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Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Kika Sena

A palavra poética de Kika elabora um canto-denúncia, que traz à tona violências que atravessam a vida de mulheres trans-pretas-periféricas no Brasil

Publicado em 16/07/2021

Atualizado às 12:15 de 18/10/2022

A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

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A literatura da sereia do mangue chegou-me aos ouvidos há alguns anos numa noite fria e seca em que eu percorria as ruas do Distrito Federal. Kika Sena me lançou na escureza da laguna Mundaú, ali em Maceió, onde as águas já salobras desse rio travam luta com o que o Homem fez da cidade, das gentes humanas e não humanas, de mim e de você. Como reação à dor, mas também afirmação da re-existência pelo afeto, a palavra poética de Kika, dentre outras potências, elabora, por um lado, um canto-denúncia, que traz à tona da discursividade literária nacional uma entranhada tessitura de violências que atravessam e ameaçam constantemente a vida de mulheres trans-pretas-periféricas no Brasil; por outro, de mãos dadas com bichas irmãs e encantadas sagradas, fabula um canto-ancestral enraizado na força do mangue, pertencimento que aflui da reminiscência de que “a história da gente não morreu jogada no mar”. “O corpo da travesti preta é político, mas ele pode ser poético?” Eis a inquirição lançada por Kika Sena em uma de suas entrevistas e desdobrada como investigação estética no livro de poemas Periférica, publicado em 2017 pela padê editorial, do qual compartilhamos agora alguns poemas.

Vista acima da cintura, a poeta está contra uma parede iluminada por alguns raios de sol. Ela sorri para a câmera e usa um vestido vermelho sem alça e um colar multicolorido de contas no pescoço.
Retrato da poeta Kika Sena (imagem: Sarah Bicha)

-alagoana

não fosse o sol
ainda assim seria preta
não fosse o café
ainda assim seria preta
a sua cor ainda seria preta
cá regada de graça
não fosse o tempo
exposta à exploração
ainda assim seria forte
não fosse o tempo
de gritos de dor
ainda assim seria bicha
não fosse a imensa falta de amor
ainda assim sereia seria:
uma linda bicha preta
carregada de graça.

-des-cursos

cor
corr
corra
corrra
cor rra
cor raça
corr raça
corraça
cour
courr
couraça
courr
cour
corraça
corr raça
cor raça
cor raça
couraça do preto da bicha do pobre
que morre na praça
cor
corra
corraçacorra
coração

-menina

Todo dia é assim:
Corre menina, corre,
Que a chuva de tiro vira a esquina
te tranca os olhos,
e te sangra a cara
corre menina
tu que é assim serelepe
e carrega no corpo um erro de deus
corre menina
que o tiro te quer encontrar
e exterminar tuas irmãs de cor, gênero e
condição financeira.
Menina, que há com teu riso, que não ri?
Que há com teu sexo, que sangra?
Corre menina, corre
Que ainda queremos ouvir a tua respiração
e dela sentir dizer:
-fulana, vem sambar no mar
que a água aqui é quentinha, salgada e
arde os olhos.

-ponto de fuga

a pólvora da polícia tá atrás de mim
e eu não fiz nada

-atire a.

me atacaram pelas costas
tacaram pedra nim mim
tacaram pedra na minha cabeça
tacaram pedra na minha cara
tacaram pedra na minha boca
tacaram pedra no meu sorriso
depois
me seguraram
me amarraram
tacaram fogo nim mim
tacaram fogo no meu cabelo
tacaram fogo na minha pele
tacaram fogo nos meus olhos
tacaram fogo na minha respiração
tacaram fogo na minha voz
logo
não puderam me conter
poluí seus ares com meu grito
queimei suas casas caras brancas
com meu choro
queimei suas esperanças brancas
tingi tudo de preto
sou brasa forte
tição pós-apocalíptico
pior que deuses ditadores
não mexe
não mexe
não mexe
não mexe comigo não...
que à dor
à dor
à dor
à dor
eu sei reagir.

-correnteza

Um soco de ar me atravessa o peito
lá pelas quebradas de marechal deodoro
bem no meio do Rio Mundaú.
Quando me afogava no rio
uma mão me puxou pra cima
interrompendo a asfixia
e dizendo:
Peguei! Peguei!
Naquele instante me senti pescada,
quase pulei de volta pro rio
pra ser menos gente e mais peixe
mas minha mãe não quis
nem a minha outra mãe
nem a outra.

-sereia vulcânica

de mim esconderam as raízes
na tentativa de me enfraquecer
negaram-me preta desde o berço
negaram-me bicha desde o choro
quando cresci gritei
fui espinha de peixe cravada no pé
desse instante souberam-me filha de Iemanjá
aí pronto
me tentaram calar
mas meu grito preto é grande
quanto mais me tentavam calar
mais aguda eu doía.
deu que não se deve mexer em filhos do mar
que não se deve mexer na história do mar
que a sorte da terra é o mar
que a história da gente não morreu jogada no mar

-escorpianíssima

duas pernas pretas
passeiam de salto pelo parque

um
psiu! ei viadinho

uma boca aberta
sorri
com batom vermelho

um
psiu! ei viadinho

a bicha lança um
oi meu amor

a rua para

cheia
de tanta gente que olha
a bicha
que à luz do sol brilha

a rua para

cheia
de tanta gente que olha
a bicha
que à luz do sol canta

e um
psiu! ei viadinho

 

e aí

um acontecimento
que tomba tudo

e o olho
que olha
não vê mais

e o ouvido
que ouve
já era

e a boca que chama:
psiu! ei viadinho
emudece

e mais nada acontece

apenas
duas pernas pretas
passeiam de salto pelo parque.

 

Kika Sena é arte-educadora, diretora teatral, atriz, poeta e performer residente em Rio Branco, no Acre. Licenciada em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB), é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe. Desde 2015, desenvolve pesquisas relacionadas à voz e à palavra em performance com cunho político referente ao corpo da mulher trans e travesti na cena teatral e social. Em 2017 lançou Periférica, pela Padê Editorial, livro antecedido por Marítima (2016), publicação independente. Sua produção mais recente, também de forma independente, é a zine Subterrânea (2019). Ainda em 2019 dirigiu o espetáculo Transmitologia, no Distrito Federal. Já em 2020, em parceria com AsAguadeiras, dirigiu o espetáculo DesQuite, no Acre. Atualmente integra a Coletiva Teatral Es Tetetas, com sede localizada em Rio Branco.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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