Pactos nefastos, tecnologias malditas e vórtices temporais marcam o terror de Cesar Bravo
Publicado em 13/04/2023
Atualizado às 08:37 de 10/05/2023
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.
Entre máquinas, monstros e horrores modernos: Cesar Bravo
Casas antigas que guardam segredos. Fantasmas, demônios, vampiros e outros seres estranhos, feitos da mais atroz realidade ou então nascidos dos desvãos da imaginação humana. Jornadas noite e almas adentro em busca de seus medos, traumas e crimes. Garras, caninos e fenômenos sobrenaturais que nos fazem lembrar dos nossos primeiros temores, fossem eles do escuro, do desconhecido ou então do que poderia estar embaixo de nossas camas.
Esses elementos apontam para o terror, um gênero que, desde as ficções clássicas do século XIX – sejam elas compostas por Mary Shelley, Edgar Allan Poe, Robert Louis Stevenson, Oscar Wilde ou Bram Stoker – até os horrores criados nos séculos XX e XXI – e assinados por autores de viés mais fantástico, como Shirley Jackson, Anne Rice, Stephen King, Clive Barker e Peter Straub, ou então de teor mais realista, como Patrícia Highsmith, Thomas Harris, Gillian Flyn e Caitlín R. Kiernan –, tem fomentado (ou devorado) a imaginação de leitores ao redor do mundo.
A diferença entre “terror” e “horror” como gêneros é um tanto escorregadia, mas pode-se dizer que o primeiro lida mais com o sobrenatural e com uma violência mais física e real, ao passo que o segundo aprofunda fobias e traumas que podem não passar de pura imaginação de seus protagonistas. No nível do terror, podemos citar Drácula (1897), de Bram Stoker, na literatura, e o Massacre da serra elétrica (1974), de Tobe Hooper, no cinema, obras nas quais os monstros são inequivocamente reais. Já no campo do horror, podemos citar A volta do parafuso (1898), de Henry James, na ficção literária, e, mais recentemente, um filme como Men (2022), de Alex Garland. Outros ainda diferenciariam os dois gêneros de modo a destacar histórias nas quais a violência é explícita, em contraste com enredos nos quais o perigo é mais sugerido do que mostrado. Agora, indiferentemente das compreensões e das conceituações, uma coisa é certa: são histórias hábeis em atiçar nossos medos e em acelerar batimentos cardíacos.
No Brasil, podemos ver o surgimento do terror com o clássico Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, um texto de inspiração gótica que une temas tabus como morte, incesto e morbidez. De lá para cá, outros autores se aventuraram pelo tema, não raro em narrativas curtas, como Aluisio Azevedo e o seu “Demônios”, Afonso Celso e o seu “Morto-vivo”, Inglês de Sousa e o conto “Acauã”, e Humberto de Campos e o aterrador “Os olhos que comiam carne”, todos presentes na antologia Medo imortal (DarkSide Books, 2019), um projeto com organização de Romeu Martins que objetiva registrar os primeiros mestres do sobrenatural em nosso país.
Contemporaneamente, autoras e autores têm demonstrado que o gênero é vigoroso, por vezes arrebatando um grande número de leitores e entusiastas. André Vianco, por exemplo, revitalizou as histórias de vampiros com o seu Os sete (1999); Jana Bianchi fez o mesmo pelas histórias de lobisomens com o seu Lobo de rua (2014); Rodrigo de Oliveira trouxe os zumbis para o contexto nacional com a série As crônicas dos mortos (iniciada em 2013); Duda Falcão mesclou o gore e o pulp no seu Mausoléu (2013); e Claudia Lemes reinventou o suspense, o policial e o slasher em diversas obras, com destaque para Quando os mortos falam (2021). Esses são apenas alguns dos nomes que têm dado fôlego (e sangue) novo ao terror e ao horror em nosso país.
Nesse campo, Cesar Bravo destaca-se por duas razões. Primeiro, por sua inventividade mórbida e produtividade incansável, tendo publicado diversos livros e contos, todos eles levando o horror e o terror para lugares menos óbvios e com temáticas profundamente brasileiras. Segundo, por sua parceria longeva com a editora DarkSide Books, parceria que une ficção e projeto gráfico num compósito elegante e sombrio que aprofunda a experiência do leitor. Unindo literatura e cinema, sobrenatural e real, cultura estrangeira e nacional, e explorando cenas do cotidiano, Cesar faz um convite a experimentarmos novas facetas do medo, a valorizarmos nossa cultura, a revisarmos nossas nostalgias tecnológicas e a mergulharmos num caldo cultural e literário múltiplo e terrífico.
Bravo nasceu na cidade de Monte Alto, na região de Ribeirão Preto (SP), em 1977. Formou-se em farmácia em 2002, a princípio exercendo essa profissão, mas mantendo sua paixão pela escrita em seu tempo livre – e nas madrugadas. Ainda nessa época, participou de alguns grupos musicais, atuando como guitarrista, e foi sócio em uma empresa de construção civil. Durante esses anos, a escrita surgia ainda mais urgente, segundo o autor, como uma “voz impossível de ignorar”.
Ele começou sua carreira na escrita em 2011, ao ingressar em um grupo de escritores independentes, o C.L.A.E., pelo qual apresentou alguns de seus textos na internet. O grupo mantinha a revista Flores do mal, na qual Cesar criou seus primeiros contos. Desde então, publicou em diferentes casas editoriais, com histórias permeadas de possessões demoníacas, crimes horrendos, seres slasher e horror psicológico, entre outras expressões do terror e do horror.
Ainda em 2011, por meio da plataforma de publicações independentes da Amazon Brasil, Cesar nos apresentou uma primeira coletânea de contos, Calafrios da noite. Outros livros publicados da mesma maneira foram Além da carne, Caverna de ossos e Ouça o que eu digo. Em 2013, ele ganhou o Prêmio Fnac Novos Talentos da Literatura, o que levou a uma publicação pela editora Novo Século. Foi esse caminho, cimentado com tramas macabras e personagens doentios e assustadores, que o levou, nos anos seguintes, à DarkSide Books.
Ultra Carnem, primeiro livro de Cesar publicado pela casa editorial especializada em terror e fantasia, chegou em 2017, abordando cultura cigana, demonologia e sincretismo religioso, todos orbitando a vida e a obra do pintor maldito Wladimir Lester. Em 2019, publicou VHS: verdadeiras histórias de sangue, que prestou uma homenagem às videolocadoras e à era de ouro dos filmes de terror. Em 2020, foi a vez de DVD: devoção verdadeira a D., irmão gêmeo de VHS. DVD foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Literatura de Entretenimento.
Nesses anos, Cesar também assumiu a posição de produtor de conteúdo e editor na DarkSide Books, dedicando-se a encontrar e a promover novos talentos desse gênero, além de idealizar outros projetos, sendo alguns deles audiovisuais. Em 2022, publicou 1618, romance que mistura horror, teorias da conspiração e ficção científica, além de temas como violência, preconceito e imaginação, sem deixar de lado as críticas sociais sempre presentes nas histórias do autor. Nessa obra, é visível o efeito da pandemia de covid-19 e o debate sobre a situação social, cultural e política de nosso país nos últimos anos.
Sua narrativa pujante e aqui desenvolvendo uma história longa – Ultra Carnem, VHS e DVD apresentavam histórias curtas conectadas a partir de sua inventiva moldura narrativa – nos faz acompanhar diferentes personagens vivendo um drama singular: diferentes vozes temporais se entrecruzam num mesmo espaço. Em sua ambientação, os livros de Cesar têm em comum, além do gênero, o fato de se passarem na cidade paulista fictícia de Três Rios e em sua macrorregião. No caso de 1618, a cidade-irmã de Três Rios, Terra Cota, é o cenário.
No conto exclusivo que vocês lerão a seguir, intitulado “O rosto”, vemos um pouco da expansão do universo e da trama de 1618. Trata-se de um conto que une cenário doméstico, drama familiar e reinvenção de lendas urbanas numa história de gelar a alma e o corpo. Penso que muitos dos leitores se lembrarão dessa história ao adentrar seus quartos às escuras antes de ligar as luzes, exatamente como fazíamos quando éramos crianças, e o mundo, menos assustador.
Em narrativas longas e curtas, em histórias que remontam a um passado insólito ou a um presente contemporâneo, Cesar Bravo nos convida a repensar nossas relações com a tecnologia, com os monstros e com a própria realidade, do universo externo e na nossa mente. Como ele não cansa de nos lembrar, há monstros reais, sociais e imaginários na escuridão de nossas casas, ruas e cidades. E seus personagens, assim como nós, não estão preparados para enfrentá-los.
O rosto
Era uma quarta-feira nublada e fria, algumas horas depois de a chuva ter abalado as estruturas da cidade de Terra Cota. O menino estava terminando a lição de casa quando ouviu um ruído áspero e notou algo novo na parede de seu quarto. Pensou que fosse mofo, umidade, uma dessas coisas que sempre irritavam sua mãe. Mas havia um problema maior: a coisa parecia mesmo um rosto.
Alguém com 9 anos não perde tempo tentando domesticar sua curiosidade, e foi assim que o menino se levantou da escrivaninha e caminhou até a mancha.
Esticou a mão, quase a tocou, mas se deteve.
Era um pouco assustadora. Para começo de conversa, a coisa tinha aquela cor meio-cinza-meio-podre e, com uma olhada mais atenta, ele conseguiu ver – pensou ter visto? – algum relevo se formando. Primeiro no nariz, depois no queixo. Um círculo discreto onde estariam os olhos
A coisa poderia ser Jesus Cristo, pensou, embora tudo o que conhecesse do homem e do santo fossem algumas imagens e as coisas de que sua avó materna falava. Ele não gostava muito de ouvir, sentia-se um menino mau e egoísta por seus pensamentos. Segundo a avó, o tal Jesus e o pai dele viam tudo de bom e de ruim, viam até os pensamentos. Agora, por exemplo, ele pensava que não queria o rosto de Jesus em seu quarto e se sentia muito mal com isso. E mesmo que não fosse Jesus…
Poderia tocá-lo? Deveria tocá-lo? O que aconteceria se realmente o tocasse?
Preferiu esperar mais um pouco. Ele ainda ouvia aquele som esquisito, como se alguma coisa rastejasse dentro da parede – dessas coisas bem nojentas, como ratos, baratas e aranhas saltadoras que ninguém quer encontrar.
Depois de pensar um bocado, o menino apanhou a cadeira da escrivaninha e trouxe-a para o meio do quarto, decidido a ficar ali até que… até que alguém o tirasse do quarto ou aquele ruído desagradável terminasse.
Aos poucos o som foi mesmo diminuindo, mas o raspa-raspa ainda estava ali. Agora bem mais baixo, lembrava uma mastigação, o som da boca de alguém ruminando algo crocante.
Talvez, só talvez, fosse água.
Ele não sabia se a água poderia fazer um som como aquele, mas em todos os seus 9 anos ele nunca presenciara tanta chuva como naquela manhã, então preferiu acreditar que pudesse acontecer. Além do mais, água era inofensiva, a não ser que estivesse com veneno, ou muito quente, ou empoçada e cheia de larvas e ovos de vermes.
– Que nojo – disse ao próprio pensamento.
Agora, o borrão na parede estava bem mais delineado, e ele não tinha mais dúvidas de que se tratava de um rosto. Ainda não arriscaria dizer se era o rosto de um velho ou de um jovem, mas parecia ser o rosto de um homem. Já não ouvia som algum, e isso o encorajou a se levantar e chegar mais perto da parede. Os dedinhos quase implorando para tocar a coisa.
Talvez… só talvez, se ele colocasse os dedos bem devagar, mas bem devagar mesmo, devagar como uma pena deslizando na pele, nada de ruim acontecesse. Ele ainda pensava em baratas e ratos e aranhas saltadoras, e calculava que, se a tinta da parede estivesse bem molinha, as coisas nojentas poderiam irromper e pular nele.
– Bem de levinho – disse a si mesmo e foi aproximando a mão.
Mais um pouco.
Agora estava tão perto que conseguia sentir a temperatura fresquinha da parede.
Avançou um tiquinho de nada e seu dedo indicador percorreu a marca da testa da mancha, ainda muito de leve, ainda quase não a tocando.
Mas o menino sabia que a tinha tocado e se encorajava pra valer.
Era quase plana no total, mas nas partes mais escuras, como onde estavam o nariz e o queixo, também no contorno dos olhos, existia mesmo um relevo. Oh, sim, os olhos. Eles estavam fechados – mais do que isso, estavam espremidos. A mancha parecia sentir dor, algum tipo de sofrimento. A boca formava um arco para baixo, e aquilo também era dor ou tristeza. Pensando bem, a mancha parecia se sentir muito mal.
Talvez tenha sido por isso, por esse lampejo de empatia, que o menino abriu sua mão direita e acarinhou aquele estranho rosto.
– Me ajuda – ouviu a coisa balbuciar, ao mesmo tempo que todo aquele barulho áspero voltou a riscar o quarto.
O menino recolheu a mão em um golpe e saltou para trás. Os olhos arregalados, a bexiga quase se soltando. Estava tão apavorado que não conseguia dizer nada, mal conseguia respirar.
À frente dele, o rosto havia emergido até a altura do queixo. Ainda se parecia com argamassa e mofo podre, mas tinha todos os detalhes de uma face. Os olhos, o nariz, a boca, que, a cada movimento, perdia um pedaço de tinta. Não parecia mais conseguir falar, e em vez disso gemia, um lamento rouco e cheio de agonia. A garganta chiava na tentativa de respirar. Ao que parecia, todo o resto dele estava incrustado na parede.
– Me ajuda – a coisa repetiu, com um esforço horrível de presenciar.
– Mã… – O menino tentou articular, sem conseguir completar. Sua voz estava paralisada na garganta, travada, ou talvez fossem os pulmões que não funcionavam como deveriam.
– Ajuda… – a coisa repetiu.
A capacidade de adaptação da mente de uma criança deve mesmo ser muito superior à de um adulto, porque, depois do golpe de medo inicial, o menino se recompôs e perguntou à mancha:
– Você existe?
– Me ajuda, amiguinho.
– Como?
– Eu não sei como – o rosto gemeu. – Sua mãe… pai…
Ele iria ajudar, sim, mas antes precisava se certificar de um detalhe.
Mais uma vez, o menino tocou o rosto de alvenaria da coisa. Tocou na testa, bem longe da boca de pedra, que poderia facilmente decepar seu dedo. Era de verdade.
– Já volto!
*
A TV da sala exibia uma comédia romântica, e a mãe do menino fazia o planejamento de suas aulas de educação física em um notebook. Acostumada com as intrusões do filho, ela não deu muito crédito quando ouviu:
– Tem uma cabeça na parede do meu quarto!
– Tá bom, filho, depois eu vejo.
O menino chegou mais perto e desceu a tela do notebook.
– Você não fez isso, João Henrique!
– Mãe, ouve: tem uma cabeça… na parede… do meu quarto! E ela precisa de ajuda!
– Se essa é outra desculpa esfarrapada porque o senhor rabiscou a parede, vai sair muito mais caro do que dizer a verdade.
– Mãe! – ele por fim gritou. Não um grito qualquer, mas aquele grito que ficou preso em seu quarto. – Vem comigo agora! – gritou mais uma vez e saiu na frente.
A mãe ainda ergueu a tela do notebook, para conferir se não tinha perdido o trabalho todo. O menino voltou a gritar:
– Vem, mãe!
– Tá, tá! Agora para de gritar, antes que os vizinhos chamem a polícia.
A casa não era grande em extensão, então depois de 3 ou 4 metros ela chegou ao quarto do menino, já perguntando:
– Qual é a pared…
Em seguida, foi sugada por um pavor tão grande, tão sem medida, que sua única reação foi agarrar o filho e tomá-lo nos braços.
– Ajuda, moça… Ajuda – a mancha disse.
A mãe do menino não era muito religiosa, mas, se não estivesse com o filho nos braços, teria se benzido.
– Eu não sou… um fantasma – o rosto disse, prevendo o que ela ainda pensaria a seguir.
Sem dizer nada, ela arrastou o filho para fora do quarto e foi até o cômodo que dividia a mesma parede. Aquilo poderia ser algum tipo de truque, talvez com a conivência do marido. Ele gostava dessas bobagens de terror.
Ela olhou, chegou perto, passou a mão na parede e voltou a içar o filho.
– Você fica aí! – disse ao menino, estacando-o ao lado da porta do quarto invadido.
Aproximou-se do rosto como quem chega perto de uma cobra. Os olhos do rosto estavam grudados nela, e pela primeira vez havia mais esperança do que sofrimento. Ela deu uma boa olhada. Era impressionante. A lisura dos olhos, as rugas do rosto, havia até mesmo resquícios aciculares de cabelos e barba.
– Como você veio parar aqui?
– Eu não sei, estávamos… testando. Alguma coisa… saiu errado. Seu endereço pode ajudar…
– Acho que não.
– Aqui é Rua Filadélfia, moço. O bairro é Jardim das…
– Cala essa boca, João Henrique!
– Trabalho para um laboratório do… – O homem pareceu desfalecer, mas logo voltou a si.
– Você consegue respirar? – O menino perguntou.
– Pouco. E dói muito. Pode me ajudar? – perguntou à mulher.
– Moço, eu posso colocar esta parede no chão, mas parece que você é só rosto dos tijolos.
– Precisa ligar para eles, eles vão saber o que fazer.
– Quem são eles?
– Novatec.
Ela sacou o telefone celular do bolso e digitou no Google.
– Guarapuava, no Paraná? – perguntou.
– Não… Tem alguma coisa errada.
Comovido pelo sofrimento do rosto, o menino avançou um passo, depois outro, tomando o cuidado de não passar pela mãe. Notou algo vermelho escorrendo pelo nariz da parede. Aquele pedaço de homem iria morrer, ele tinha certeza disso.
– Em que ano nós estamos?
– 2023 – o menino respondeu.
O rosto nada disse, mas ele se fechou tanto que pareceu encolher.
– Meu ano é 2098.
– Moço, o que eu faço? – a mãe perguntou.
– Se não existe Novatec… não tem nada pra fazer.
– Eu posso chamar um médico, eles podem…
– Qual é seu nome, moça?
– Cláudia.
– Cláudia, eu… não sinto mais o meu corpo. Só esta dor terrível… Eu estou sendo esmagado.
– Mãe… – o menino a pegou pela mão – a gente não pode deixar ele morrer.
Ela voltou para o celular, digitou alguma coisa e aproximou a tela do aparelho dos olhos do rosto na parede.
– Reconhece este mapa?
Era um mapa-múndi.
– Sim, mas os nomes estão errados.
– Mãe, a gente precisa ajudar ele. O que a gente faz?
A mãe abraçou o filho, um pouco mais conformada com aquela situação. Ainda pensava que havia adormecido na frente do notebook e estava tendo um pesadelo, mas fora isso, e fora o coração que não parava de pular, estava tudo bem.
– Como isso começou? – ela perguntou.
– Tivemos uma sobrecarga nas… hastes magnéticas e… eu fui escalado para resolver. Tinha… alguma coisa no átrio, parecia quente, como o ar ondulado quando faz muito calor. Eu vi o menino brincando nas ondas… A coisa me engoliu como se estivesse viva.
– E você acordou na nossa parede? – o garoto perguntou.
– Acho que sim.
O rosto iniciou uma crise de tosse terrível depois disso. Tossiu tanto que a parede chegou a trincar na altura que poderia corresponder ao seu abdômen. Mais daquele sangue escorreu pela boca, o menino apanhou uma camiseta no armário e a mãe a usou para limpar o estranho.
– Estão me puxando – o rosto disse, tomado pelo pavor. – Não! Vão me cortar ao meio! Nãããoooooo!
Por instinto, a mãe se enovelou ao filho. Tentou cobrir seus olhos e ouvidos, tentou evitar que ele presenciasse todo aquele sofrimento. Ela mesma preferia não ter ouvido, mas ouviu. Felizmente pôde não olhar, não quis. Seu único objetivo era acordar daquele pesadelo horrível sem lembrar detalhes dele. Aos poucos, as reclamações do rosto foram rareando, e não demoraram a cessar de vez. O que restou na parede foi uma depressão fustigada, como se tivessem arrancado uma bola de fogo daquele ponto. Tinha cheiro de curto-circuito.
Livre de novo, o menino disse:
– Ninguém vai acreditar na gente, você deveria ter filmado.
– Acho que não, João Henrique, acho mesmo que não – ela disse e foi saindo do quarto, levando o garoto consigo. – Vamos ligar pro seu pai. Eu preciso falar com alguém.
Eles falariam, e a conversa seria bem longa. Tão longa que ninguém estaria no quarto quando 15 novos rostos começassem a brotar das paredes.
Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor. Tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk. Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, AVEC, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Nova literatura brasileira valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro, sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.
Cesar Bravo é escritor, roteirista e editor. Pela DarkSide Books, publicou Ultra Carnem, VHS, DVD e 1618. Para a mesma editora, organizou a Antologia dark, em homenagem a Stephen King; traduziu “The dark man: o homem que habita a escuridão”, poema do mesmo autor; e editou autores como Marco de Castro, Verena Cavalcante, Paula Febbe, Paulo Raviere e Márcio Benjamin.