 

A telepatia são os outros pode ser lido como um experimental romance de formação – de Irene e seus amigos, com destaque para Jorge, Lucía e Paco – que convida leitores a revisar suas próprias contradições com a nossa contemporaneidade fugidia. O texto de Ana é veloz e direto, mas ao mesmo tempo climático e atmosférico, numa escrita que convida à leitura à meia-luz, dissolvendo os limites entre realidade e sonho, poesia e música, narrativa e conflito. Para a própria Ana, Telepatia é um bom exemplo de sua mistura de verso e prosa para contar uma história que tem todos os elementos do que podemos chamar de insólito cotidiano. 

“Esse livro”, afirma ela, “é um bom exemplo dessa técnica, pois, para dar conta de representar um pensamento telepático, termino usando expedientes da poesia. Em meu próximo romance, aprofundo essa técnica. Sou feliz por saber que, mesmo com alguns estranhamentos, as pessoas gostam de ler meus poemas, e, com algum rebuscamento, gostam de ler minhas prosas. Afinal, a mágica somente se acende do outro lado da página, com os leitores.”

No conto escrito para Encontros, “A injeção e o gato”, Ana retorna ao cenário de Telepatia para nos dar uma nova aventura, que envolve explorações subjetivas e softwares mentais, entre animais favoritos e regressões opcionais. Na trama, acompanhamos Nancy, que está prestes a adentrar uma clínica um tanto singular, na qual poderá explorar um pouco de sua mente, de seu passado e de seus traumas, no desejo de curar aquilo que ainda não está evidente. 

Numa cena curiosa do conto, perguntam à protagonista o motivo de sua regressão ao passado. Sua resposta, um tanto aleatória, mas também revelatória, é um mero “autoconhecimento”. Eis aqui, numa cena simples e marcante, talvez um dos objetivos artísticos presentes na escrita de Ana Rüsche, fornecendo aos leitores e a si própria ferramentas líricas e narrativas para conhecermos mais e melhor o que trazemos dentro de nossa consciência.

Se o mundo mudou e nós – essencialmente – nem tanto, a literatura e a arte continuam insistindo nas balizas existenciais que nos motivam, inspiram e fascinam há tanto tempo. Em um extremo da linha do tempo, temos poesia, magia e profecia, todas unidas nas antigas figuras dos bardos xamãs. No outro, temos narrativa, lirismo e imaginação, tríade felizmente encontrada na poesia e na prosa – ambas insólitas – de Ana Rüsche.

Ilustração digital multicolorida com uma mulher com uma criança no colo. Ambas vestem um vestido florido e seguram uma flor cada. A criança abraça o pescoço da mulher.
"A garotinha também tinha um vestido florido. Os gestos eram familiares, mas as imagens eram tão ruins que a ilusão não convencia." (imagem: Gustavo Inafuku)

A injeção e o gato

Nada parece tão ruim até se examinar de perto. Com a clínica era igual. Será que as plantas na parede são de verdade? Diante do portão intransponível e um olhar felino de uma câmera, Nancy duvidava da própria vontade de entrar ali. Na dúvida, aguardava. Os lírios laranjas pareciam uma miragem. Deu um pulo ao escutar um estalo alto. Uma portinhola na lateral se abriu. A passagem era por ali? O portão parecia dobrar-se suavemente e a garota decidiu cruzar o umbral, um pouco tonta pelo calor de final de dia. Caminhou por um corredor estreito que nunca parecia ter fim, o sapato suado no pé. Ao final de um túnel, enfim achou a recepção – esgueirou o corpo aos poucos, meio sem graça, pedindo licença com seu vestido florido.

Recepcionistas sorridentes acenaram com a cabeça algum tipo de saudação automática. Nancy não era a única a aguardar na recepção, mas a única que viera sozinha. As outras pessoas eram casais e trisais, ainda havia grupos interessados em jogos eletrônicos. O vestido florido era um equívoco diante da potência do ar condicionado, os pelos do braço empelotados de frio, o pé gelado de suor, o nariz nauseado do odor dos lírios amarelos nos jarros. As pessoas cochichavam entusiasmadas algo que Nancy não conseguia ouvir.

Depois de um tempo sentada no sofá de capa plástica, a garota levantou-se e procurou ser bem educada:

– Oi, tudo bem? Preciso passar pela triagem, não preciso?

– Hum, triagem?

O complemento da resposta veio na forma mal humorada de um tablet estendido:

– Ah, você é que não veio buscar ainda. Está aqui. Faz rapidinho, tem gente esperando.

A garota agradeceu quieta, sentindo-se culpada. Espiando o tablet, não teve outra escolha senão seguir um tutorial: digitalizou o próprio rosto, as digitais e o padrão de voz. Depois, um questionário surgiu na tela. Levantando do sofá, sem conseguir não fazer barulho na capa plástica, Nancy pigarreou e pediu instruções:

– Preciso responder isso tudo em voz alta?

– Uhum.

O sorriso displicente na recepção sublinhou que sim. Um dos casais parou de conversar para escutar as respostas. A garota sentia o suor gelado nas axilas.

– Animal preferido: gato, adoro gatos. Tipo de regressão escolhida: infância. Sim, se não der certo, aceito que seja a idade madura. Motivo da regressão? Compreender melhor a mim mesma. – A tela sugeria outras soluções – isso, autoconhecimento está bom. Se já fiz isso antes? Não, é a primeira vez.

Nancy parou diante de uma nova mensagem automática piscando.

Sem ter outro jeito, arrastou-se até o balcão da recepção. Queria perguntar algo, mas a voz custava a aparecer na garganta. Quando veio parecia ser de outra pessoa:

– Oi, estão me cobrando aqui uma taxa extra…

– Meu bem, estou checando seu cadastro aqui, é sua primeira vez, não é? A gente tem que se certificar que você não terá nenhuma reação, sabe? Por isso, tem essa taxinha. Mas olha, compensa, daí nas outras vezes, você está liberada para vir direto.

Humilhada, a garota confirmou com a digital do dedo anular.

Algumas pessoas eram chamadas e desapareciam nas salas do fundo, onde havia uma luz laranja baixa. Ninguém voltava, a saída da clínica parecia ser por outro lugar. A clínica contava com vestiários, caso clientes quisessem tomar banho antes de sair. Nancy agarrou sua bolsa, com uma muda de roupa extra, conforme solicitaram, xingando-se mentalmente, não trouxera nenhuma blusa para o frio do ar condicionado.

Será que iria vomitar? Ou borrar as calças?

Isso era fácil. O duro seria ter algum desses surtos graves. Não voltar.

Por qual motivo fazia aquilo? Uma resposta simples era a morte da avó. Agora, Nancy era sozinha no mundo. Uma liberdade estranha. Nos últimos anos, devaneava: o que teria feito se a vó não precisasse de cuidados intensivos? Não que não amasse Dona Nanciara profundamente. Ou que a morte da idosa fosse necessariamente ocorrer antes da dela. Entretanto, a rotina de trabalhar e cuidar, cuidar e trabalhar, tudo dentro da mesma casa, consumia qualquer outro sonho. Consumiu a vaidade e outras coisas que Nancy nem sabia nomear. Agora, a garota, com algum tempo extra, até com um dinheirinho extra, precisava descobrir o motivo de coisas inteiras que não sabia vivenciar, muito menos admitir.

Será que vou pirar lá dentro? Imagina se não volto?

Em suas mãos, o tablet tremeu.

Era hora.

Dirigiu-se ao setor das luzes laranjas. A música alta pulsava das paredes ondulantes. Caminhou, caminhou e chegou à sala destinada com seus pés congelados. Inseriu o tablet em um nicho na parede. A porta fechou-se e a única cadeira reclinou-se.

– Olá, Nancy!

A garota deu um susto com a própria voz projetada nos alto-falantes. Logo, sua risada ecoou pela sala.

– Não se preocupe, logo você se acostuma – a voz parecia tranquila, mas Nancy logo reconheceu o próprio tom: o mesmo tom usado antes de aplicar aquela injeção dolorida na avó. Então, era assim que soava? Aterrorizador?

– Você pode usar o roupão que separei para você… Ah, espera, Nancy, não acredito? Você não alugou nossos trajes especiais? Olha, na próxima vez, não deixa de seguir a promoção, pois é uma delícia usar nossos roupões. Tinha roupão, toalha e muitos outros mimos.

A voz apresentava, no telão estendido nas paredes, todos os produtos para acompanhar as sessões de regressão – uma mulher descansava na mesma cadeira, num local florido, com uma toalha branca nos cabelos. Nancy concluiu que nunca conseguiria usar a própria faringe para dizer frases tão idiotas.

– Bom, vamos lá, Nancy. Se você quiser, pode tirar a roupa. Todos os nossos quartos são devidamente esterilizados… ah, estou vendo que você vai de roupa mesmo, não tem problema… basta se deitar na cadeira, fique confortável que tudo logo vai começar.

Como essa AI sabe que sigo vestida?, pensou assustada, será que tem alguém espionando a sala? Raciocinou: se for desistir, precisa ser agora.

Ficou parada no meio do cômodo.

Então, lentamente algo se apoderou dela e Nancy rastejou até a cadeira reclinada. Ao se deitar, viu que era muito bom o tecido, lembrava pele quente. Tiro a roupa? Não teve tempo de se decidir, logo faixas a imobilizaram os pés e as mãos entre o vestido florido, enquanto a AI ria baixinho, “calma, está quase acabando”.

Então, o antebraço esquerdo levou uma picada. Ai! Nancy procurou puxar o membro, mas estava preso, “jajá vai terminar”, acariciou a AI seus ouvidos. Aquelas frases! De onde tinham puxado essas referências? As malditas redes gravam o tempo inteiro o que dizemos, Nancy voltou meses atrás no tempo, quando aplicava a dolorosa injeção diária em sua avó, D. Nanciara, colocando-a de lado, observando suas escaras e recitando o mantra mentiroso, pois aquilo ainda ficaria dolorido por horas até a próxima aplicação. A velha nem se debatia ou revidava, de sua garganta vinha um som sobrenatural, um ronco de dor profunda, gemidos de um outro lado da existência.

– Pronto! Vai começar a brincadeira, Nancy, preparada?

A AI mostrava um entusiasmo enquanto a garota se debatia, amarrada na cadeira. A moça queria gritar e a nada saída de sua garganta, somente gemidos roucos, o oposto da voz. O corpo formigava em contato com a maca, será que eram escaras iguais as da vó?

A voz nas paredes interveio:

– Vi que sua pulsação está acelerada, Nancy. Nada que você estiver sentido agora existe. Relaxe, teremos mais 15 minutos antes da passagem, antes de você começar a sentir realmente alguma coisa. 

Com certa vergonha, Nancy caiu em si. Foi só a picada, devo estar sensível, calculou. Perdeu-se nas contas sobre a última vez que menstruou. Será que era TPM? Percebeu que seus cabelos caíram no rosto e não tinha mais como os afastar com as mãos presas. Bufou, só que a franja não dava trégua de coçar seu nariz.

– Pronto, pronto, vi que você está mais tranquila, excelente, Nancy. Usamos um protocolo muito seguro de Chadrilex. Na próxima vez, pode trazer alguém e vocês poderão conversar telepaticamente. E não se esqueça de alugar um roupão!

Nancy perguntou-se quem traria para a conversa mental. Toda a sua vida tinha sido esvaziada. Somente poderia trazer consigo a avó. Era tarde demais. Será que juntas, telepaticamente, poderiam soar com a mesma idade? Será que a avó poderia lhe responder como será a vida daqui em diante? A avó sempre quis tomar a droga telepática antes, mas os protocolos médicos proibiram. Deviam ter ido tomar o chá juntas. Quando era possível.

Os olhos umedeceram. O sentido imenso de estar amarrada ali.

Logo entendeu que a droga agia, pois os pés estavam livres. E as mãos. Parecia flutuar, mas não conseguia tirar a franja irritante do nariz. Nas paredes, havia uma projeção de si mesma, na infância. O tutorial da clínica ensinava: converse consigo mesmo. A garotinha também tinha um vestido florido. Os gestos eram familiares, mas as imagens eram tão ruins que a ilusão não convencia.

– Nancy, fala comigo.

A voz da menininha não soava como a própria.

Que coisa malfeita, pensou a moça, como alguém pode acreditar nisso?

– Venha, Nancy, venha comigo!

A garotinha chamava no telão. A voz era horrível, a imagem mal acompanhava o gesto. Bom, vamos lá fazer valer essa grana, decidiu.

Desceu da cadeira. Abriu a porta projetada no telão e descobriu-se uma outra sala. Estava na própria casa. O sofá familiar onde dormia. A bagunça espalhada no chão. Ainda não conseguia falar ou gritar, testou. Mas a franja estava agora presa do lado da orelha. A imagem da garotinha desapareceu. Mas se viu no sofá dormindo. Aproximou-se.

– Ei, vó, acorda.

Não era isso que queria dizer. No sofá, via a si mesma, com o vestido florido, com a mesma idade. Mas não era contra as normas da clínica regredir à mesma idade? Tinha sido bem enfática em escolher a infância, pois mal se lembrava dela, devia ser gostosa.

A outra Nancy acordou um pouco confusa, mas logo olhou em volta e declarou:

– Ah, está na hora, D. Nanciara. Já vou cuidar de tudo.

Nancy verdadeira avistou a cozinha minúscula, estava igual à vida real, enquanto escutou a sósia cantarolando:

– A gente devia ter adotado um gato. Qual tipo de gato você mais gosta?

A outra arrepiou-se, era bem aquele tipo de coisa agradável que falava antes de aplicar a injeção na avó. Como se não tivesse jeito, Nancy deitou-se no sofá, com as nádegas para fora, ficando de rosto virado ao estofado. O gosto do estofado desceu pela garganta.

Observando aquilo, a sósia começou a gargalhar:

– Você quer levar uma injeção, dona Nancy?

A outra começou a gemer, com o rosto prensado de lágrimas e baba no estofado.

– Eu não escutei nada. O que você quer, Nanciara?

Durante um tempo, nada aconteceu. 

A voz de Nancy não saía, corroendo a garganta dolorida.

Então, sentiu a ferroada. Algo maligno penetrou na nádega direita e saiu queimando a pele, as profundezas, até travar a coluna e a coxa. Dor.

“Calma, está acabando”, pronunciava a sósia muito paciente e recitava a variação, “jajá está quase acabando”.

Quando tudo terminou, Nancy mal conseguia respirar ou mover-se. A sócia parecia ter ido à cozinha ou ao banheiro. Aos poucos, foi recobrando o fôlego. Conseguia engolir. Viu que a outra se aproximava. Nancy virou-se e sussurrando, pediu resposta:

– E o quê acontece agora?

Pensou em ouvir, “você vai lá e vive”, mas nessa hora sentiu a franja incomodando o nariz, os pés e mãos presos, o suor empapando o vestido florido, a cadeira da clínica.

Descobriu que uma mulher a examinava com semblante sério. A roupa era laranja como as paredes. Cabelos pretos em um coque, máscara cirúrgica na boca.

– Como foi a experiência, Nanciara? Tudo bem?

Nancy sentia-se enjoada, com vontade de ir ao banheiro, queria ser solta. Mas teve uma ideia de pergunta brilhante e murmurou, “como você sabe meu nome completo?”.

– Aqui a gente sabe de muitas coisas. A moça anotou algo no prontuário e completou sob a máscara – Por exemplo, já sei o que você vai me perguntar em seguida.

Como se adivinhasse, a moça pronunciou a frase dos lábios de Nancy:

O quê acontece agora? Bom, você vai lá brincar contigo mesmo aos oito anos. Depois você já sabe o resto.

Aos poucos, Nancy deu-se conta que tinha realmente alugado o roupão. Era reconfortante estar vestida e quente.

Lembrou-se então do que aconteceria. Ela tomaria banho em um dos vestiários e choraria. Sairia da clínica devagar, a liberdade de estar sozinha. Levaria um lírio laranja consigo. A neta que cuidou dela por anos faleceu há um ano. O vestido florido. Nanciara. Devagar, saindo da clínica, ainda pensaria, será que juntas, telepaticamente, poderiam soar um dia com a mesma idade? Se pudessem adotar, qual seria o gato que escolheriam?

 

Ana Rüsche é escritora e doutora em letras. Realiza pós-doutorado no departamento de teoria literária e comparada da Universidade de São Paulo (USP). Acesse o seu site.

Coluna escrita por:

Enéias Tavares

Enéias Tavares

Escritor, professor e tradutor.
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