Recriações da cultura brasileira, atuação em várias plataformas e ousadia literária, tradutória e tecnológica é o que perpassa a carreira de Jana Bianchi
Publicado em 11/01/2024
Atualizado às 12:27 de 12/01/2024
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.
Entre leituras fantásticas, traduções experimentais e iniciativas insólitas: Jana Bianchi
A formação de um escritor é sempre desafiadora e um tanto imprevisível. É claro que há letras, escrita criativa, jornalismo e outros cursos que aprimoram a escrita, o estilo e a voz de novos autores. Por outro lado, o combo de invenção, repertório e ousadia em termos de trama e voz autoral continua sendo – felizmente – um enigma mesmo nos espaços mais experimentais de debate e reflexão sobre criatividade e formação artísticas.
No caso da produção literária, a questão financeira também se coloca como central, talvez até mais do que em outras artes. Afinal, a carreira do profissional da escrita frutifica, levando tempo e significando, salvo raras exceções, direitos autorais que caem na conta do escritor ou da escritora a cada seis meses. Desse modo, é comum que escritores atuem também como professores, jornalistas, servidores públicos, editores e tradutores, para citarmos apenas algumas das áreas disponíveis no mercado.
De todos esses campos de atuação, a carreira de tradutor tem se mostrado extremamente rica para diversos profissionais do nosso mercado. Falo de homens e mulheres que encontram nela a oportunidade não apenas de viver de seu trabalho textual, como também de formar uma carreira ou um portfólio cujo nome seja, pouco a pouco, reconhecido no mercado editorial. Como exemplo, podemos citar Petê Rissatti, Eric Novello, Carol Chiovatto e Francisco Botelho.
Por vezes, alguns desses profissionais também se aventuram em outras searas, como redes sociais, eventos de cultura pop, projetos editoriais independentes e criação de podcasts, formando uma voz onipresente em vários lugares e criando um diálogo significativo com um grande grupo de leitores. Nesse sentido, poucos profissionais contemporâneos da palavra têm investido em todas essas frentes como Jana Bianchi. A primeira informação sobre ela – como deveríamos esperar – contraria a informação acima sobre a formação de escritores.
Ex-engenheira de alimentos com experiência de seis anos na área, Jana decidiu, em 2017, tirar um ano sabático e começar a estudar tradução, num salto de fé – e coragem profissional – que resultou numa mudança completa de carreira. Segundo ela, a carreira anterior lhe permitia muita diversão e viagens, incluindo um intercâmbio na Dinamarca, mas é com a literatura que ela pode fazer o que realmente gosta: “Hoje passo o dia mergulhada no que mais amo, com uma rotina flexível e ajustada às minhas necessidades”, diz.
Em português, além da novela Lobo de rua (Dame Blanche, 2016) – na qual Jana reinventa o mito do lobisomem com uma pitada mais que bem-vinda de crítica social –, publicou contos em revistas e coletâneas como Aqui quem fala é da Terra (Plutão Livros, 2018), Suprassuma (Suma/Companhia das Letras), Trasgo, Somnium e Dragão Brasil (Jambô). Enquanto isso, resolveu se aventurar pela escrita em inglês, mesmo considerando seu aprendizado tardio da língua – “Nunca fiz aulas particulares do idioma até ser adulta, e só considero que comecei a ter alguma noção da língua quando já tinha 18 anos”, revela.
Depois de rejeições e aprendizados com submissões de seus textos ao mercado anglófono, hoje ela tem textos selecionados para revistas de fantasia e ficção científica, como Uncanny, Clarkesworld, Fireside e Fantasy & Science Fiction. Além disso, teve um conto publicado na coletânea italiana Solarpunk: dalla disperazione alla strategia (Future Fiction, 2021), sendo também autora convidada do projeto Life beyond us, antologia de contos e ensaios sobre formas de vida inteligentes e não humanas do Instituto Europeu de Astrobiologia.
No campo editorial independente, em 2017 Jana fundou a revista Mafagafo – com seus braços Faísca (newsletter de ficção relâmpago) e Pio (perfil no Twitter para a publicação de microcontos). Ela também foi uma das criadoras do podcast Curta ficção, focado em escrita e mercado literário, no qual atuou como cohostess de 2016 a 2021. Pensando em eventos, Jana fez parte da equipe que organizou os festivais literários Relampeio e FutureCon ao longo de 2020 e 2021, junto com uma equipe de pessoas de vários países.
Desde 2015, participou como convidada ou moderadora em mais de 50 mesas e palestras presenciais e físicas, tanto em inglês quanto em português, com destaque para eventos como Bienal de São Paulo, Discon III, Festa literária internacional de Paraty (Flip), RightsCon e Flights of Foundry. Jana também já ministrou cursos e oficinas sobre escrita, criatividade, tradução e criação de podcasts em instituições como Sesc, LabPub e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Como tradutora, atuou em vários gêneros, transpondo prosa, histórias em quadrinhos, RPGs e jogos de tabuleiro para o português brasileiro. Até hoje, assinou a tradução de dezenas de livros, contos, quadrinhos e jogos, incluindo obras de autores como George R. R. Martin, Claudia Gray, Margaret Atwood, H. G. Wells, Mary Shelley, Carlos Trillo, Carlos Giménez, Paco Roca e Jose Muñoz, e franquias e universos como Disney, Dreamworks, Blade Runner, Conan, Cobra Kai, Harry Potter, Dungeons & dragons e Star Wars.
Além de tudo isso, Jana tem uma importante parceria profissional com seu companheiro, o também escritor Diogo Ramos. Juntos, editaram a antologia Visões positivas da democracia, projeto bilíngue de coletâneas de histórias de ficção científica. Em 2022, também juntos, idealizaram o Fantástico guia, projeto que liga, segundo ela, “todos os pontos da minha carreira e da carreira do Diogo. Usando a plataforma Discord, ele é um compilado de iniciativas cujo objetivo é fomentar a prática criativa e facilitar a navegação de leitores, autores e profissionais pelos mercados editoriais nacional e internacional”.
Desse modo, Jana continua a desbravar territórios reais, tradicionais, digitais e ainda não mapeados do nosso mercado editorial. O resultado vemos em suas traduções, que sempre primam pela qualidade do texto e por sua inventividade estilística. Conhecida também por sua simpatia e gentileza, Jana continua a motivar jovens e experientes autores a buscar novos territórios de experimentação e sonho, algo presente em sua vida e em sua ficção. Como ela bem entende e defende – dando nome a um de seus principais projetos –, visões positivas são o que precisamos em um mundo cada vez mais fragmentado e politicamente dividido.
Além disso, trata-se de um exemplo de que viradas de carreira não têm hora nem lugar certo, nem mesmo idade. Seu percurso também demonstra que o aprendizado – seja ele tradicional, acadêmico ou informal e pessoal – continua sendo a principal engrenagem de desenvolvimento de uma artista da palavra e das histórias. Longe de desvalorizar as formações tradicionais e universitárias, o percurso de Jana demonstra que uma faceta importante da carreira artística e profissional é justamente a aventura, a coragem e a ousadia, não apenas com as palavras e as histórias, mas também no campo pessoal e profissional.
Aos leitores da coluna Encontros, segue o conto inédito “Barba de areia, voz de trovão”, um belo exemplo daquilo que os leitores da ficção e da tradução de Jana encontram em projetos a que seu nome está associado. No conto, acompanhamos uma trama que se apresenta inicialmente como uma reinvenção folclórica, numa bem-vinda parada pelos nossos temas mais regionais e locais. Mas logo somos surpreendidos pelo ritmo de suas frases, expressões e jogos metafóricos, realocando quem é heroína e herói, quem é personagem e leitor, e nos levando a um jogo tanto romântico quanto erótico, tanto rítmico quanto mágico, tanto literário quanto onírico. Dizer mais é estragar uma experiência literária que tem na simplicidade e no singelo muito da intensidade de sua autora e de suas visões de mundo. E, como em toda boa história, somos por ela levados e sutilmente modificados.
Saindo da ficção e voltando à vida, há ainda uma conclusão de texto, para que você inicie a leitura do conto e se deixe levar por suas marés e seus fluxos. Falamos, no início da coluna deste mês de Encontros, que carreiras literárias se forjam e se formam de diferentes maneiras, respeitando diferentes ritmos, formações e sensibilidades. Para os escritores que estão começando seu percurso criativo – independentemente da idade, do espaço e da condição –, Jana é uma escritora que serve de motivação, inclusive para autores de mais estrada e experiência.
Nossa modernidade demanda novos caminhos de consumo e produção, novas linguagens de diálogo e imaginação, além de novos horizontes de criatividade e impacto na sociedade. Em todos esses elementos, Jana Bianchi tem demonstrado que os tempos são de experimentação, visão e imaginação, uma perspectiva que ela não cansa de levar para a sua carreira como editora, divulgadora, tradutora e escritora.
Barba de areia, voz de trovão
Você é o primeiro filho do orvalho que a moça vê de tão de perto, ao alcance de um grito de olha o marisco em promoção. Como todos na vila, ela cresceu ouvindo histórias sobre criaturas como você: espíritos da praia que à noite e na chuva incorporam a paisagem da cabeça aos pés — barba de areia, voz de trovão, hálito de maresia, abraço de monção. Seres com ondas nos quadris que vão e vêm com as marés. Seres de coração que afoga quem se afoba ao navegar.
É claro que ela não é a primeira moça que você vê, mas nunca nenhuma te encarou da janela com o olhar tão cheio de coragem de querer. O medo acalentado pelas histórias de dor está lá, mas já era de se esperar: todo filho do orvalho também é ressaca, tubarão, coral afiado, relâmpago e breu abismal. No entanto, não falta na expressão da moça a vontade ousada de te convidar para entrar.
Recém-chegado nestas paragens, você decide que vai observar de longe antes de bater. Ainda assim, passa entre o casebre e o quiosque só para provocar, e também porque não há represa que impeça filho do orvalho de fazer o que bem quer.
Mas na manhã seguinte, para sua grata surpresa, é a moça que instiga você. Ela se acomoda com um cesto de siris sob a palmeira, quebrando cascas e limpando vísceras numa coreografia de sangue, suor e sal. Deve saber que você ouve com os búzios, vê com as gaivotas e sente tudo que toca o solo — pois, sem cerimônia, acaricia a areia com os dedos, como se fizesse questão de sentar no seu colo. Depois do almoço, e só para os seus olhos, ela deixa escorregar o vestido de algodão. Deita à sombra toda faceira, dizendo em voz alta que vai descansar.
Sem lua ou chuva para se formar, tudo o que você pode fazer é sentir a umidade morna da moça se infiltrando no chão, evaporando em nuvens que sua brisa ofegante sopra para longe antes de se precipitar. Pela primeira vez depois de sua chegada, você estende braços de espuma além da rebentação — seu jeito de reforçar que a quer. Mas ela espera, se demora, brinca com sua vontade. Em seguida se levanta e vai embora quando o sol começa a mergulhar no horizonte, a boca curvada num sorriso de quem promete muito mais.
Os dias seguintes se condensam em carícias sem fim: ela abraça o tronco dos coqueiros, solta os cabelos perfumados ao sabor dos seus pés de vento. Você a refresca com a água do riacho, espalha as conchinhas mais bonitas por onde ela passa. A moça canta enquanto trabalha até o entardecer, e você pinta o céu do fim de tarde com cores que refletem o que sente. Só que todas as noites, quando vê sua forma de homem despontando da linha entre céu e oceano, ela volta correndo para casa — talvez seja um jeito de conter os próprios maremotos, ou quem sabe de manter o desejo em brasa.
Certo dia, a moça diz que vai se banhar de tanto calor. Você sorri um sorriso translúcido e separa duas correntes de água mais pura. Faz a tépida descer roçando pelas costas, escorrendo por entre os seios, lavando o sal do umbigo dela com a salmoura do seu ser. A outra gelada você manda começar pelos pés, torvelinhar ao redor das coxas, tamborilar nas virilhas da moça antes de se conter numa ressaca ofegante que a faz implorar. Quando também chega a seu limite, você enlaça os dois fluxos em um. Lambe o meio das pernas dela em correntes cada vez mais velozes, até quebrarem juntos na costa com um gemido de moça e outro de marola.
Você pretendia se segurar um pouco mais, mas na noite seguinte já traz tempestade. Acha que ela vai se assustar com o aluvião, mas a moça nunca pareceu tão à vontade. Pode entrar, ela diz, e abre a porta para sua forma que nunca tocou. Enlaça os braços no seu pescoço, seus lábios se beijam pela primeira vez, ela aperta o quadril nu contra o seu, você a puxa para si. Ela se ajoelha na sua frente e sorri ao sentir seu gosto de rio, suor, sol e sal. Entrelaçando os dedos nos cabelos dela, você dita o ritmo bem devagar. Enfim pede para ela parar, a beija e a acomoda na cama, onde a inunda sem pressa pois não tem onde chegar. O temporal lá fora aperta para refletir a cadência da navegação. Os gemidos da cama se misturam aos dela, aos do casebre açoitado pela chuva, aos do vento uivando entre os coqueiros febris. Você e moça explodem juntos em cheia, dilúvio, alagamento, inundação. Ainda sobra vontade para nadar um no outro até o dia nascer — você a veleja por trás, depois deitado por baixo enquanto ela galga seu oceano crispado. Entrelaçam os dedos, ela aperta seus braços, zarpam e aportam tantas vezes que o tempo passa borrado. Adormecem emaranhados como as algas do fundo, mas você precisa partir antes do nascer do sol: logo vai voltar a ser rarefeito. Antes de se dissipar no ar lá fora, porém, se demora mais um pouquinho e a vê dormir com o olhar de satisfação.
Já ansioso pela noite seguinte, você deixa um presente ousado na praia e se esparrama pela baía esperando a moça acordar. Sorri com os corais quando ela sai do casebre, mas silencia os zéfiros quando ela volta correndo para dentro. Este é o momento em que ela se assusta com sua proposta ou mergulha de cabeça na imensidão do seu mar.
É de alívio que as águas cintilam quando ela retorna com um farnel no ombro, soprando um beijo para a praia que a viu nascer e a viria morrer se você não tivesse desaguado por ali. Tomando o esguicho de uma baleia ao longe como o mais auspicioso dos sinais, ela embarca na jangada que você ofereceu, atravessa a rebentação remando e pergunta a direção. Ainda falta muito para anoitecer, então você só resplandece na peculiar mistura de verde tranquilo, azul raso e cinza profundo, silencioso e calmo — mas, com o entendimento misterioso dos que amam o diferente, a moça te entende.
E plácido, límpido como nunca, você se permite aproveitar o conforto. Afinal, precisam estar os dois descansados para explorarem o próximo porto.
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Jana Bianchi é escritora, editora e tradutora de livros, HQs e jogos de tabuleiro. Acesse seu site.
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